Nem tudo
são flores, cores e alegrias na tropicalidade
Por
Alessandra Leles Rocha
Pois é, moramos “em um país
tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza” 1;
mas, não sei se uma imensa maioria da população entende, em profundidade, o que
isso realmente significa para o seu cotidiano.
Lamento; mas, a tropicalidade na exuberância
geográfica, na diversidade de fauna e de flora, na presença de sol a maior
parte do tempo, na riqueza hidrográfica, não diz tudo para nos trazer paz e
felicidade.
Por trás dessa imagem irrepreensível
da natureza, como uma pintura de Frans Post 2,
há questões importantes, que fazem a beleza desbotar lentamente, por conta da
própria ação antrópica de uso e ocupação do solo brasileiro. Tal processo interferiu
diretamente na dinâmica socioambiental, trazendo, ao longo do tempo, impactos negativos
bastante relevantes.
Dentre eles estão as chamadas
doenças tropicais, ou seja, que ocorrem exclusiva ou especialmente na região
dos trópicos, em razão das condições climáticas quentes e úmidas. Quem nunca
ouviu falar sobre malária, doença de Chagas, leishmaniose (visceral e
tegumentar), dengue e esquistossomose, por exemplo?
Tratam-se de patologias que
existem no Brasil, desde sempre, e que, infelizmente, permanecem ameaçando as
camadas mais frágeis e vulneráveis da população, dadas as condições
socioambientais em que vivem. Embora, venham cada vez mais se disseminando pela
população em geral.
Razão pela qual a Organização
Mundial da Saúde (OMS), considerando que a tropicalidade afeta países da
América (Central e do Sul), África (Central e Meridional), Ásia (Meridional e
Sudeste Asiático) e Oceania (parte da Austrália e algumas ilhas), decidiu estabelecer,
a partir de 2020, o dia 30 de janeiro, como Dia Mundial das Doenças
Tropicais Negligenciadas (DTNs).
Afinal, além de “estarem
ausentes da agenda global de saúde, receberem pouco financiamento e serem
associadas ao estigma e à exclusão social”, elas “acometem populações
negligenciadas e perpetuam um ciclo de maus resultados educacionais e
oportunidades profissionais limitadas” 3.
O que interfere diretamente nos índices de desigualdade socioeconômica em países
tropicais.
Assim, comecei a refletir e a
observar pela perspectiva atual brasileira, esse assunto. Infelizmente, grande
parte dessas doenças é armazenada por vetores e hospedeiros nativos de áreas de
flora intocadas.
Acontece que por força da
antropização, de caráter predominantemente exploratório, nesses pouco mais de
500 anos de história do Brasil, essas áreas foram sendo impactadas pelo
desmatamento, poluição hídrica / do solo / do ar, queimadas e assoreamento de
rios e demais cursos d’água. Afugentando a fauna nativa e a obrigando a um
processo de deslocamento forçado, para sobreviver.
De modo que os limites
ecossistêmicos foram sendo abruptamente alterados e essas doenças passaram a
estar cada vez mais próximas dos seres humanos, em áreas urbanizadas ou
periurbanizadas.
Processos de readaptação das espécies
se intensificaram, tendo em vista de que muitas perderam seus habitats
naturais. No entanto, uma vez presentes
na nova realidade, as DTNs podem desencadear transtornos incalculáveis para a
saúde pública.
Mas, não para por aí. Porque não bastasse
a antropização em si, a realidade contemporânea esbarra diretamente na presença
dos eventos extremos do clima, que exacerbam a existência de novas condições de
sobrevivência dos seres vivos.
O que significa que o panorama de
preocupação despertado pelas DTNs, por exemplo, adquiriu uma nova dimensão com
base no cenário dos acontecimentos. Em suma, o que parecia poder ser
negligenciado, agora, cobra um preço bastante elevado para as populações.
Depois de um 2023 arrebatador em
termos climáticos, o Ministério da Saúde (MS), por exemplo, passou a monitorar
mais atentamente o risco de uma nova epidemia de dengue, no país.
Segundo estimativas do órgão, “o
Brasil pode atingir até 5 milhões de casos de dengue em 2024. O alto índice
seria resultado de uma combinação de fatores, como calor intenso, grande volume
de chuvas, e o ressurgimento dos sorotipos 3 e 4 do vírus que causa a doença” 4.
Entretanto, é preciso entender
que a dengue é só um dos desafios da saúde pública brasileira, dentro desse novo
cenário, tão adverso, que se configura com as mudanças climáticas.
Enchentes, como as que têm
ocorrido no país, são portas abertas para doenças transmitidas diretamente
pelas águas contaminadas, tais como leptospirose, tétano, hepatite A, e outras;
mas, também, em razão do deslocamento social para outras áreas, difundindo a
doença, como é o caso da malária.
Estamos diante dos frutos da
antropização exacerbada, a qual, durante séculos, teimamos em aplaudir como força
motriz do desenvolvimento e do progresso, sem ponderar sobre os dois lados da
moeda.
Portanto, não pensamos a respeito.
Não nos preparamos. Não nos precavemos. Agora, uma nova conjuntura está posta. A
necessidade de correr atrás de todos os prejuízos, certamente, nos afligirá
como nunca. A tal ponto que, talvez, a tropicalidade nos reste como mera
expressão de arte, a qual não podemos mais sequer curtir com a devida alegria e
descontração.
1 País
Tropical (Jorge Bem Jor), 1969 - https://www.letras.mus.br/jorge-ben-jor/46647/
2 Frans Post
(1612-1680) foi um pintor holandês. Chegou ao Brasil na comitiva do conde
Maurício de Nassau quando esse foi designado para governar as terras
conquistadas pela Holanda, no Nordeste do Brasil. Frans Post tornou-se o
primeiro paisagista do Brasil do século XVII. (https://www.ebiografia.com/frans_post/)