Além das
chamas ...
Por Alessandra
Leles Rocha
A mancha de fogo que cobre mais
de 500 km de extensão na Amazônia não diz respeito apenas ao crime ambiental. Ela
fala do total desapreço que se tem à soberania nacional, na medida em que se
abre precedentes, para que quaisquer indivíduos desrespeitem, de maneira
flagrante, às instituições e às leis brasileiras.
Se o próprio povo não dispõe de consciência
sobre a sua identidade nacional, como esperar que ele exerça a sua cidadania de
maneira plena e efetiva? Por mais que a nossa historicidade explique as razões
desse comportamento anômalo, penso eu, que pouco mais de 500 anos, são tempo
suficiente para repensar e redefinir nosso papel enquanto agentes sociais. De modo
que não há desculpas que caibam para justificar certas atitudes.
Queimam os biomas ... Os espaços geográficos
... Mas, sobretudo, queimam a dignidade humana no cerne dos seus valores éticos
e morais, quando não restam quaisquer constrangimentos e vergonhas diante da
demonstração explícita da sua incivilidade. É o Brasil mostrando o avesso do seu ser, na
expressão absoluta da sua barbárie contemporânea.
Não sei se esse é o fundo do poço
civilizatório nacional; mas, é um lugar profundamente desabonador. Estamos diante
de uma total inversão de valores e princípios. A vida, no que diz respeito à existência
humana, perdeu a sua importância em todos os sentidos. O que rege o curso da
história é o poder, em todas suas formas; sobretudo, o poder capital. De modo
que o ter, em detrimento do ser, se transformou em palavra de ordem.
De repente, é como se a solução
de todas as mazelas estivesse nas mãos do dinheiro, ou da tecnologia, ou do
poder. Só que não. A destruição dos biomas e ecossistemas, da maneira como tem
ocorrido, acarretará perdas incomensuráveis e irreparáveis. Esquecem-se de que
a vida, em todas as suas expressões, depende de água limpa e abundante, de ar
respirável, de temperatura equilibrada, de segurança alimentar para suprir suas
demandas nutricionais, ...
Acontece que para satisfazer a
todas essas necessidades vitais não basta apenas ter o dinheiro. Ele não produz
água limpa e abundante. Ele não produz ar respirável. Ele não equilibra a
temperatura do ambiente. Ele não produz alimentos. Parece óbvio! No entanto, infelizmente,
é preciso repetir essas verdades, quando se vive em um país imerso na sua
herança colonial exploratória. Quando os cidadãos não conseguem se desapegar de
certos paradigmas, absurdamente retrógrados e nocivos, ainda que isso custe a
sua própria sobrevivência.
O que temos bem diante de nossos
olhos é o instinto predador, que se manifesta nos modelos exploratórios, conduzindo
os recursos naturais renováveis ao status de não renováveis, por sua brutal reincidência
a colocá-los no ponto de não retorno (ou ponto de inflexão). Isso significa que
os ecossistemas simplesmente ultrapassaram a sua capacidade de suportar
alterações, perdendo a capacidade de reestabelecer o seu estado original. Portanto,
uma ameaça real que atinge a todos os seres vivos, sem exceção.
Mas, não é só isso. Quanto mais o
Brasil se permite reafirmar esse ranço colonial, mais ele estreita a sua dependência,
a sua subserviência internacional, em diferentes formas e conteúdos. A
destruição nos obriga, por exemplo, a buscar em outros lugares os meios de
garantir o suprimento das demandas internas. Passamos a importar ao invés de
exportar. Gastamos ao invés de lucrar. Deixamos
de protagonizar para sermos coadjuvantes no cenário internacional. Nos apequenamos
de todas as formas possíveis e imagináveis.
E aos que colocam essa questão no rol das picuinhas político-partidárias, para afetar a imagem e o poder desse ou daquele indivíduo, lamento informar que é o país, na sua totalidade, que está sendo prejudicado. Governos vêm e vão. O país fica. E nesse ficar, ele arrasta historicamente as consequências e os desdobramentos nefastos causados pela irresponsabilidade, pela anticidadania, pela antidemocracia, pelo desapreço à soberania, expressos por certos elementos de sua população.