O contrato
social sob ameaça das emergências climáticas
Por
Alessandra Leles Rocha
A velha máxima do “Cada um por
si e Deus por todos”, além de muito simplista, carrega uma terrível dose de
oportunismo político e a potencialidade de ruptura do chamado contrato social 1.
É certo que as tragédias
ambientais vêm ultrapassando, e muito, as projeções e expectativas da
infraestrutura e da logística dos espaços geográficos; mas, isso não significa
que se possa abdicar de quaisquer medidas preventivas e mitigadoras.
Afinal, informações a respeito
dos fenômenos que tratam das emergências climáticas, no Brasil, existem há décadas.
As mais recentes, de 2023, provenientes da Confederação Nacional de Municípios
(CNM) dão conta de que “Entre 2013 e 2022, desastres naturais como
tempestades, inundações, enxurradas e alagamentos atingiram 5.199 municípios brasileiros,
o que representa 93% do total de 5.570. Nesses casos, os prefeitos tiveram de
fazer registros de emergência ou estado de calamidade pública. Esses desastres
afetaram a vida de mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de abandonar as
próprias casas. O estudo indica que mais de 2,2 milhões de moradias foram
danificadas, em 4.334 municípios (78% do total), sendo que 107.413 foram
totalmente destruídas” 2.
No entanto, ao contrário de
considerar esses dados, todas as instâncias dos poderes Legislativo e Executivo,
omitiram-se no sentido de traçar metas e planos a respeito das emergências
climáticas, no país, ou seja, o descaso e a postergação permaneceram imperando
sobre a realidade brasileira.
O recorte temporal acima, o qual
representa uma década de observação das ocorrências, é suficiente para
demonstrar que as tragédias vêm se repetindo, se avolumando, no país, porque
não há quaisquer implementações de medidas preventivas e mitigadoras.
Acontece que isso não é só negacionismo
ambiental. Esse pode até ser o pretexto comumente utilizado; mas, o que está
por trás desse cenário é a perpetuação de certas práxis históricas e
politiqueiras no país.
A começar pelos veios caudalosos
do dinheiro público que deságuam em obras faraônicas, facilmente percebidas
pelo eleitorado e disputadas com imenso afinco pelas empreiteiras, fazendo submergir
as prioridades, as urgências, as mazelas seculares.
Uma demonstração clara do atraso
político nacional, que se permite não acompanhar a realidade socioambiental
contemporânea do mundo. Sim. Inundações e enchentes, deslizamentos, ciclones
extratropicais, estiagem, seca, ondas de frio e de calor, são o novo contexto
global, atingindo nações em diferentes estágios de desenvolvimento.
É no modo como são tratadas as ocorrências,
que se percebe o grau de comprometimento com o assunto. Aliás, nesse sentido,
há muito por fazer, considerando que a gestão dessas emergências ainda
permanece, na maioria das vezes, distante do cerne do problema, transitando por
aspectos mais imediatistas e superficiais.
Algo que frustra os esforços
científicos na busca por oferecer, cada vez mais, dados precisos sobre o
recrudescimento das transformações climáticas. Pois não se vê grandes avanços
no sentido de mitigar os impactos antrópicos da urbanização, da agricultura
intensiva, da mineração e da construção de infraestruturas; bem como, na
redução do uso e da liberação de gases poluentes pela queima de combustíveis
fosseis (carvão, petróleo, gás). E a ciência, melhor do que ninguém, sabe que a
prevenção é muito mais barata e eficiente do que remediar os problemas já
consolidados.
Olhando, então, para a situação
apocalíptica do Rio Grande Sul, é preciso admitir que ela não é o último evento
extremo do clima a atingir o Brasil. Aliás, ela em si foi de um didatismo
absoluto, quando provou, por a mais b, como a geografia do relevo interferiu no
agravamento da situação.
Ora, não apenas pelo mau uso e
ocupação do solo na área; bem como, pelo próprio desenho natural da região, que
dificulta o escoamento dos imensos volumes pluviométricos. Sobretudo, quando há,
também, a interferência de certas correntes atmosféricas.
