Não resta ou, pelo menos, não deveria restar, qualquer dúvida...
Por Alessandra
Leles Rocha
Não resta ou, pelo menos, não
deveria restar, qualquer dúvida quanto ao desejo de poder da ultradireita, que se
expande por todo o mundo. Mas, olhando com bastante atenção, é possível
perceber que não é só isso. Depurando as camadas discursivas, daqui e dali, há
um traço efetivamente marcante e comum aos diferentes grupos que representam
esse matiz político-partidário. Estou falando do colonialismo, do imperialismo ou
neocolonialismo.
A xenofobia na Europa 1, por exemplo, diz muito sobre isso. Rejeitar,
radical e violentamente, a presença de migrantes, de refugiados, é uma forma de
conter eventuais pressões sobre as reparações sociais históricas, que diversos
países europeus, deveriam tratar em relação às suas ex-colônias.
Entretanto, não é só por lá que
isso se evidencia. Ainda sem resolver seus diversos embaraços com a justiça, o candidato
favorito pelo Partido Republicano, a concorrer nas eleições deste ano, nos EUA,
já declarou que se for eleito pretende deportar do seu país milhões de imigrantes
2.
Aí, você me pergunta; mas, e o
Brasil? Ele é ex-colônia. Por aqui o viés é racista e aporofóbico; mas, pelos mesmos
motivos da xenofobia presente em outros países. As marcas de uma colonização de
exploração não foram superadas ao longo dos séculos. A estratificação social no
país permanece ainda definida pelo controle socioeconômico de uma ínfima elite burguesa,
a qual substituiu o papel da corte colonizadora metropolitana.
Assim, não é difícil perceber,
por exemplo, como as políticas públicas de reparação histórica em favor dos
negros, dos quilombolas, dos povos originários, é constantemente atacada pela
ala ultradireitista nacional. A velha defesa de virar as páginas deploráveis,
abjetas e indignas da história, serve para não ter que desconstruir velhos paradigmas,
que poderiam expor sua face mais cruel, perversa e bárbara.
Mais do que o poder, em todas as
suas formas e organizações, a ultradireita rechaça quaisquer responsabilidades
sociais e históricas, em todos os lugares onde está presente. Seu ideário exala
tanta desumanidade que lança os indivíduos à própria sorte.
E para tal, ela se vale
explicitamente do “Uso do poder político social, especialmente por parte do
Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições
de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade,
em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo),
quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 3.
E isso nada mais é do que ... necropolítica.
Vejam, por exemplo, que um ano
depois da primeira reportagem televisiva, realizada em área Yanomami, no
Brasil, por conta de uma das maiores crises humanitárias da história nacional,
a equipe voltou ao local e, em 14 de janeiro de 2024, exibiu uma nova matéria a
respeito 4. Infelizmente, poucos avanços,
considerando que a garimpagem está se reafirmando e institucionalizando a violência
contra os povos originários, impedindo a sua recuperação e sobrevivência.
Entretanto, a estranheza que foi
possível sentir em relação ao relato jornalístico veio do fato de que, enquanto
a matéria era realizada, aviões dos garimpos sobrevoavam a área em franca
intenção de intimidação, sem nenhuma resposta das autoridades.
Como se os criminosos tivessem
plena consciência da impunidade, o que faz questionar quais são as intenções
reais do governo federal em relação à proteção e defesa dos Yanomamis, e demais
povos originários, que habitam a região.
Sim, porque passado um ano, o
trabalho feito é de “enxugar gelo”. Todo país dispõe, em suas estratégias
de defesa, aviões (tripulados ou não), de reconhecimento e/ou patrulha aérea,
inclusive, o Brasil. E um de seus papéis fundamentais é fazer com que aeronaves
inimigas, no caso, criminosas, assim que localizadas no espaço aéreo, sejam
orientadas pelas forças militares e de segurança a pousarem, a fim de que haja a
apreensão da mesma e de seus ocupantes. Em casos de recusa, essas aeronaves
podem ser abatidas pela equipe de reconhecimento, em pleno voo.
Assim, onde estão nossos aviões de
reconhecimento e/ou patrulha aérea que ainda não foram utilizados na Amazônia,
hein? Não há como recuperar as áreas degradadas e contaminadas por mercúrio e
outros metais pesados, utilizados na garimpagem, se os criminosos permanecem no
local. Voando livres, leves e soltos.
Não adianta, por terra ou por
barco, tentar destruir os acampamentos, os maquinários, a estrutura de garimpo.
Diante do fato de que a atividade garimpeira presente na Amazônia dispõe de
cifras milionárias, ela consegue suprir as perdas decorrentes das frágeis ações
de defesa e segurança pública.
Mas, se elas começam a perder a
sua capacidade de monitorar a chegada do poder público no local, através da
apreensão e/ou destruição de seus aviões e drones, a situação muda de figura.
Pois é, não basta só colocar
equipes de defesa e segurança pública em terra, em áreas estratégicas, porque a
região é melhor protegida e resguardada pela visão aérea, inclusive, com o
apoio do monitoramento por satélite. Então, a pergunta que não quer calar é: quem
se opõe a fazer o que deve ser feito e por quê?
Penso que esse caso é didático
para explicar como as forças ultradireitistas, com o apoio declarado, ou sutil,
de outros matizes da Direita, agem. Aliás, a herança histórica da exploração de
recursos minerais e vegetais, no Brasil, é um traço da colonização.
Que não só levou a extinção de milhares
de recursos; mas, também, a dizimação de milhares de povos originários. O que promoveu
um imenso prejuízo ao país, pela destruição de boa parte da identidade
sociocultural genuinamente brasileira.
Pena que a crise humanitária dos
Yanomamis não seja a única. Quantos casos de trabalho análogo à escravidão têm
sido trazidos à tona, no Brasil? Quantos assassinatos brutais de pessoas
negras, quilombolas, periféricas, pobres, estampam as mídias contemporâneas, no
país? Quantos casos de injúrias raciais, em cada canto das cidades? Quantos ...?
Como se vê, a ultradireita repete
padrões históricos na sua sanha expansionista e dominadora, seja no Brasil ou ao
redor do mundo. Daí o risco de que, diante da sua expansão, “As
desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um
ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a
forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas,
xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” (Achille Mbembe).
A ultradireita; mas, também, a
Direita e seus demais matizes, querem a liberdade de agir com a total isenção
de jamais serem responsabilizados por suas atitudes e comportamentos. Eles se
percebem e entendem em uma posição de superioridade e de importância tão
absolutas, que isso faz dos demais objetos, no contexto da sua necropolítica.
E um objeto não tem identidade,
não tem direitos, não tem subjetividade. Só existe para servir, quando for de
interesse de alguém que tenha poder. Portanto, essas pessoas querem sim, se
apropriar do direito de decidir quem pode permanecer vivo ou deve morrer.
1 https://www.dn.pt/opiniao/a-extrema-direita-e-o-aumento-da-xenofobia-17559837.html/
2 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/01/trump-chama-imigrantes-de-terroristas-e-volta-a-dizer-que-fechara-fronteira.shtml
https://exame.com/mundo/trump-planeja-deportar-milhoes-de-imigrantes-se-vencer-eleicao-diz-jornal/
4 Apesar dos avanços, situação dos Yanomami ainda é delicada, um ano após a crise humanitária - 14/01/2024 - https://globoplay.globo.com/v/12265989/