sábado, 27 de janeiro de 2024

Nem tudo são flores, cores e alegrias na tropicalidade


Nem tudo são flores, cores e alegrias na tropicalidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pois é, moramos “em um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza” 1; mas, não sei se uma imensa maioria da população entende, em profundidade, o que isso realmente significa para o seu cotidiano.

Lamento; mas, a tropicalidade na exuberância geográfica, na diversidade de fauna e de flora, na presença de sol a maior parte do tempo, na riqueza hidrográfica, não diz tudo para nos trazer paz e felicidade.

Por trás dessa imagem irrepreensível da natureza, como uma pintura de Frans Post 2, há questões importantes, que fazem a beleza desbotar lentamente, por conta da própria ação antrópica de uso e ocupação do solo brasileiro. Tal processo interferiu diretamente na dinâmica socioambiental, trazendo, ao longo do tempo, impactos negativos bastante relevantes.

Dentre eles estão as chamadas doenças tropicais, ou seja, que ocorrem exclusiva ou especialmente na região dos trópicos, em razão das condições climáticas quentes e úmidas. Quem nunca ouviu falar sobre malária, doença de Chagas, leishmaniose (visceral e tegumentar), dengue e esquistossomose, por exemplo?

Tratam-se de patologias que existem no Brasil, desde sempre, e que, infelizmente, permanecem ameaçando as camadas mais frágeis e vulneráveis da população, dadas as condições socioambientais em que vivem. Embora, venham cada vez mais se disseminando pela população em geral.

Razão pela qual a Organização Mundial da Saúde (OMS), considerando que a tropicalidade afeta países da América (Central e do Sul), África (Central e Meridional), Ásia (Meridional e Sudeste Asiático) e Oceania (parte da Austrália e algumas ilhas), decidiu estabelecer, a partir de 2020, o dia 30 de janeiro, como Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs).

Afinal, além de “estarem ausentes da agenda global de saúde, receberem pouco financiamento e serem associadas ao estigma e à exclusão social”, elas “acometem populações negligenciadas e perpetuam um ciclo de maus resultados educacionais e oportunidades profissionais limitadas” 3. O que interfere diretamente nos índices de desigualdade socioeconômica em países tropicais.

Assim, comecei a refletir e a observar pela perspectiva atual brasileira, esse assunto. Infelizmente, grande parte dessas doenças é armazenada por vetores e hospedeiros nativos de áreas de flora intocadas.

Acontece que por força da antropização, de caráter predominantemente exploratório, nesses pouco mais de 500 anos de história do Brasil, essas áreas foram sendo impactadas pelo desmatamento, poluição hídrica / do solo / do ar, queimadas e assoreamento de rios e demais cursos d’água. Afugentando a fauna nativa e a obrigando a um processo de deslocamento forçado, para sobreviver.

De modo que os limites ecossistêmicos foram sendo abruptamente alterados e essas doenças passaram a estar cada vez mais próximas dos seres humanos, em áreas urbanizadas ou periurbanizadas.

Processos de readaptação das espécies se intensificaram, tendo em vista de que muitas perderam seus habitats naturais.  No entanto, uma vez presentes na nova realidade, as DTNs podem desencadear transtornos incalculáveis para a saúde pública.

Mas, não para por aí. Porque não bastasse a antropização em si, a realidade contemporânea esbarra diretamente na presença dos eventos extremos do clima, que exacerbam a existência de novas condições de sobrevivência dos seres vivos.

O que significa que o panorama de preocupação despertado pelas DTNs, por exemplo, adquiriu uma nova dimensão com base no cenário dos acontecimentos. Em suma, o que parecia poder ser negligenciado, agora, cobra um preço bastante elevado para as populações.

Depois de um 2023 arrebatador em termos climáticos, o Ministério da Saúde (MS), por exemplo, passou a monitorar mais atentamente o risco de uma nova epidemia de dengue, no país.

Segundo estimativas do órgão, “o Brasil pode atingir até 5 milhões de casos de dengue em 2024. O alto índice seria resultado de uma combinação de fatores, como calor intenso, grande volume de chuvas, e o ressurgimento dos sorotipos 3 e 4 do vírus que causa a doença” 4.

Entretanto, é preciso entender que a dengue é só um dos desafios da saúde pública brasileira, dentro desse novo cenário, tão adverso, que se configura com as mudanças climáticas.

Enchentes, como as que têm ocorrido no país, são portas abertas para doenças transmitidas diretamente pelas águas contaminadas, tais como leptospirose, tétano, hepatite A, e outras; mas, também, em razão do deslocamento social para outras áreas, difundindo a doença, como é o caso da malária.

Estamos diante dos frutos da antropização exacerbada, a qual, durante séculos, teimamos em aplaudir como força motriz do desenvolvimento e do progresso, sem ponderar sobre os dois lados da moeda.

Portanto, não pensamos a respeito. Não nos preparamos. Não nos precavemos. Agora, uma nova conjuntura está posta. A necessidade de correr atrás de todos os prejuízos, certamente, nos afligirá como nunca. A tal ponto que, talvez, a tropicalidade nos reste como mera expressão de arte, a qual não podemos mais sequer curtir com a devida alegria e descontração.



1 País Tropical (Jorge Bem Jor), 1969 - https://www.letras.mus.br/jorge-ben-jor/46647/

2 Frans Post (1612-1680) foi um pintor holandês. Chegou ao Brasil na comitiva do conde Maurício de Nassau quando esse foi designado para governar as terras conquistadas pela Holanda, no Nordeste do Brasil. Frans Post tornou-se o primeiro paisagista do Brasil do século XVII. (https://www.ebiografia.com/frans_post/)