sábado, 31 de agosto de 2024

Além das chamas ...

Além das chamas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A mancha de fogo que cobre mais de 500 km de extensão na Amazônia não diz respeito apenas ao crime ambiental. Ela fala do total desapreço que se tem à soberania nacional, na medida em que se abre precedentes, para que quaisquer indivíduos desrespeitem, de maneira flagrante, às instituições e às leis brasileiras.

Se o próprio povo não dispõe de consciência sobre a sua identidade nacional, como esperar que ele exerça a sua cidadania de maneira plena e efetiva? Por mais que a nossa historicidade explique as razões desse comportamento anômalo, penso eu, que pouco mais de 500 anos, são tempo suficiente para repensar e redefinir nosso papel enquanto agentes sociais. De modo que não há desculpas que caibam para justificar certas atitudes.  

Queimam os biomas ... Os espaços geográficos ... Mas, sobretudo, queimam a dignidade humana no cerne dos seus valores éticos e morais, quando não restam quaisquer constrangimentos e vergonhas diante da demonstração explícita da sua incivilidade.  É o Brasil mostrando o avesso do seu ser, na expressão absoluta da sua barbárie contemporânea.

Não sei se esse é o fundo do poço civilizatório nacional; mas, é um lugar profundamente desabonador. Estamos diante de uma total inversão de valores e princípios. A vida, no que diz respeito à existência humana, perdeu a sua importância em todos os sentidos. O que rege o curso da história é o poder, em todas suas formas; sobretudo, o poder capital. De modo que o ter, em detrimento do ser, se transformou em palavra de ordem.

De repente, é como se a solução de todas as mazelas estivesse nas mãos do dinheiro, ou da tecnologia, ou do poder. Só que não. A destruição dos biomas e ecossistemas, da maneira como tem ocorrido, acarretará perdas incomensuráveis e irreparáveis. Esquecem-se de que a vida, em todas as suas expressões, depende de água limpa e abundante, de ar respirável, de temperatura equilibrada, de segurança alimentar para suprir suas demandas nutricionais, ...

Acontece que para satisfazer a todas essas necessidades vitais não basta apenas ter o dinheiro. Ele não produz água limpa e abundante. Ele não produz ar respirável. Ele não equilibra a temperatura do ambiente. Ele não produz alimentos. Parece óbvio! No entanto, infelizmente, é preciso repetir essas verdades, quando se vive em um país imerso na sua herança colonial exploratória. Quando os cidadãos não conseguem se desapegar de certos paradigmas, absurdamente retrógrados e nocivos, ainda que isso custe a sua própria sobrevivência.

O que temos bem diante de nossos olhos é o instinto predador, que se manifesta nos modelos exploratórios, conduzindo os recursos naturais renováveis ao status de não renováveis, por sua brutal reincidência a colocá-los no ponto de não retorno (ou ponto de inflexão). Isso significa que os ecossistemas simplesmente ultrapassaram a sua capacidade de suportar alterações, perdendo a capacidade de reestabelecer o seu estado original. Portanto, uma ameaça real que atinge a todos os seres vivos, sem exceção.

Mas, não é só isso. Quanto mais o Brasil se permite reafirmar esse ranço colonial, mais ele estreita a sua dependência, a sua subserviência internacional, em diferentes formas e conteúdos. A destruição nos obriga, por exemplo, a buscar em outros lugares os meios de garantir o suprimento das demandas internas. Passamos a importar ao invés de exportar. Gastamos ao invés de lucrar.  Deixamos de protagonizar para sermos coadjuvantes no cenário internacional. Nos apequenamos de todas as formas possíveis e imagináveis.

E aos que colocam essa questão no rol das picuinhas político-partidárias, para afetar a imagem e o poder desse ou daquele indivíduo, lamento informar que é o país, na sua totalidade, que está sendo prejudicado. Governos vêm e vão. O país fica. E nesse ficar, ele arrasta historicamente as consequências e os desdobramentos nefastos causados pela irresponsabilidade, pela anticidadania, pela antidemocracia, pelo desapreço à soberania, expressos por certos elementos de sua população.  

domingo, 25 de agosto de 2024

Antes que seja tarde demais!

