quarta-feira, 8 de maio de 2024

O contrato social sob ameaça das emergências climáticas


O contrato social sob ameaça das emergências climáticas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A velha máxima do “Cada um por si e Deus por todos”, além de muito simplista, carrega uma terrível dose de oportunismo político e a potencialidade de ruptura do chamado contrato social 1.  

É certo que as tragédias ambientais vêm ultrapassando, e muito, as projeções e expectativas da infraestrutura e da logística dos espaços geográficos; mas, isso não significa que se possa abdicar de quaisquer medidas preventivas e mitigadoras.

Afinal, informações a respeito dos fenômenos que tratam das emergências climáticas, no Brasil, existem há décadas. As mais recentes, de 2023, provenientes da Confederação Nacional de Municípios (CNM) dão conta de que “Entre 2013 e 2022, desastres naturais como tempestades, inundações, enxurradas e alagamentos atingiram 5.199 municípios brasileiros, o que representa 93% do total de 5.570. Nesses casos, os prefeitos tiveram de fazer registros de emergência ou estado de calamidade pública. Esses desastres afetaram a vida de mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de abandonar as próprias casas. O estudo indica que mais de 2,2 milhões de moradias foram danificadas, em 4.334 municípios (78% do total), sendo que 107.413 foram totalmente destruídas” 2.

No entanto, ao contrário de considerar esses dados, todas as instâncias dos poderes Legislativo e Executivo, omitiram-se no sentido de traçar metas e planos a respeito das emergências climáticas, no país, ou seja, o descaso e a postergação permaneceram imperando sobre a realidade brasileira.

O recorte temporal acima, o qual representa uma década de observação das ocorrências, é suficiente para demonstrar que as tragédias vêm se repetindo, se avolumando, no país, porque não há quaisquer implementações de medidas preventivas e mitigadoras.

Acontece que isso não é só negacionismo ambiental. Esse pode até ser o pretexto comumente utilizado; mas, o que está por trás desse cenário é a perpetuação de certas práxis históricas e politiqueiras no país.

A começar pelos veios caudalosos do dinheiro público que deságuam em obras faraônicas, facilmente percebidas pelo eleitorado e disputadas com imenso afinco pelas empreiteiras, fazendo submergir as prioridades, as urgências, as mazelas seculares.

Uma demonstração clara do atraso político nacional, que se permite não acompanhar a realidade socioambiental contemporânea do mundo. Sim. Inundações e enchentes, deslizamentos, ciclones extratropicais, estiagem, seca, ondas de frio e de calor, são o novo contexto global, atingindo nações em diferentes estágios de desenvolvimento.

É no modo como são tratadas as ocorrências, que se percebe o grau de comprometimento com o assunto. Aliás, nesse sentido, há muito por fazer, considerando que a gestão dessas emergências ainda permanece, na maioria das vezes, distante do cerne do problema, transitando por aspectos mais imediatistas e superficiais.

Algo que frustra os esforços científicos na busca por oferecer, cada vez mais, dados precisos sobre o recrudescimento das transformações climáticas. Pois não se vê grandes avanços no sentido de mitigar os impactos antrópicos da urbanização, da agricultura intensiva, da mineração e da construção de infraestruturas; bem como, na redução do uso e da liberação de gases poluentes pela queima de combustíveis fosseis (carvão, petróleo, gás). E a ciência, melhor do que ninguém, sabe que a prevenção é muito mais barata e eficiente do que remediar os problemas já consolidados.

Olhando, então, para a situação apocalíptica do Rio Grande Sul, é preciso admitir que ela não é o último evento extremo do clima a atingir o Brasil. Aliás, ela em si foi de um didatismo absoluto, quando provou, por a mais b, como a geografia do relevo interferiu no agravamento da situação.

Ora, não apenas pelo mau uso e ocupação do solo na área; bem como, pelo próprio desenho natural da região, que dificulta o escoamento dos imensos volumes pluviométricos. Sobretudo, quando há, também, a interferência de certas correntes atmosféricas.

