A beleza
além do espelho
Por
Alessandra Leles Rocha
Há dois anos eu assisti ao
documentário “Audrey” (2020) 1,
sobre a vida do ícone do cinema Audrey Hepburn, e hoje tive a oportunidade de
revê-lo. Bom, em tempos em que os seres humanos escolhem a verdade que lhe é
mais agradável ou palatável, esse documentário chega para desconstruir essa
possibilidade.
Nem tudo foram flores, holofotes,
tapetes vermelhos, joias ou grifes, na vida de Audrey. Essa superficialidade
que arrebata milhões de fãs, mesmo em pleno século XXI, nem de longe traduz
quem foi exatamente o ser humano por trás das lentes do cinema. Portanto, esse
é um documentário que oportuniza trazer à tona uma humanização em contraponto
ao glamour.
E isso é muito bom, muito
oportuno. A busca frenética em torno dos resultados, tantas vezes, impostos
pela competitividade selvagem contemporânea, faz com que as pessoas se esqueçam
de si mesmas, da sua história, do seu percurso de vida. Estrelas não nascem do
acaso. Elas são frutos de trajetórias bastante humanas, repletas de altos e
baixos, de sucessos e de fracassos, de sorrisos e de lágrimas.
Mas, especialmente diante de uma
realidade altamente tecnologizada e midiática, sustentada livremente pelo
recurso discursivo da pós-verdade, o lado fantástico e perfeito da vida parece
acontecer em um piscar de olhos.
Basta recortar daqui e dali, editar,
formatar, e o glamour está pronto para enfeitiçar e hipnotizar legiões de
pessoas, as quais lutam arduamente para se distanciarem da sua realidade
cotidianamente cinza e complexa. Recordando Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe
parece”.
A ilusão tem alimentado, cada vez
mais, as novas gerações. Acontece que a ilusão desumaniza e ao fazer isso,
desprepara os indivíduos para os desafios existentes. Sonhos são importantes
sim; mas, é preciso modulá-los e ajustá-los dentro do roteiro de vida que se
apresenta para cada um.
Basta observar, quantas não são
as histórias de pessoas que lutaram bravamente por um sonho e acabaram
trilhando caminhos totalmente diferentes? O que não significa que elas não
sejam bem-sucedidas, felizes, realizadas.
Aliás, a percepção do sucesso é
individual, não é coletiva. O que é sucesso para um pode não ser para outro. O problema
é que a sociedade de consumo atrelou o sucesso ao TER. Ter dinheiro. Ter fama. Ter
glamour. ... Então, ainda há quem tenha essa visão distorcida e equivocada a
respeito, principalmente, pelo fato de se permitir impactar pelas pressões
sociais externas.
Mas, o sucesso só se define pelo
conjunto das próprias subjetividades. Há quem veja o sucesso desenhado numa
vida simples. Há quem se sinta bem-sucedido em uma vida errante. Há quem
perceba o sucesso abstendo-se do corre-corre dos centros urbanos. Enfim... Cada
um pode alcançar suas subjetividades por caminhos identitários totalmente
díspares. Daí a importância de não se deixar render pelo efeito manada contemporâneo.
Ora, antes de ser estrela, todo
mundo é gente de carne e osso. De modo que já passou por poucas e boas, as
quais inevitavelmente deixaram marcas e cicatrizes. Algumas imperceptíveis. Outras
dolorosas. E, também, as que teimam em sangrar de vez em quando.
Por isso, as cascas nem sempre
refletem o conteúdo das sementes. Não é incomum que os seres humanos sejam obrigados
a vestir uma carapaça, para enfrentar o mundo, tendo sua alma dilacerada pela tristeza,
pela dor, pelo sofrimento. ... Nem tudo o que parece é.
Daí a importância de prestar
atenção às palavras de Pirandello, quando ele diz que “O prazer que um
objeto nos proporciona não se encontra no próprio objeto. A imaginação
embeleza-o, cercando-o e quase o irradiando com imagens estimadas. Em suma, no
objeto amamos aquilo que nós mesmos colocamos nele”.
O que significa que ao objetificarmos
as pessoas, a fim de que elas possam caber nas nossas expectativas, nos nossos
sonhos, isso retira delas a possibilidade de ser e existir em toda a sua
plenitude. Deixamos de enxergar o ser humano para enxergar uma idealização
nossa. Deixamos de ver a beleza além do espelho.
Algo que é extremamente ruim, não
só pelo comportamento deplorável que assumimos ao fazer isso; mas, porque nos
privamos de aprender e nos aprimorar com que o outro tem a nos ensinar sobre si
mesmo.
Assim, para finalizar essa breve
reflexão, eu trago uma citação de Audrey Hepburn, “Pessoas, muito mais que
coisas, devem ser restauradas, revividas, resgatadas e redimidas: jamais jogue
alguém fora”. Porque essas palavras nos dão a exata dimensão de que “Não
é preciso entrar para a história para fazer um mundo melhor” (Mahatma Gandhi).
1 https://www.filmelier.com/br/film/15263/audrey
AUDREY (2020) Official Trailer - https://www.youtube.com/watch?v=DOY77nyd6fY