domingo, 17 de dezembro de 2023
sábado, 16 de dezembro de 2023
Reflexão natalina
Reflexão
natalina
Por Alessandra
Leles Rocha
Por mais que eu tenha consciência
de que o Natal tem sido aviltado na sua essência, em razão de uma apropriação indébita pela sociedade de consumo, permaneço convicta na minha intenção de refletir sobre
seu significado e compartilhar minhas observações, quem sabe, resgatando algum
olhar, teimosamente turvado, sobre o assunto.
Lá se vão 2023 anos, desde que
uma família humilde se viu obrigada, pela tirania do poder, a se deslocar pelo
deserto, para que seu filho não fosse vítima fatal da crueldade humana. O pobre
menino nasceu em condições precárias, sem quaisquer regalias ou privilégios. E
é por causa dele, Jesus de Nazaré, que o Natal existe. Afinal, ele nasceu em 25
de dezembro.
Portanto, o nascimento do filho
de Deus, do salvador do mundo, segundo os cristãos, não é uma celebração
embalada por valores mundanos. Natal não é uma festa destituída do simbolismo
sagrado, da conexão mais profunda com a fé. O Natal nos ensina a olhar além das
probabilidades, das aparências, das cascas, dos vernizes, das máscaras.
Realisticamente, todos os prognósticos
eram contrários ao nascimento do menino Jesus. Mas... O que significa que o
Natal, em si, é um milagre. Um milagre que rompe com rótulos, com estereótipos,
com preconceitos, para trazer à luz da consciência humana certos valores, tais
como a família, o afeto, a união, a comunhão, o cuidado. O nascimento de Cristo
enaltece uma humanidade genuína que, apesar de todos os pesares, ainda habita
em cada indivíduo, seja ele quem for.
No entanto, falar de pobreza, de dignidade
humana, de amor, de empatia, de fraternidade, ... é algo tão distante dos
interesses da sociedade de consumo, que foi por esse motivo que ela se empenhou
em uma ressignificação da data. Ora, considerando que a contemporaneidade adota
o individualismo e o narcisismo, como pilares de sua sustentação, a história
real do nascimento de Jesus de Nazaré tornou-se um entrave aos seus interesses
capitais e de poder.
Acontece que se engana quem pensa
que essa ressignificação chegou pelas mãos do Papai Noel, o Bom Velhinho! Ele, também,
foi remodelado para caber no Natal da sociedade de consumo! Segundo registros a
respeito de sua origem, ela está diretamente relacionada com São Nicolau de
Mira, também chamado de Nicolau Taumaturgo, um bispo cristão que viveu entre os
séculos III d.C. e IV d.C., na Ásia Menor (atual território da Turquia).
Conhecido por sua generosidade, ele
utilizou a sua herança para repartir entre os pobres. O que retorna o
simbolismo do Natal, à sua gênese, aos valores humanos, ou seja, amor,
respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade. Uma conexão com o
sagrado que emerge a partir da capacidade de manifestar a fé pelo
transbordamento da empatia entre seus pares.
Por isso, a sociedade de consumo
se viu obrigada a buscar, em outras referências, uma narrativa natalina que
melhor coubesse aos seus interesses. Algo que pudesse se alinhar mais
satisfatoriamente aos interesses do consumo e incorporar no inconsciente
coletivo essa imagem repleta de bens, produtos e serviços. E nada mais conveniente
do que se apropriar de uma figura como esse senhor rechonchudo, de barbas brancas,
roupas vermelhas, com ar de vovô bonzinho, que atende a todos os pedidos, sem
reclamar, na noite de 24 para 25 de dezembro.
Entretanto, isso não traduz o
Natal! Assim, como a opulência das festas. Ou a fartura desmedida sobre as mesas.
... Simplesmente, porque o ser humano esqueceu-se de si mesmo, daquilo que
realmente importa e o acompanha, 365 ou 366 dias por ano, enquanto está vivo. Tanto
que chegamos, em dezembro, com duas guerras em curso no planeta. Esse é o
retrato mais nítido da alienação humana.