É preciso entender que o Brasil é composto por seis domínios morfoclimáticos – amazônico, da caatinga, do cerrado, dos mares de morro, das araucárias e das pradarias -, ou seja, suas regiões são definidas com base na relação entre a composição paisagística com o clima, o relevo, a vegetação, o solo e a hidrografia.

Portanto, há uma limitação de ordem natural para usar e ocupar os espaços geográficos nacionais. Ao desrespeitar essa máxima e desconsiderar o fato de uma mudança climática global em curso, o país se expõe deliberadamente ao risco das tragédias, das calamidades. Se nada for feito, esses eventos irão continuar se repetindo e se tornando menos viáveis de recuperação.

Já dizia Michel Foucault, “Onde há poder, há resistência”. No entanto, quanto mais as representações político-partidárias nacionais insistirem na manutenção de um comportamento baseado em interesses pessoais, em troca de favores e de realizações insignificantes, mais estarão fadados a ruir os seus próprios poderes.

Toda essa politicagem, historicamente retrógrada, é incompatível às conjunturas contemporâneas atuais. Não adianta vociferar, bater o pezinho e dizer que não aceita isso ou aquilo; sobretudo, em relação à dinâmica socioambiental.

Durante décadas, por exemplo, o Brasil assistiu aos deslocamentos forçados, realizados pela população do agreste nordestino, por conta da seca. Podemos dizer, que essa população representa a primeira expressão de refugiados do clima, no país.  Contudo, a omissão governamental, em relação a eles, foi flagrante. O modo como se tratou a situação foi simplesmente lastimável.

Mas, e agora? Em pleno século XXI, quando o acirramento dos desequilíbrios ambientais afeta o país, de ponta a ponta, será que a conduta tende a ser a mesma? Será que os novos refugiados do clima serão entregues à própria sorte, por conta da inação e da negligência político-partidária?

Por mais que a situação no Rio Grande do Sul revele cidades inteiras submersas em volumes grandiosos de água lamacenta, ou seja, uma população completamente afetada, não se pode perder o foco de que as catástrofes climáticas ainda tendem a impactar mais drasticamente as populações frágeis e vulneráveis, pelo menos em um primeiro momento.

E são justamente elas que acabam por encontrar no deslocamento geográfico uma maneira de sobreviver e de ressignificar a sua identidade cidadã. Assim, elas partem munidas de fé, de esperança, de expectativas; mas, sem quaisquer apoio material, tal como faziam os retirantes nordestinos, entre as década de 1930 e 1970, quando a seca assolava a sua região.

Afinal de contas, há de se ressaltar que a reconstrução de uma vida implica necessariamente em ter acesso à dignidade humana, em todos os seus direitos sociais. O que significa que o Estado brasileiro, na figura de todas as instâncias dos poderes Legislativo e Executivo, precisa estar conscientemente comprometido e responsável por essa garantia constitucional. 

Tenhamos sempre em mente que “O fato de milhões de criaturas compartilharem os mesmos vícios não os transformam em virtudes; o fato delas praticarem os mesmos erros não os transformam em verdades e o fato de milhões de criaturas compartilharem a mesma forma de patologia mental (moral, social e comportamental) não torna estas criaturas mentalmente sadias” (Erich Fromm).

Portanto, certas justificativas, diante das catástrofes, se tornam muito inconsistentes e abjetas; mas, ao mesmo tempo, nos fazem entender que “Somente na medida em que desativarmos o modo ter, quer dizer, não ser – isto é, parar de buscar a segurança e a identidade aferrando-nos ao que temos, ‘sentando em cima’ do material, atendo-nos aos nossos egos e a nossas poses – é que pode emergir o modo ser” (Erich Fromm). E o modo ser é o que faz do mundo um lugar habitável e melhor, em todos os sentidos.



1 O contrato social é fundamentado em um pacto convencional, por meio do qual os cidadãos, em condições justas, abrem mão de seus direitos individuais e consentem com o poder de uma autoridade na qual depositam confiança. O Estado, resultante desse acordo tem o dever de proteger os cidadãos. Fonte: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/heliovilalba.pdf