Antes que seja tarde demais!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os céus do Brasil cobertos por uma espessa fumaça que sobe das queimadas. Sim, biomas importantes estão ardendo em chamas. Não bastasse as mudanças climáticas que vêm afetando o planeta, como um todo, esse já seria um período de baixos volumes pluviométricos e de umidade relativa do ar preocupante, para o país. Razão pela qual deveríamos estar atentos aos desdobramentos desse cenário.

Acontece que as chamas e a fumaça são apenas o ponto de partida de uma história bem antiga. Ao contrário de um problema do século XXI, as queimadas no Brasil remontam das práxis empregadas durante o período colonial. Aos que não se recordam, esse país foi uma colônia de exploração, e os latifúndios fazem parte dessa herança.

Já no século XVI, após a chegada dos representantes da metrópole portuguesa na Terra Brasilis, o processo de uso e ocupação do solo, através das chamadas Capitanias Hereditárias, abriu os caminhos para os grandes latifúndios, cujo propósito era produzir gêneros alimentícios com fins de exportação.

Assim, começou a sina de degradação sumária dos biomas nacionais, utilizando do desmatamento e do fogo, para que grandes extensões de terra passassem a ser ocupadas para produção agrícola e para a pecuária. No entanto, esse panorama não se modificou com o passar do tempo. Ao contrário, ele foi intensificado, de modo que certas áreas, como o bioma Amazônico, passaram a ser alvo desse processo exploratório.

Um dos aspectos que chama muita atenção nessa dinâmica, não é necessariamente o fato de o Brasil se manter tão obcecado e atrelado aos interesses exportadores do agronegócio; mas, de persistir nas retrógradas práxis do período colonial, como no caso dos desmatamentos e das queimadas. Processo amplamente condenado, não somente pelos riscos que impõe à população, sob diferentes formas; bem como, pelo impacto degradador do solo e de outros recursos naturais envolvidos.

Ora, em pleno século XXI, em que o mundo repete exaustivamente o mantra da Sustentabilidade Socioambiental por meio de uma Economia Verde, a qual se sustenta na lógica da produção, da distribuição e do consumo aliados efetivamente às preocupações de inclusão social, consumo consciente e preservação ambiental, o Brasil persegue o seu passado como o modelo a ser seguido.   

Diante disso, temos muito a refletir com vistas à transformação. Primeiro, porque os latifúndios brasileiros nos dão a exata dimensão da desimportância da segurança alimentar, no país, quando o que se produz é escolhido a dedo para atender aos interesses do comércio exterior. Nossas commodities agrícolas não passam de produtos primários comercializados “in natura” ou com baixo teor de industrialização, figurando como principais exemplos a soja, a laranja, o milho, o café, o trigo, o açúcar e o algodão.

A grande massa da população brasileira permanece, portanto, à margem da atenção de seus governos, quando o assunto é atendê-la nas suas demandas de alimentação. Seja em suficiência, em valor de aquisição, em diversidade e em qualidade. Simplesmente, porque o país aceita permanecer subserviente além-mar, como nos velhos tempos coloniais.

Segundo, porque toda a repercussão, em termos de impactos ambientais negativos, advindos desse modelo exploratório, é sustentado pela própria população. Seja por um ar irrespirável e contaminado pela poluição oriunda das queimadas, que gera problemas respiratórios severos e acentua a exposição humana aos ataques de microorganismos patogênicos. Seja pela destruição deliberada dos recursos naturais, a qual repercute no agravamento da crise climática global; sobretudo, quanto aos regimes pluviométricos. Seja pela utilização de agrotóxicos e outros agentes químicos, no intuito de tentar recuperar solos demasiadamente castigados pelo fogo, escassez hídrica e pastagem indiscriminada.  

Afinal, não se pode negar como essa dinâmica vem contribuindo para o agravamento do adoecimento populacional. O acirramento desses cenários tem comprometido o equilíbrio e o bem-estar social, nas diferentes regiões do país, porque os ecossistemas foram afetados diretamente na sua lógica funcional. Estamos sob um regime de extremos em relação ao meio ambiente.