Cecília Meireles tinha razão, “É
preciso amar as pessoas e usar as coisas e não amar as coisas e usar as pessoas”.
Na medida em que as relações humanas se permitiram romper com o que há de
mais belo, de mais puro e de mais sagrado, o Natal nosso de cada dia se esgarçou.
Porque se não há amor, respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade,
em uma data específica no calendário, o que dirá no restante dos dias?
Natal, caro (a) leitor (a), é
profissão de fé, na medida da reflexão, do comprometimento, da convicção, que nos
é exigida. É olhar, além do EU, para compreender a dimensão do NÓS. Por isso, a
tarefa mais importante em relação ao Natal é compreender que “O que somos é
um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à
vida” (Herbert de Souza – Betinho).
E olhando para todas as voltas e
reviravoltas que tem dado o planeta, nos deixando a um triz de desaparecer da
face da Terra, se permita olhar para o Natal, com a gratidão sublime, de quem
enxerga nesse pequeno recorte de tempo, uma possibilidade real para renovar os
votos, no sentido de se aproximar, de corpo e alma, do amor, do respeito, da união,
da fraternidade, da solidariedade e da humildade.
Pois, como diz a canção, “Então
é Natal, e o que você fez? / O ano termina e nasce outra vez / Então é Natal, a
festa Cristã / Do velho e do novo / Do amor como um todo / Então bom Natal / E
um Ano Novo também / Que seja feliz quem / Souber o que é o bem [...]” 1. Não se esqueça de que “É Natal
sempre que deixares Deus amar os outros através de ti ... sim, é Natal sempre
que sorrires ao teu irmão e lhe ofereceres a tua mão” (Madre Teresa de Calcutá).
1 Então é Natal
[Happy Xmas (War is over) – John Lennon / Yoko Ono] – Simone
terça-feira, 12 de dezembro de 2023
Para o bem ou para o mal ...
Para o
bem ou para o mal ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sem essa de dizer que, isso ou
aquilo, foi criado para o bem. Tudo que passe pelo intelecto humano é via dupla,
pode ser usado para o bem; mas, também, para o mal. As intenções, os interesses,
os desejos, são os verdadeiros determinantes do processo, daí não se poder
cravar, com total exatidão, por quais rumos seguirá a história.
Ora, desde que mundo é mundo,
sempre foi assim. A descoberta do fogo trouxe o calor; mas, também a
destruição. A criação do avião encurtou as distâncias; mas, facilitou a beligerância
das guerras. A indústria química trouxe inúmeras novidades para o dia a dia dos
seres humanos; mas, contribuiu para o desenvolvimento de inúmeras doenças. ...
Mas, centrando foco no mundo contemporâneo,
no recorte do século XXI, tempos totalmente High Techs, em que o contexto
virtual passou a dominar o cotidiano dos mais de 8 bilhões de seres humanos no
planeta, discutir sobre os efeitos tóxicos e nocivos das inúmeras novas
tecnologias em uso, torna-se cada vez mais fundamental.
Por quê? Resposta fácil. Nos
bastidores das parafernálias tecnológicas está o intelecto humano comandando o
show. Portanto, para o bem ou para o mal, elas estão susceptíveis a ele. O que
significa que não há garantias de que o uso tecnológico transite apenas a favor
da humanidade, dentro de um contexto ético, moral, humanitário, empático,
fraterno.
Aliás, é exatamente o oposto
disso, por exemplo, os esforços empenhados pelas mídias sociais. Quanto mais
conflito, beligerância, ódio, preconceito, ... mais elas se sentem favorecidas
e menos dispostas a impedir a circulação desse tipo de conteúdo.
É preciso entender que as pessoas
são atraídas por esses traços primitivos do comportamento humano, porque eles
legitimam impulsos que elas têm dentro de si mesmas. Então, elas se conectam as
essas notícias e gastam seu tempo consumindo esses conteúdos.
