Por
Alessandra Leles Rocha
A perplexidade jornalística
nacional, em relação aos recentes acontecimentos de espionagem política, me
parece equivocada. Não que os fatos não sejam gravíssimos, repugnantes,
despropositais. Acontece que arapongagem, nesse país, é ranço histórico. E esse,
então, é que deveria ser o ponto de partida para a discussão. Como diz o
provérbio, “cortar o mal pela raiz”.
Se nada for feito, nesse sentido,
esse será só mais um capítulo deplorável da história brasileira. Chegamos ao
limite. O caldo, literalmente, entornou. Não dá mais para aceitar tanta condescendência,
tanta tolerância, tanta indulgência, tanta compreensão. Vigiar, investigar,
espionar, sem autorização judicial é crime. Contra o cidadão. Contra a Democracia.
Contra o país. Simples assim.
No entanto, governos de viés autoritário,
autocrático, tirânico, e o Brasil teve muitos, têm a praxe de se valer desses
instrumentos para aparelhar, com certas informações, o seu poder e governança. Mas,
vejam bem, do mesmo modo que muitos dizem matar em nome de Deus, por aí, há os
que arapongam em nome da segurança, por aqui. Sempre na onda maquiavélica de
que “os fins justificam os meios”.
Será?! Não sei. Tenho cá as
minhas dúvidas. Tanta vigilância, investigação, espionagem, me fazem ter a
impressão de fragilidade, de vulnerabilidade, de inconsistência, ou seja, um
pseudopoder que não se garante.
Que enxerga monstros, fantasmas,
ameaças, por todos os lados, o tempo todo, porque no fundo conhece bem os
caminhos percorridos e os rastros neles deixados. Em suma, sabem bem o que
fizeram nos verões passados e como essas histórias podem comprometer os verões
futuros.
A grande questão é que os
arapongas, em quaisquer de seus níveis de hierarquia, não admitem ser punidos
pela sua indiscrição institucional. Eles querem liberdade, plena e irrestrita,
para continuarem no ofício, nutrindo seus delírios conspiratórios, suas
realidades fictícias, seus pavores injustificados, seus inimigos imaginários.
Em um país, cuja última
participação no fronte foi durante a Segunda Guerra Mundial, talvez, se entenda
que a arapongagem se tornou um modo peculiar de beligerância. Sem tiros,
granadas e canhões; mas, com a mesma adrenalina das tensões, dos movimentos
táticos e estratégicos. Só um jeito estranho de autoafirmação para demonstrar
força e poder sobre os outros. Como o rugido de um leão banguela.
E como se costuma dizer, por aí, “velhos
hábitos nunca morrem”. Assim, a arapongagem, no contexto contemporâneo, foi
retirada do baú porque se descobriu, com a força das mídias sociais, que vigiar,
investigar ou espionar pseudodesafetos poderia ser útil no sentido de destruir
reputações e imagens, provocando rapidamente o silenciamento do outro.
Em tese, acertaram na mosca. Com o
alcance inimaginável das novas tecnologias e a disposição das pessoas em viver
a realidade virtual, a arapongagem deitou e rolou na utilização de programas espiões,
drones e outras parafernálias, que lhes possibilitassem depois a construção de
Fake News e de recortes pautados em pós-verdade, para atuar no novo campo de
batalhas do poder.
Mas, no campo dos fatos reais, da
verdade nua e crua, ela não obteve sucesso. Não, não conseguiu apagar ou banir
os seus desafetos, da dinâmica cotidiana.
Aliás, muitos nem sabiam que
estavam na mira da arapongagem. De fato, pouco se sabe, até o momento, sobre a
vasta lista de nomes que figuram nos autos do recente caso de repercussão nacional.
Só para completar o cenário do
absurdo, o que a imensa maioria das pessoas não se dá conta é de que toda essa
engenharia da arapongagem é custeada com recursos públicos.
Dinheiro que poderia estar sendo
usado para mitigar mazelas nacionais históricas, está indo direto para fins
criminosos, sem o menor senso de responsabilidade, de compromisso cidadão e de
pudor. E isso, caro (a) leitor (a), é crime.
Aliás, em 2020, “Em julgamento
sobre o compartilhamento de dados com a Abin (Agência Brasileira de
Inteligência), a ministra Carmem Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal),
afirmou que ‘arapongagem’ é crime e que a agência precisa justificar as solicitações
para o envio de dados por outros órgãos” 1.
Mas, não apenas em relação à
Abin. Qualquer órgão ou instituição pública ou privada, cidadão comum ou não,
que utilize dessas práxis, para atentar contra à privacidade e/ou à dignidade
do outro, está cometendo um crime e deve ser sim, responsabilizado
juridicamente pelos atos cometidos.
Afinal, ninguém está acima da lei
(art. 5º, inciso II, CF. de 1988). Embora, muita gente ainda acredite pertencer
a uma casta de regalias e privilégios, como derivação dos tempos coloniais. Só que não. Os tempos são outros.
Portanto, toda essa efervescência
em que está mergulhado o país, nos últimos dias, merece muita atenção e
reflexão. São tempos de desconstruir velhos paradigmas, de olhar para a
história nacional com mais profundidade e criticidade.
A sujidade da vida não está
somente naquilo que nos salta aos olhos; mas, no invisível, nas entrelinhas,
nas camadas mais internas dos fatos.
Se ela não é limpa, fica ali,
proliferando, na falsa ilusão de que a sua invisibilidade sempre irá lhe
proteger, eximir. Mas, chega sempre o momento em que não há espaço para se
esconder mais. Porque as bordas dos tapetes da história são curtos.
É por essas e por outras que, discutindo,
ainda que breve e superficialmente, sobre a arapongagem nacional, acabamos por concordar
com Nelson Rodrigues, “Atrás de todo paladino da moral, vive um canalha!”.