Por fim, e não menos importante, porque o Estado brasileiro legitima essa série de absurdos na medida em que se permite fomentar esse modelo, através de diferentes formas de incentivo à produção e à isenção de impostos. O Brasil que se gaba dos números do PIB (Produto Interno Bruto) para o agronegócio, como se tudo fosse perfeito e as mil maravilhas, infelizmente, não exige um alinhamento do setor produtivo à realidade sustentável contemporânea. Nossos produtos trazem em si as marcas do desmatamento, das queimadas, da grilagem, enfim.

Acontece que o fiador dessa relação equivocada é a população. No fim das contas, a grande massa que ocupa a base da pirâmide social brasileira é quem custeia os prejuízos desse sistema de produção. Pagamos caro por uma alimentação nem sempre adequada e satisfatória aos parâmetros de segurança alimentar. Enfrentamos o desabastecimento de certos produtos, pela ausência de um mercado regulador interno, operando satisfatoriamente. Arcamos com o desperdício de alimentos ao longo dos processos de distribuição e comercialização. ...

Portanto, quando vemos os céus do Brasil cobertos por uma espessa fumaça que sobe das queimadas, precisamos ver além, sentir além, pensar além. Não basta que os incêndios sejam combatidos e exterminados. Não basta que os promotores desse caos sejam responsabilizados. Toda vez que o cheiro de queimado invadir o nosso nariz, irritar os nossos olhos, prejudicar a nossa respiração, que ele cumpra o seu papel de nos lembrar da necessidade urgente de exigirmos uma ruptura com nossos históricos paradigmas exploratórios. Porque a demora pode representar a legitimação do fim, ou seja, de uma impossibilidade real de sobrevivência para nós e para o país. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Surpresa zero!

Surpresa zero!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desde 1982, a Organização das Nações Unidas (ONU) já se dedica a criar um planejamento internacional para o envelhecimento populacional. Em dezembro de 1991, por exemplo, foram aprovados os princípios das Nações Unidas para pessoas idosas, através da resolução 46/91. E 1999 foi declarado o Ano Internacional das Pessoas Idosas.

Até que, em 2002, na II Assembleia Mundial sobre Envelhecimento, realizada em Madri, Espanha, já se tratava da expectativa de que, por volta de 2050, 1 em cada 5 pessoas, no mundo, teria 60 anos ou mais de idade, ou seja, haveria mais pessoas idosas do que crianças no mundo.  O que significa que o envelhecimento populacional já se mostrava um fenômeno real e já não poderia mais ser ignorado.

Portanto, surpresa zero diante da recente projeção divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)! O Brasil está sim, envelhecendo! De modo que o objeto de reflexão aqui é olhar para essa situação com a importância que ela merece; pois, já deveríamos, desde a década de 80, ter iniciado esse caminho.

Não, nosso maior problema em relação a essa mudança na pirâmide etária nacional não diz respeito ao etarismo. De fato, ele existe, é cruel, perverso, abjeto; mas, ele não resume todos os desafios que o tema impõe. A começar pelo fato de que a população idosa não é uma massa homogênea, igualada nas mesmas necessidades, nos mesmos interesses, nas mesmas realidades.

Como diz a canção, “Oh! Mundo tão desigual / Tudo é tão desigual ...” 1. Pois é, o envelhecimento na Inglaterra é diferente do Brasil, que é diferente da África do Sul, que é diferente da China, enfim. Aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos interferem na expectativa de vida das populações e, por consequência, no envelhecimento. Isso sem contar que a dinâmica do envelhecimento é atravessada pelo gênero. Homens e mulheres não estão submetidos ao mesmo processo na hora de envelhecer.  

De modo que cada espaço geográfico do planeta precisa tecer as suas próprias políticas para o envelhecimento populacional, que atendam e respeitem a especificidade de suas necessidades. O que, certamente, não muda são os princípios gerais que sustentam esse trabalho, ou seja, independência, participação, cuidados, autorrealização e dignidade2 , em uma clara intenção de incluir e amparar a população idosa.