Enquanto isso, os algoritmos
trabalham freneticamente mapeando os seus perfis a fim de oferecer-lhes mais
produtos que possam interessá-las. O que significa que todo assunto
potencialmente polêmico é uma porta aberta para o enriquecimento cada vez mais
rápido e voraz das mídias sociais e do universo tecnológico.
Razão pela qual, as Big Techs
trabalham tão arduamente contra as investidas de controle e punição às suas
atividades. Por mais clichê que possa parecer, em pleno século XXI, elas atuam
sob a premissa de que “os fins justificam os meios”, ou seja, se o
dinheiro está jorrando em profusão nas suas contas, não lhes importa qual seja
a forma com que chegaram até lá. Daí a sua constante leniência diante de diversos
comportamentos que infringem às leis.
Aliás, nesse sentido, elas fazem
questão de trabalhar sobre narrativas, as quais tentam fazer parecer que o mundo
virtual é um espaço à parte da realidade, regido por uma outra lógica ética e
moral. Só que não. O mundo virtual é uma extensão do mundo real e está sim,
submetido aos mesmos regramentos sociais e jurídicos. Não é uma arena livre
para se fazer o que quiser, quando quiser.
Contudo, a força de persuasão ideológica
das Big Techs é tão poderosa que, ainda, há quem acredite que essas são “terras
sem lei” e saem, por aí, promovendo tensões, criando dissonâncias, agindo de
maneira irresponsável e delinquente. Alguns acreditam na proteção desse
gigantesco e importante guarda-chuvas tecnológico. Outros apostam na morosidade
da justiça para identificá-los e puni-los. Enfim...
O que se pode deduzir desse fenômeno,
como sendo um hábil construtor de pseudocorajosos úteis. Pois é, enquanto suas
atitudes abjetas e inomináveis constroem fortunas de uns e outros, eles próprios
são a caricatura do corajoso contemporâneo. Sim, são aqueles indivíduos que não
se expõem a dizer o que pensam, ou a fazerem o que querem, dentro dos limites
do mundo real, sob o medo das consequências e punições; mas, se apropriam de
uma valentia descomunal no mundo virtual.
Fato é que, sem a devida
regulação e fiscalização das atividades cibernéticas pelos governos, ou de uma Tecnoética
aplicada com mais afinco, a presença desses indivíduos dispostos ao “tudo ou
nada”, nos espaços virtuais, acaba fazendo com que os conflitos, as beligerâncias,
os ódios e os preconceitos arrastem milhões de pessoas para a frente das telas,
por horas a fio, contabilizando cifras inimagináveis e levando a humanidade a
um triste cenário de deterioração de valores e de princípios.
Mas, não para por aí. É essencial
que o cidadão comum se perceba mergulhado nessa podridão, até a raiz do cabelo,
na medida em que a tecnologia faz parte do seu cotidiano. Seja você parte
integrante, ou não, das mídias sociais, a verdade é que todos nos tornamos a
bola da vez desse mundo virtual. Num piscar de olhos e você pode ser julgado,
cancelado, ofendido, humilhado, exposto ou ameaçado, como se uma nova ordem
social, garantidora desses absurdos, tivesse sido instituída.
É por essas e por outras, que a necessidade de se discutir o desprezível, o canalha, o indigno, o infame, o crime, no âmbito do mundo virtual, é urgente. Já dizia Bertolt Brecht, “[...] Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. Afinal, todo silêncio tem em si um fundo de leniência, de tolerância, de condescendência, seja para o bem ou para o mal, segundo a perspectiva de quem silencia.
domingo, 10 de dezembro de 2023
Humanidade e Desumanidade. A face atemporal das dicotomias existenciais
Humanidade
e Desumanidade.
A face
atemporal das dicotomias existenciais.
Por Alessandra
Leles Rocha
10 de dezembro, dia internacional
dos Direitos Humanos 1. Parece
surreal uma data dessa natureza, quando se analisa da perspectiva de um mundo
tão perverso e cruel com seus habitantes. São tantos senões trabalhando contra –
belicosidades, violências, preconceitos, intolerâncias, ... – que o essencial
da vida se torna, quase, uma regalia, um privilégio.