É preciso entender que o Brasil é
composto por seis domínios morfoclimáticos – amazônico, da caatinga, do
cerrado, dos mares de morro, das araucárias e das pradarias -, ou seja, suas
regiões são definidas com base na relação entre a composição paisagística com o
clima, o relevo, a vegetação, o solo e a hidrografia.
Portanto, há uma limitação de
ordem natural para usar e ocupar os espaços geográficos nacionais. Ao
desrespeitar essa máxima e desconsiderar o fato de uma mudança climática global
em curso, o país se expõe deliberadamente ao risco das tragédias, das
calamidades. Se nada for feito, esses eventos irão continuar se repetindo e se
tornando menos viáveis de recuperação.
Já dizia Michel Foucault, “Onde
há poder, há resistência”. No entanto, quanto mais as representações
político-partidárias nacionais insistirem na manutenção de um comportamento
baseado em interesses pessoais, em troca de favores e de realizações
insignificantes, mais estarão fadados a ruir os seus próprios poderes.
Toda essa politicagem,
historicamente retrógrada, é incompatível às conjunturas contemporâneas atuais.
Não adianta vociferar, bater o pezinho e dizer que não aceita isso ou aquilo;
sobretudo, em relação à dinâmica socioambiental.
Durante décadas, por exemplo, o
Brasil assistiu aos deslocamentos forçados, realizados pela população do
agreste nordestino, por conta da seca. Podemos dizer, que essa população
representa a primeira expressão de refugiados do clima, no país. Contudo, a omissão governamental, em relação
a eles, foi flagrante. O modo como se tratou a situação foi simplesmente lastimável.
Mas, e agora? Em pleno século
XXI, quando o acirramento dos desequilíbrios ambientais afeta o país, de ponta
a ponta, será que a conduta tende a ser a mesma? Será que os novos refugiados
do clima serão entregues à própria sorte, por conta da inação e da negligência
político-partidária?
Por mais que a situação no Rio
Grande do Sul revele cidades inteiras submersas em volumes grandiosos de água
lamacenta, ou seja, uma população completamente afetada, não se pode perder o
foco de que as catástrofes climáticas ainda tendem a impactar mais
drasticamente as populações frágeis e vulneráveis, pelo menos em um primeiro
momento.
E são justamente elas que acabam
por encontrar no deslocamento geográfico uma maneira de sobreviver e de
ressignificar a sua identidade cidadã. Assim, elas partem munidas de fé, de
esperança, de expectativas; mas, sem quaisquer apoio material, tal como faziam
os retirantes nordestinos, entre as década de 1930 e 1970, quando a seca
assolava a sua região.
Afinal de contas, há de se
ressaltar que a reconstrução de uma vida implica necessariamente em ter acesso
à dignidade humana, em todos os seus direitos sociais. O que significa que o
Estado brasileiro, na figura de todas as instâncias dos poderes Legislativo e
Executivo, precisa estar conscientemente comprometido e responsável por essa
garantia constitucional.
Tenhamos sempre em mente que “O
fato de milhões de criaturas compartilharem os mesmos vícios não os transformam
em virtudes; o fato delas praticarem os mesmos erros não os transformam em
verdades e o fato de milhões de criaturas compartilharem a mesma forma de
patologia mental (moral, social e comportamental) não torna estas criaturas
mentalmente sadias” (Erich Fromm).
Portanto, certas justificativas,
diante das catástrofes, se tornam muito inconsistentes e abjetas; mas, ao mesmo
tempo, nos fazem entender que “Somente na medida em que desativarmos o modo
ter, quer dizer, não ser – isto é, parar de buscar a segurança e a identidade
aferrando-nos ao que temos, ‘sentando em cima’ do material, atendo-nos aos
nossos egos e a nossas poses – é que pode emergir o modo ser” (Erich Fromm).
E o modo ser é o que faz do mundo um lugar habitável e melhor, em todos os
sentidos.
1 O
contrato social é fundamentado em um pacto convencional, por meio do qual os
cidadãos, em condições justas, abrem mão de seus direitos individuais e
consentem com o poder de uma autoridade na qual depositam confiança. O Estado,
resultante desse acordo tem o dever de proteger os cidadãos. Fonte: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/heliovilalba.pdf