sábado, 20 de janeiro de 2024

Não resta ou, pelo menos, não deveria restar, qualquer dúvida...


Não resta ou, pelo menos, não deveria restar, qualquer dúvida...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não resta ou, pelo menos, não deveria restar, qualquer dúvida quanto ao desejo de poder da ultradireita, que se expande por todo o mundo. Mas, olhando com bastante atenção, é possível perceber que não é só isso. Depurando as camadas discursivas, daqui e dali, há um traço efetivamente marcante e comum aos diferentes grupos que representam esse matiz político-partidário. Estou falando do colonialismo, do imperialismo ou neocolonialismo.

A xenofobia na Europa 1, por exemplo, diz muito sobre isso. Rejeitar, radical e violentamente, a presença de migrantes, de refugiados, é uma forma de conter eventuais pressões sobre as reparações sociais históricas, que diversos países europeus, deveriam tratar em relação às suas ex-colônias.

Entretanto, não é só por lá que isso se evidencia. Ainda sem resolver seus diversos embaraços com a justiça, o candidato favorito pelo Partido Republicano, a concorrer nas eleições deste ano, nos EUA, já declarou que se for eleito pretende deportar do seu país milhões de imigrantes 2.

Aí, você me pergunta; mas, e o Brasil? Ele é ex-colônia. Por aqui o viés é racista e aporofóbico; mas, pelos mesmos motivos da xenofobia presente em outros países. As marcas de uma colonização de exploração não foram superadas ao longo dos séculos. A estratificação social no país permanece ainda definida pelo controle socioeconômico de uma ínfima elite burguesa, a qual substituiu o papel da corte colonizadora metropolitana.

Assim, não é difícil perceber, por exemplo, como as políticas públicas de reparação histórica em favor dos negros, dos quilombolas, dos povos originários, é constantemente atacada pela ala ultradireitista nacional. A velha defesa de virar as páginas deploráveis, abjetas e indignas da história, serve para não ter que desconstruir velhos paradigmas, que poderiam expor sua face mais cruel, perversa e bárbara.

Mais do que o poder, em todas as suas formas e organizações, a ultradireita rechaça quaisquer responsabilidades sociais e históricas, em todos os lugares onde está presente. Seu ideário exala tanta desumanidade que lança os indivíduos à própria sorte.

E para tal, ela se vale explicitamente do “Uso do poder político social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 3. E isso nada mais é do que ... necropolítica.

Vejam, por exemplo, que um ano depois da primeira reportagem televisiva, realizada em área Yanomami, no Brasil, por conta de uma das maiores crises humanitárias da história nacional, a equipe voltou ao local e, em 14 de janeiro de 2024, exibiu uma nova matéria a respeito 4. Infelizmente, poucos avanços, considerando que a garimpagem está se reafirmando e institucionalizando a violência contra os povos originários, impedindo a sua recuperação e sobrevivência.

Entretanto, a estranheza que foi possível sentir em relação ao relato jornalístico veio do fato de que, enquanto a matéria era realizada, aviões dos garimpos sobrevoavam a área em franca intenção de intimidação, sem nenhuma resposta das autoridades.

Como se os criminosos tivessem plena consciência da impunidade, o que faz questionar quais são as intenções reais do governo federal em relação à proteção e defesa dos Yanomamis, e demais povos originários, que habitam a região.

Sim, porque passado um ano, o trabalho feito é de “enxugar gelo”. Todo país dispõe, em suas estratégias de defesa, aviões (tripulados ou não), de reconhecimento e/ou patrulha aérea, inclusive, o Brasil. E um de seus papéis fundamentais é fazer com que aeronaves inimigas, no caso, criminosas, assim que localizadas no espaço aéreo, sejam orientadas pelas forças militares e de segurança a pousarem, a fim de que haja a apreensão da mesma e de seus ocupantes. Em casos de recusa, essas aeronaves podem ser abatidas pela equipe de reconhecimento, em pleno voo.

Assim, onde estão nossos aviões de reconhecimento e/ou patrulha aérea que ainda não foram utilizados na Amazônia, hein? Não há como recuperar as áreas degradadas e contaminadas por mercúrio e outros metais pesados, utilizados na garimpagem, se os criminosos permanecem no local. Voando livres, leves e soltos.

Não adianta, por terra ou por barco, tentar destruir os acampamentos, os maquinários, a estrutura de garimpo. Diante do fato de que a atividade garimpeira presente na Amazônia dispõe de cifras milionárias, ela consegue suprir as perdas decorrentes das frágeis ações de defesa e segurança pública.

Mas, se elas começam a perder a sua capacidade de monitorar a chegada do poder público no local, através da apreensão e/ou destruição de seus aviões e drones, a situação muda de figura.

Pois é, não basta só colocar equipes de defesa e segurança pública em terra, em áreas estratégicas, porque a região é melhor protegida e resguardada pela visão aérea, inclusive, com o apoio do monitoramento por satélite. Então, a pergunta que não quer calar é: quem se opõe a fazer o que deve ser feito e por quê?  

Penso que esse caso é didático para explicar como as forças ultradireitistas, com o apoio declarado, ou sutil, de outros matizes da Direita, agem. Aliás, a herança histórica da exploração de recursos minerais e vegetais, no Brasil, é um traço da colonização.

Que não só levou a extinção de milhares de recursos; mas, também, a dizimação de milhares de povos originários. O que promoveu um imenso prejuízo ao país, pela destruição de boa parte da identidade sociocultural genuinamente brasileira.

Pena que a crise humanitária dos Yanomamis não seja a única. Quantos casos de trabalho análogo à escravidão têm sido trazidos à tona, no Brasil? Quantos assassinatos brutais de pessoas negras, quilombolas, periféricas, pobres, estampam as mídias contemporâneas, no país? Quantos casos de injúrias raciais, em cada canto das cidades? Quantos ...?

Como se vê, a ultradireita repete padrões históricos na sua sanha expansionista e dominadora, seja no Brasil ou ao redor do mundo. Daí o risco de que, diante da sua expansão, “As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” (Achille Mbembe).

A ultradireita; mas, também, a Direita e seus demais matizes, querem a liberdade de agir com a total isenção de jamais serem responsabilizados por suas atitudes e comportamentos. Eles se percebem e entendem em uma posição de superioridade e de importância tão absolutas, que isso faz dos demais objetos, no contexto da sua necropolítica.

E um objeto não tem identidade, não tem direitos, não tem subjetividade. Só existe para servir, quando for de interesse de alguém que tenha poder. Portanto, essas pessoas querem sim, se apropriar do direito de decidir quem pode permanecer vivo ou deve morrer.



4 Apesar dos avanços, situação dos Yanomami ainda é delicada, um ano após a crise humanitária - 14/01/2024 - https://globoplay.globo.com/v/12265989/