Mas, para início de conversa, o
ponto de partida para a desconstrução e ressignificação do termo Direitos
Humanos vem da compreensão de que eles não dizem respeito apenas aos indivíduos
lançados à bandidagem, ao crime. Direitos humanos falam de e para todos os
membros da espécie Homo sapiens, ou seja, eu, você, o outro,
independente de gênero, raça, credo, escolaridade, status, nacionalidade,
enfim.
Simplesmente, porque direitos humanos
falam de direitos indivisíveis, naturais e essenciais à dignidade humana. Portanto,
direito à vida, à liberdade, ao trabalho, à educação, à saúde, à cultura, ao
lazer, à alimentação, à segurança, ... sem discriminação de qualquer tipo. Bem, pelo menos em tese, deveria ser assim.
No entanto, historicamente, as
relações sociais foram se desvirtuando e se corrompendo, a tal ponto, que colocaram
os direitos humanos na condição de um bem a ser desfrutado por uns em
detrimento de outros. Através das desigualdades, sob as mais diferentes formas
e conteúdos, a humanidade restringe e limita o acesso a esses direitos.
Como se fosse aceitável legitimar
a existência de uma fronteira entre aqueles que merecem e os que não merecem usufruir
da dignidade humana. E é justamente isso o que explica, por exemplo, o
prognóstico da Organização das Nações Unidas (ONU) de que “575 milhões de
pessoas podem viver na pobreza extrema até 2030” 2
ou que “as doenças/condições crônicas não transmissíveis (DCNTs/CCNTs) são
responsáveis por ¾ das mortes no mundo, principalmente com relação
às doenças cardíacas, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas. E são
diversos os impulsionadores dessas condições como sociais, ambientais,
comerciais e genéticos” 3.
Pois é, Direitos Humanos dizem
respeito aos seres humanos, a um coletivo vasto e plural de indivíduos. Do
amanhecer ao anoitecer, todos os dias, cada um de nós está debaixo desse
guarda-chuva de direitos, sem que, na maioria do tempo, nos damos conta disso. Daí
a necessidade de falar sobre Direitos Humanos.
Afinal de contas, é o silêncio
que envolve o assunto, que o transforma, de certo modo, em tabu, que faz com
que ele reafirme todo tipo de enviesamento, de distorção, de tendenciosidade,
que culmina no benefício de uns poucos em detrimento de uma gigantesca maioria.
Inclusive, porque o não falar, o não pensar, o não discutir, leva à
banalização, à trivialização, à normalização, de situações que não têm
absolutamente nada de aceitável.
Por acaso existe ser humano mais
importante ou menos importante? Se você disser que sim, estará legitimando que
a vida pode ser ranqueada, estratificada, sob o padrão de que algumas merecem
mais do que as outras. E aí, as máscaras sociais caem! O senso de humanidade se
desnuda e descobrimos que o altruísmo, a empatia, a alteridade, não são
genuinamente intrínsecos a todos os indivíduos.
Bem, não quero dizer, com isso,
que deixei de acreditar que os bons são maioria. São sim! Só estou dizendo que
a massificação da bondade humana é algo perigoso, na medida em que as exceções
existem. Entretanto, separar o joio do trigo nesse caso, não é tarefa tão difícil,
se houver disposição para dar a devida atenção às linguagens verbais e não
verbais, dos viventes.
Porque elas inevitavelmente
traem. O inconsciente, muitas vezes, se sobrepõe ao consciente e deixa escapar
a essência mais profunda que habita o ser. A verdade é que somos luz e
escuridão; mas, nem sempre dentro de um equilíbrio perfeito, o que nos torna
diferentes e únicos. O que nos faz susceptíveis a transitar pelas dualidades da
existência e, de repente, exacerbar a nossa capacidade de desumanização.
É por essas e por outras que, ao
me propor refletir sobre os Direitos Humanos, penso imediatamente nas seguintes
palavras de Mahatma Gandhi, “Um homem não pode fazer o certo numa área da
vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível”.