Um simples olhar sobre o desenvolvimento populacional ao longo da história mundial, nos permite perceber a dimensão das transformações a que foi submetido o envelhecer, no planeta. A participação do idoso na sociedade vem, portanto, sendo cada vez mais significativa e fundamental para alavancar o desenvolvimento e o progresso social como um todo. Porém, os caminhos escolhidos para tratar os desafios que se apresentam, nesse contexto, e otimizar as oportunidades é que fará a grande diferença na colheita dos benefícios desse novo perfil de evolução demográfica.

Assim, é preciso que a população mundial esteja ciente da necessidade de construção de um compromisso político bem consolidado e alinhado a uma base consistente de dados e de conhecimentos, que viabilizem uma efetiva integração intergeracional à realidade processual contemporânea. A humanidade, em todos os lugares, tem o direito fundamental de envelhecer com dignidade, segurança, respeito e liberdade.



1 A novidade (1986). Composição de Gilberto Gil, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone.

2 Princípios das Nações Unidas em prol das Pessoas Idosas (1991).

23 de Agosto - Dia Internacional para a Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Oh!

Oh!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei você, caro (a) leitor (a); mas, a mim soa irritante a perplexidade e o enfurecimento de ocasião, por parte de uma significativa parcela da população brasileira, diante de certas notícias circulantes pelos veículos de comunicação e de informação.

Sabe por quê? Porque o nosso senso ético e moral foi relativizado historicamente, de uma tal maneira, que esse comportamento cheio de constrangimentos e indignações de meia pataca, não transmite uma gota sequer de credibilidade.

Lamento informar que, nesses pouco mais de 500 anos, o Brasil não só legitimou a permissividade, como a legalizou em muitos aspectos. Perdemos a noção, quando o assunto é estabelecer a gravidade dos fatos e a contundência das respostas merecidas.

Parece fácil esticar a corda da paciência, nesse país! O nível de flexibilização, de relativização, diante da realidade, é estarrecedor. Como se tudo fosse transformado em pretexto para galhofa, para o mais extremo da zombaria, do deboche, do escárnio.

Durante muito tempo se ouviu dizer que o Brasil carecia de leis, de uma legislação mais firme. Não, não é por falta delas que a permissividade se deita em berço esplêndido, por aqui!

Infelizmente, o caso é bem mais grave e ultrapassa os registros formalizados. O que nos falta é o sentido prático da apropriação da nossa identidade nacional, do exercício da nossa cidadania.

Os tempos coloniais nos acostumaram muito mal. Tínhamos quem decidisse tudo por nós, inclusive, estabelecendo como deveríamos nos comportar.

Até que um dia, o Brasil deixou de ser colônia e precisou se estabelecer por si mesmo. Apavorado, seguiu pelo caminho mais rápido e cômodo, ou seja, seguiu reproduzindo os padrões que conhecia.

Por isso, vira daqui mexe dali, quando alguma coisa incomoda ou parece insolúvel, o país tende, inevitavelmente, a se refugiar na banalização, na trivialização, na contemporização, para não ter que enfrentar os seus monstros de frente.

O problema é que esse cenário não se restringe às esferas de poder ou de influência. Esse comportamento já se impregnou no (in) consciente coletivo da população. Nos tornamos uma civilização que naturaliza os absurdos, sejam eles de que natureza for.

Como se a nossa capacidade cognitiva e intelectual tivesse sido tão brutal e perversamente corrompida que desaprendemos a distinguir as aberrações, os despautérios, o ilógico, porque evoluímos para a desumanidade.

Caímos em um abismo que aceita a frieza das estatísticas mais terríveis, como se o conformismo fosse o único caminho restante para seguir, quando não se pretende virar a mesa da história e reescrever séculos de vergonhas e indiferenças.

Ora, quando é preciso que alguém diga, em alto e bom tom, que isso ou aquilo é crime, é errado, é gravíssimo, é antiético, é imoral, tem-se um sinal claro de que a cegueira social se instalou!

