quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A beleza além do espelho


A beleza além do espelho

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há dois anos eu assisti ao documentário “Audrey” (2020) 1, sobre a vida do ícone do cinema Audrey Hepburn, e hoje tive a oportunidade de revê-lo. Bom, em tempos em que os seres humanos escolhem a verdade que lhe é mais agradável ou palatável, esse documentário chega para desconstruir essa possibilidade.

Nem tudo foram flores, holofotes, tapetes vermelhos, joias ou grifes, na vida de Audrey. Essa superficialidade que arrebata milhões de fãs, mesmo em pleno século XXI, nem de longe traduz quem foi exatamente o ser humano por trás das lentes do cinema. Portanto, esse é um documentário que oportuniza trazer à tona uma humanização em contraponto ao glamour.

E isso é muito bom, muito oportuno. A busca frenética em torno dos resultados, tantas vezes, impostos pela competitividade selvagem contemporânea, faz com que as pessoas se esqueçam de si mesmas, da sua história, do seu percurso de vida. Estrelas não nascem do acaso. Elas são frutos de trajetórias bastante humanas, repletas de altos e baixos, de sucessos e de fracassos, de sorrisos e de lágrimas.

Mas, especialmente diante de uma realidade altamente tecnologizada e midiática, sustentada livremente pelo recurso discursivo da pós-verdade, o lado fantástico e perfeito da vida parece acontecer em um piscar de olhos.

Basta recortar daqui e dali, editar, formatar, e o glamour está pronto para enfeitiçar e hipnotizar legiões de pessoas, as quais lutam arduamente para se distanciarem da sua realidade cotidianamente cinza e complexa. Recordando Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe parece”.

A ilusão tem alimentado, cada vez mais, as novas gerações. Acontece que a ilusão desumaniza e ao fazer isso, desprepara os indivíduos para os desafios existentes. Sonhos são importantes sim; mas, é preciso modulá-los e ajustá-los dentro do roteiro de vida que se apresenta para cada um.

Basta observar, quantas não são as histórias de pessoas que lutaram bravamente por um sonho e acabaram trilhando caminhos totalmente diferentes? O que não significa que elas não sejam bem-sucedidas, felizes, realizadas.

Aliás, a percepção do sucesso é individual, não é coletiva. O que é sucesso para um pode não ser para outro. O problema é que a sociedade de consumo atrelou o sucesso ao TER. Ter dinheiro. Ter fama. Ter glamour. ... Então, ainda há quem tenha essa visão distorcida e equivocada a respeito, principalmente, pelo fato de se permitir impactar pelas pressões sociais externas.  

Mas, o sucesso só se define pelo conjunto das próprias subjetividades. Há quem veja o sucesso desenhado numa vida simples. Há quem se sinta bem-sucedido em uma vida errante. Há quem perceba o sucesso abstendo-se do corre-corre dos centros urbanos. Enfim... Cada um pode alcançar suas subjetividades por caminhos identitários totalmente díspares. Daí a importância de não se deixar render pelo efeito manada contemporâneo.

Ora, antes de ser estrela, todo mundo é gente de carne e osso. De modo que já passou por poucas e boas, as quais inevitavelmente deixaram marcas e cicatrizes. Algumas imperceptíveis. Outras dolorosas. E, também, as que teimam em sangrar de vez em quando.

Por isso, as cascas nem sempre refletem o conteúdo das sementes. Não é incomum que os seres humanos sejam obrigados a vestir uma carapaça, para enfrentar o mundo, tendo sua alma dilacerada pela tristeza, pela dor, pelo sofrimento. ... Nem tudo o que parece é.

Daí a importância de prestar atenção às palavras de Pirandello, quando ele diz que “O prazer que um objeto nos proporciona não se encontra no próprio objeto. A imaginação embeleza-o, cercando-o e quase o irradiando com imagens estimadas. Em suma, no objeto amamos aquilo que nós mesmos colocamos nele”.

O que significa que ao objetificarmos as pessoas, a fim de que elas possam caber nas nossas expectativas, nos nossos sonhos, isso retira delas a possibilidade de ser e existir em toda a sua plenitude. Deixamos de enxergar o ser humano para enxergar uma idealização nossa. Deixamos de ver a beleza além do espelho.

Algo que é extremamente ruim, não só pelo comportamento deplorável que assumimos ao fazer isso; mas, porque nos privamos de aprender e nos aprimorar com que o outro tem a nos ensinar sobre si mesmo.

Assim, para finalizar essa breve reflexão, eu trago uma citação de Audrey Hepburn, “Pessoas, muito mais que coisas, devem ser restauradas, revividas, resgatadas e redimidas: jamais jogue alguém fora”. Porque essas palavras nos dão a exata dimensão de que “Não é preciso entrar para a história para fazer um mundo melhor” (Mahatma Gandhi).