Talvez, não haja lição maior sobre Direitos Humanos do que essa!
Simples. Objetiva. Que fala
diretamente ao nosso comportamento, aos nossos valores, aos nossos princípios,
às nossas crenças. Ao modo como a raça humana baliza a sua ética e a sua moral.
O que explica, então, porque para muitos pode sim, ser constrangedor,
desconfortável, em razão de mexer diretamente na sua desumanidade, na sua gênese
bárbara e selvagem. Afinal, o ser desumano é aquele cujas tentativas de
domesticação social, mais profundas, falharam e ele não tem como esconder, o
que realmente é, de seus próprios pares.
1 Mensagem
do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) - https://news.un.org/pt/story/2023/12/1824672
sábado, 9 de dezembro de 2023
Cada um no seu quadrado
Cada um
no seu quadrado
Por
Alessandra Leles Rocha
Afinal, somos ou não uma
República Presidencialista? Desculpe-me, mas a pergunta faz total sentido,
quando olhamos atentos para a sanha fisiológica que comanda, uma boa parcela,
do Congresso Nacional.
Desde que surgiu dentro do
Legislativo federal o tal orçamento secreto, que consistia “no uso ampliado
das emendas do relator-geral do orçamento, para efeito de inclusão de novas
despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual da União”
1 , tem-se visto uma clara acentuação
do desvirtuamento das atribuições constitucionais, por parte do referido poder.
E ainda que essa práxis vexatória
tenha sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de
certa forma, abriu-se um precedente nefasto para constantes afrontas ao Poder
Executivo, fazendo parecer, em teoria, que vivemos sob uma República
Parlamentarista.
Contrariando a premissa constitucional
de legislar e fiscalizar o Poder Executivo, uma parte bastante representativa
da Câmara dos Deputados tem se arvorado do direito de interferir na dinâmica das
atribuições do poder Executivo, através da proposição de emendas que abocanham
cada vez mais os recursos públicos e obstaculizam os projetos de governança
nacional.
Em suma, é como se esses
deputados passassem a ter em suas mãos a chave dos cofres da República para
utilizar os recursos, segundo seus próprios interesses. Veja, por exemplo, que
o “Relator do Orçamento-2024 prioriza emendas e esvazia o PAC” 2 e o “Congresso briga pelo fundo
eleitoral de 2024: R$2,5 bilhões ou 5 bilhões” 3.
De modo que a cada projeto
encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional, ele é literalmente achacado
pelas exigências financeiras impostas pelo legislativo. Considerando que a
configuração do atual do Congresso não beneficia o Executivo, se estabelece,
então, um desafio a esse, no sentido de cumprir as suas plataformas de
campanha.
O que significa que a
legitimidade do governo eleito é sumariamente afrontada pelo fisiologismo
político do Legislativo, que passa a interferir, sem qualquer cerimônia, nas
atribuições constitucionais do Executivo. Justo eles, que bradam raivosamente,
aos quaro cantos, contra eventuais ingerências do Judiciário, agora, deram para
meter o bedelho no espaço do Executivo! Só Freud explica!
Mas, brincadeiras à parte, o
assunto é sério. A continuar como está, nenhum postulante ao Executivo federal
precisará perder tempo e consumir energia, prometendo mundos e fundos na campanha
eleitoral. Porque ele (a) simplesmente sabe que a sua autonomia estará cerceada
pelo fisiologismo político presente no Legislativo, ou seja, o controle dos
recursos públicos não estará nas mãos de quem de direito.
O que significa que, lentamente,
a ideia do regime presidencialista vai virando fumaça! Aliás, deveríamos ter tido
atenção a respeito desde que “o Congresso Nacional aprovou a Medida
Provisória 1.154/2023, que reestruturou os ministérios, impondo uma organização
contrária ao previsto pelo Executivo, numa clara exibição de interferência de
um Poder em outro” 4.