A perda da capacidade reflexiva, analítica e/ou crítica, de uma sociedade evidencia o quão próximo ela está do seu fracasso civilizatório. Pois ela não consegue enxergar, discernir, entender, por si mesma, o que está bem diante dos seus olhos.

O que significa que a sua identidade nacional está vulnerável e dependente de qualquer um que lhe mostre um caminho. Não importa se bom ou ruim. Se ético ou não. Desde que não se tenha que pensar, decidir, escolher, agir, autonomamente, tudo bem.

Só que não. Tacitamente, a sociedade firma um pacto de silêncio e conivência, diante dos absurdos, das atrocidades, das violências, dos autoritarismos, das negligências, ... Tornando os grilhões nefastos das mazelas brasileiras cada vez maiores e resistentes.  

Portanto, antes de manifestar qualquer choramingo de autopiedade, poupe suas energias e lembre-se do que escreveu José Saramago, em sua obra Ensaio sobre a Cegueira (1995), “se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as inimagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar”.

Afinal, diante de qualquer que seja a notícia terrível circulante pelos veículos de comunicação e de informação, ela sempre chega marcada pelas digitais da própria população brasileira, como um todo. Não há surpresa, quando se tem silêncios, omissões, negações, indiferenças, distribuídos por todas as camadas sociais! 

domingo, 18 de agosto de 2024

Só uma fezinha!

Só uma fezinha!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É interessante observar como o arsenal de tecnologias na contemporaneidade contribui significativamente para o entorpecimento mental das pessoas.

Muitos são os exemplos desse fenômeno; mas, um tem me causado profunda reflexão, dados os impactos negativos que começam a se desenhar no horizonte.

Aliás, vale ressaltar, mais uma vez, como a dinâmica da vida não possibilita, como muitos querem acreditar, uma dissociação de acontecimentos.

Quem nunca ouviu falar em jogos de azar? Pois é, assunto antigo. Segundo registros históricos, sua existência remonta de antes de Cristo.

Mas como a própria expressão popular denomina, jogos de azar não são cercados por uma aura socialmente positiva. Não só pelo fato de mexerem com o psicológico das pessoas, através da adrenalina da aposta, do risco; mas, contribuindo para que muitas delas experimentem a penúria.

Não é de hoje, que os jogos de azar são alvos de interesses escusos, por parte de grupos ligados à contravenção. Muitas vezes, a maioria das estruturas de apostas, sejam elas físicas ou virtuais, possibilitam a articulação de esquemas de lavagem de dinheiro e sonegação de impostos, além de outros delitos.

Acontece que, até o advento da internet, havia quem defendesse as casas de aposta e os cassinos, por exemplo, sob o argumento da geração de uma vasta estrutura de empregos, da movimentação da economia local, da ampliação do círculo cultural e do turismo.

Então, de repente, o cenário virou de ponta-cabeça. Com a internet, um ambiente totalmente virtual, empresários do setor poderiam enxugar ao máximo seus investimentos e aumentar seus lucros.

Em um mundo onde cada pessoa dispõe de, no mínimo, um celular para suas atividades cotidianas, as apostas estão ao alcance dos dedos. E aí se desenrola o fio dessa meada.

Não preciso dizer que as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) já são objeto de estudos científicos importantes, no campo da saúde mental e das compulsões, dada a intensidade com que os seres humanos, inclusive, crianças, têm sido expostos às telas.    

Ora, o espaço virtual é construído para captar a atenção e o tempo do usuário a fim de gerar rentabilidade para as empresas do setor. Tudo é pensado e planejado para persuadir as pessoas a permanecerem cada vez mais conectadas.

E os jogos, caro (a) leitor (a), são uma dessas ferramentas. Aliás, uma das mais eficazes. Porque jogos, por si só, já atuam no (in) consciente humano, despertando o sentimento desafiador da competição, o qual remonta da nossa origem primitiva. Seres humanos foram forjados às disputas. Ganhar ou perder é algo que mexe com as pessoas.  

Então, considerando a realidade contemporânea profundamente modelada pelo consumo, os jogos tendem a amplificar esses sentimentos e emoções.

Valendo-se de um pseudopretexto de entretenimento, elas são atraídas e estimuladas a jogar. O jogo passa, então, a fazer parte da sua rotina.  