Entretanto, para uma imensa
parcela da população, esse movimento de ingerência não fica claro. Já incorporada
no inconsciente coletivo, a ideia da República Presidencialista se reafirma a
cada eleição, de modo que não existe questionamentos maiores em torno dos
meandros políticos que revestem essa estrutura. Na verdade, muitos sequer entendem o que
significa regime de governo, forma de governo, divisão de poderes, ... porque a
construção da identidade cidadã é muito frágil.
Assim, erros e acertos, desafios
e conquistas, de uma gestão pública, acabam inevitavelmente recaindo sobre os
ombros da figura mais emblemática do cenário político, o Presidente da
República. Os bastidores do processo, as lutas e disputas que se sucedem atrás
das cortinas, ... tudo passa, quase que, invisível, aos olhos da grande massa populacional.
Sem tempo, sem disposição, sem
conhecimento, essa gente se concentra nos resultados, naquilo que repercute de
bom ou de ruim no seu cotidiano. E é por essas e por outras, que inadvertidamente
se estabeleçam dicotomias perigosas e equivocadas no cenário
político-partidário. Vilões se transformam em heróis, heróis em vilões. Impulsionados
pela força das mídias sociais, dos recortes discursivos tendenciosos, das
manipulações alienantes, enfim.
Daí a necessidade em não nos
esquecermos de que “Os lugares mais sombrios do inferno estão reservados
para aqueles que permanecem em silêncio em tempos de crise”; afinal, “As
decisões do nosso passado são os arquitetos do nosso presente” (Dan Brown –
Inferno, 2013). Porque se qualquer ser humano erra por atos, também, erra por
omissões. O que significa que silêncios, indiferenças, negligências, não
conduzem aos caminhos de quaisquer absolvições éticas e morais.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2023
Pare. Pense. Reflita. O seu futuro depende disso.
Pare. Pense.
Reflita. O seu futuro depende disso.
Por Alessandra
Leles Rocha
No final de novembro deste ano, a
matéria intitulada “Presidente do BID: ‘Sem planeta, não adianta retorno
financeiro. É preciso investir onde o mercado não vai” 1,
me trouxe tantas reflexões que precisei de alguns dias para decantá-las e poder
escrever a respeito.
Na verdade, o artigo não trata só
de economia, ou só de sustentabilidade ambiental, ou só de desenvolvimento. Por
trás desses pilares, encontra-se uma verdade indigesta, para muitos, que diz
respeito à iminente transformação que se impõe ao modelo capitalista vigente.
Lamento; mas, tal modelo não se
permitiu acompanhar a dinâmica da realidade global. O mundo do século XXI não é,
nem de longe, o mesmo da segunda metade do século XVIII, quando a Revolução
Industrial iniciou suas atividades e apresentou ao mundo esse modelo econômico,
para a alegria das elites emergentes, proprietárias dos meios de produção.
Acontece que, passados quase três
séculos, o capitalismo evidencia o seu fracasso diante do desalinhamento às
conjunturas que vigoram no mundo. Haja vista que a luta pela liberdade e pelos
direitos individuais, por exemplo, é algo que pertence a alguns e não, ao
coletivo social.
Tanto que se tem presenciado a
expansão, cada vez mais exacerbada, do autoritarismo, da beligerância, dos preconceitos,
contra as chamadas minorias sociais. Algo que, também, reflete sobre a
igualdade perante a lei. Que igualdade é essa, quando uma gigantesca parcela da
população mal consegue ter acesso às leis?
O que torna melhor nem comentar
sobre a proteção da propriedade privada e a existência do livre comércio,
considerando que essas são questões voltadas a atender aos interesses do grande
capital. Afinal, é ele que garante a sobrevivência nos campos do capitalismo
selvagem!
Daí a razão desse modelo lutar
tanto contra o intervencionismo estatal. Ele não quer ingerências, controles, de
nenhuma natureza, sobre as decisões econômicas que o beneficia em detrimento da
imensa maioria da população. Não é á toa que a ultradireita tenha se apropriado
desses discursos para recobrar o seu espaço no cenário político mundial.