Não haveria desconforto sobre isso, se a realidade mundial não apontasse para certos senões extremamente perversos e cruéis. Desigualdades históricas. Empobrecimento populacional. Precarização do trabalho e desemprego. Altos índices de depressão e outras doenças mentais.  

Isso sem contar que, no caso das apostas desportivas, corre-se o risco da adulteração dos resultados e do comprometimento dos valores e princípios esportivos. Cartas marcadas fazem o esporte perder seu brilho, sua emoção, seu sentido de ser; enquanto, criam uma cultura de apologia à falta de ética.

Assim, com todo tipo de apostas ao alcance das mãos, não apenas se intensificam esses cenários; mas, se lança luz sobre a realidade do endividamento em diversos segmentos da sociedade.

Diante de um quadro pseudodemocrático, em que qualquer indivíduo pode apostar, quem tem menos recurso tende a perder muito mais e a se enovelar dentro de uma realidade econômica totalmente desfavorável.  

É bom destacar que não perdem as empresas de apostas. Os bancos e financeiras. Os agiotas, ainda que tal prática seja crime no Brasil.  Estes não perdem; mas, lamentavelmente, fazem o país todo perder.  

O endividamento do cidadão em apostas retira dele a sua dignidade cidadã. Gradual e lentamente, ele vai perdendo seu poder de compra, de subsistência, algo que impacta diretamente na economia do país.

Sem conseguir atender aos seus direitos sociais básicos, esse indivíduo passa a ser cada vez menos autônomo e mais dependente do Estado, que precisa construir soluções para esse problema através de suas políticas públicas.

Vejam, a ausência de uma regulação mais firme e consistente sobre as apostas; sobretudo, no espaço virtual, dá início a esse tipo de crise.

Portanto, se o Estado não age desde o começo, terá de se responsabilizar pelas consequências e desdobramentos nefastos da sua omissão.

É preciso compreender que não adianta apostar na construção de uma realidade idealizada a respeito dos jogos de azar. Especialmente, em relação a países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.

Afinal, o que já se tem bem diante dos olhos é uma aposta que emerge de cartas marcadas, cujas perdas se mostram bastante desafiadoras e difíceis de dimensionar. 

sábado, 17 de agosto de 2024

O Imperialismo travestido de amor e ódio

O Imperialismo travestido de amor e ódio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é de hoje que venho observando a relação de amor e ódio que se estabeleceu entre as Big Techs e a sociedade global.

O ponto nevrálgico do conflito diz respeito à liberdade, plena e irrestrita, das Big Techs. Legislações limitantes que atravessem o caminho da sua lucratividade representam o estopim para as tensões.

As Big Techs não querem quaisquer regulamentações, controles ou ingerências sobre suas atividades, principalmente, em relação as práxis de seus usuários.

E nem é preciso dizer, como a internet e, particularmente, as mídias sociais, têm se tornado arenas de extrema beligerância e de alta propagação de Fake News, interferindo diretamente no equilíbrio social.

É sobre isso, então, que se inicia o fio da reflexão. Não é à toa, por exemplo, que o mundo assistiu nos últimos anos uma demissão em massa de funcionários dessas empresas e uma exposição da realidade da precarização laboral delas.

Não, não se trata exclusivamente de redução de custos, de otimização de processos, de aprimoramento tecnológico, ... Essas demissões constituem instrumentos de obstaculização do atendimento aos usuários. Dificultar o acesso à informação ou à reclamação, abre um espaço favorável à manutenção de conteúdos, que fomentam a toxicidade social no ambiente virtual, porque há uma demora em agir sobre a situação.

Aliás, em relação aos usuários, tudo o que as Big Techs não dispõem é de igualdade e equidade para os seus usuários. Há uma franca disposição ao favorecimento de certas pautas ideológicas em detrimento de outras; bem como, entre celebridades (ou potenciais) e cidadãos comuns. Daí, contas são sumariamente suspensas ou canceladas sem maiores esclarecimentos.

Aos que ainda não entenderam o que essa prática significa, há um comportamento obscuro que afeta o direito do consumidor, porque existem mecanismos para impedir o procedimento de exclusão dos dados dessas contas pelos próprios usuários.

Eles (as) não conseguem exercer esse direito; mas, em contrapartida, a plataforma de mídia social permanece com os seus dados, sem informar qual a necessidade de retenção deles, qual o tipo de uso pode ser feito dessas informações, enfim.  

Lamento dizer, mas as mídias sociais transformam seus usuários em mercadorias de maior ou menor rentabilidade. Ao contrário do que uma gigantesca legião de seres humanos, insiste em acreditar, esses não são espaços de entretenimento e convivência social harmônica e equilibrada. Tudo é milimetricamente pensado e estudado para gerar uma cadeia de lucros cada vez mais significativa para as empresas.

Por isso, as violências, as mentiras, as distorções, os golpes, ... têm encontrado nas mídias sociais um terreno fértil para se estabelecer, considerando que o monitoramento desses conteúdos postados é praticamente inexistente e a sua capacidade de captar visualizações acontece muito rapidamente.

O que, de alguma forma, explica porque as mídias sociais são denominadas arenas. Ao se transformarem em espaços legitimados de confronto e beligerância extrema, retomam um sucesso histórico desse modelo de pseudoentretenimento, o qual vigorou em certos lugares do mundo.

Contudo, há de se reconhecer que esse movimento contemporâneo reflete as marcas da incivilidade humana, apesar das tentativas de domesticação do seu instinto bárbaro. Infelizmente, para muitos, as arenas virtuais alimentam seu primitivismo de uma maneira irresistível. Então, enquanto se perdem nesse deleite abjeto, as Big Techs ampliam seus limites de faturamento, sem qualquer compromisso ético e/ou moral.

Portanto, é uma pena que mesmo diante de todos esses aspectos, o ranço do vira-latismo1 nacional impeça muita gente, por aí, de compreender a verdade dos fatos. Há mais de 500 anos e não aprendemos ainda a fazer escolhas ou tomar decisões, com base em argumentos que não estejam imersos em puro puxa-saquismo estrangeiro. Como se a nossa herança colonial não nos permitisse ser livres de atender aos interesses internacionais ainda que isso nos humilhe, nos rebaixe, nos afronte.

De bajulação em bajulação, o Brasil escancara a sua falta de identidade cidadã, o seu desapreço à Democracia, a sua indiferença ao Estado de Direito, o seu desrespeito às Instituições e sua população. Fazendo parecer que tudo isso é desimportante, desnecessário, obsoleto, diante da euforia inebriante trazida pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), alavancadas pelas Big Techs estrangeiras.

Mas, não se preocupe, as borboletas continuam batendo suas asas, por aí. As metamorfoses não acontecem, na maioria das vezes, por ação humana; mas, do movimento conjuntural que ocorre à revelia dela. Basta observar! Nem sempre os quereres se transformam em poderes. Pelo menos, é o que diz a história do mundo!


1 “Por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

16 de Agosto - Dia do (a) Filósofo (a)


Mais luz, por favor!

Mais luz, por favor!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não há como passar indiferente ao ranço colonial brasileiro na medida em que ele teima em se reafirmar das maneiras mais constrangedoras e deprimentes possíveis.

De volta às discussões do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a gestão das emendas parlamentares, tal objeto de análise precisa sim, reiterar a necessidade de transparência e definição de finalidade, por parte do Poder Legislativo. Afinal, estamos falando de recurso público e em significativo montante.

Vamos e convenhamos, é uma pena que a lógica surreal brasileira esteja sempre colocando o orçamento público pela ótica do capital pelo capital! O país, na figura de seus legisladores, deveria estar debruçado sobre assuntos de suma importância, tais como a declaração de emergência de saúde de interesse global, anunciado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em razão da nova variante do vírus mpox, ou a disseminação do vírus Oropouche por diversos estados brasileiros e o risco gestacional de promover microcefalia, malformação das articulações e outras anomalias congênitas nos bebês.

Porque apesar de a saúde ser uma dentre milhões de outras camadas do universo cotidiano, ao qual estamos imersos, ela é um bom exemplo de como a suficiência ou a insuficiência do emprego de recursos, pelo Estado, pode afetar a dinâmica social e comprometer o equilíbrio do país.

Pois é, nada mais do que o óbvio! O enfrentamento dos desafios e das mazelas que se apresentam à realidade cotidiana brasileira, todos os dias, passa pelos investimentos governamentais. Somente a partir de planejamentos estratégicos dotados de eficiência e suficiência é que o país atravessa as adversidades de modo tranquilo e distensionado.

Mas o Brasil do século XXI insiste em ser o Brasil do século XVI! Subvertendo a lógica das prioridades fundamentais em nome dos interesses de classes privilegiadas, as quais exercem alguma influência e poder no país. De modo que os recursos provenientes de impostos e tributos pagos pelos cidadãos, em geral, se desviam da sua finalidade, do seu propósito, no campo do progresso, do desenvolvimento e do bem-estar social.

Por isso, causa tamanha estranheza o modo como o Poder Legislativo brasileiro tem se apropriado do orçamento nacional. Em total dissonância com o fato de que dispõem da responsabilidade constitucional de produzir leis que irão orientar a sociedade e regular a vida em comum.

Além disso, lhes cabe, também, fiscalizar, representar o povo brasileiro; bem como, sediar os debates de interesse nacional. Em relação aos recursos públicos, o que se tem, pelo menos em tese, na legislação, diz respeito às emendas parlamentares.

Bom, legalmente indicadas pelos membros do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais para finalidades públicas, elas estão dentro de uma quota previamente acordada e sua indicação pode ocorrer de maneira individual ou coletiva, a partir de uma emenda legislativa à lei orçamentária em vigor.

Isso significa que elas têm um papel importante sobre o orçamento público, na medida em que expressam as opiniões parlamentares quanto à destinação de recursos financeiros para políticas públicas e compromissos político-eleitorais assumidos com sua base de apoio, em estados e municípios.

Mas, o que tem chamado a atenção, nos últimos anos, é o volume de recursos destinados a essas emendas e o desvirtuamento dos princípios da administração pública, ou seja, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, em relação a elas.

Acontece que dentro desse cenário, o Poder Executivo se torna cada vez mais fragilizado, diante de um flagrante desrespeito à Democracia e à legitimidade da escolha popular de um projeto de governo.

Diante do modo com o qual o Poder legislativo tem excedido nos limites do seu papel constitucional, ele obstaculiza o trabalho do Poder Executivo, tanto nas suas decisões governamentais quanto pela escassez de recursos disponíveis para a engenharia da máquina pública e suas políticas.  

E aí, como ficaria o país diante de uma situação excepcionalmente crítica? Depois da experienciação de certas tragicidades como, por exemplo, a pandemia pelo vírus Sars-Cov-2 (COVID-19) e o evento climático extremo que afetou o Rio Grande do Sul, este ano, as reflexões sobre as relações político-econômicas precisam se aprofundar, dentro de parâmetros lógicos de prioridade.

É preciso considerar que os desafios ao país não são apenas da ordem do previsível. A verdade é que a realidade contemporânea global tem sido afetada pelo imponderável, o imprevisível. Segundo uma citação atribuída a Platão, “Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz”.

Por isso, essa discussão no STF é tão importante, não somente por arbitrar um consenso pautado pela lógica e pela ética; mas, por coibir o acentuamento dos constrangimentos impostos pela falta de lucidez de uma significativa parcela parlamentar. Como manifestou Victor Hugo, “Do atrito de duas pedras chispam faíscas; das faíscas vem o fogo; do fogo brota a luz”.

E, nesse caso, em particular, o medo da luz não fala apenas da dificuldade de lidar com a realidade nua e crua da vida; mas, de um impulso obscurantista histórico e incontrolável, que precisa ser combatido, com veemência, no país. Afinal, ele é parte inconteste daquilo que gesta todas as desigualdades e os atrasos nacionais, impedindo o verdadeiro protagonismo do progresso e do desenvolvimento coletivo nacional.