Porém, tanta luta, tanto esforço,
... e os resultados teimando em apontar para o seguinte quadro: um passo para
frente e dez para trás. Pois é, o capitalismo perdeu a força! Não é mais o
mesmo, de três séculos atrás! Perdeu a capacidade de se moldar e se ajustar a
uma avalanche de transformações socioeconômicas e ambientais, que se impuseram
à revelia de negociar ou de dialogar com quem quer que seja.
Diante de tantos avanços científicos
e tecnológicos, a sociedade programada para consumir não encontra mais fôlego
para cumprir seu papel. Milhões de novidades, de hoje, serão adquiridas com
atraso de meses, ou anos, porque o acirramento das desigualdades
socioeconômicas tem conduzido a um movimento de empobrecimento global que obstaculiza
o consumo; sobretudo, de produtos supérfluos.
Além disso, há de se considerar a
presença de guerras, conflitos, eventos extremos do clima, que tem produzido deslocamentos
humanos forçados, os quais afetam grave e diretamente a realidade socioeconômica
de milhares de pessoas. O que as torna impossibilitadas de movimentar as engrenagens
do capitalismo, como já fizeram em condições bem mais favoráveis.
Sem contar que, dentro desse mesmo
contexto, a presença de guerras, conflitos e eventos extremos do clima tem
impactado a própria dinâmica de bens, produtos e serviços, dada a
desestabilização dos espaços geográficos.
De modo que o mundo já enfrenta a
escassez de diversos alimentos e de produtos, fazendo ampliar a incapacidade de
consumo a partir da elevação dos preços, que é incompatível a oferta dos
salários. Ora, e como todos já sabem, a pujança do capitalismo depende da
relação produção/consumo!
E analisando sob a perspectiva específica
dos eventos extremos do clima, o papel do capitalismo tem sido desastroso. Ao tentar
se sobrepor à realidade socioambiental, o modelo capitalista não se constrange
em afrontar deliberadamente as práxis sustentáveis, promovendo o acirramento da
destruição dos espaços geográficos, em todo o planeta.
Um bom exemplo disso é a manchete:
“‘Bomba’ de emissões, pior leilão de petróleo da história do Brasil tem
áreas de conflito socioambiental. Nem bem a Conferência do Clima terá acabado e
a ANP soltará blocos para exploração perto de áreas de conservação, corais,
Terras Indígenas e quilombolas” 2.
É o capitalismo em seu estado bruto! Que não enxerga, ou não se permite
enxergar, que para toda ação há uma reação diretamente proporcional.
Por sorte, essa é a carta na
manga da humanidade! Ainda que ela própria, talvez, nem tenha consciência disso!
Pois é, as consequências que tecem as conjunturas e traçam os limites, independentemente
do que escolhem, aceitam, desejam ou querem, uns e outros por aí. E essas consequências
vêm trazendo efeitos colaterais, cada vez mais, difíceis de lidar. O que
explica a exacerbação da judicialização do cotidiano.
Grande parte dos processos que se
avolumam sobre as mesas do Judiciário são reflexos do fracasso capitalista. Pedidos
de indenização. Ressarcimentos por razões de natureza diversa. Incongruências
entre as práxis, os interesses e as legislações. Atendimentos de urgência na
área de saúde. Amparo em decorrência de doenças raras. ... Questões que estão imersas
em camadas de efeitos nefastos do capitalismo vigente.
Portanto, não basta apenas que as transformações contemporâneas lancem luz sobre essas discussões. Precisamos nomear corretamente os acontecimentos, os fenômenos, os processos, para tornar mais clara a compreensão da grande massa a respeito do que afeta direta e cotidianamente a sua vida. Afinal, antes que o capitalismo em si entre totalmente em colapso, a tendência natural é que, se nada for feito a respeito, ele tenha conseguido deflagrar o colapso do planeta e da própria raça humana.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2023
Uma questão de perspectiva
Uma
questão de perspectiva
Por Alessandra
Leles Rocha
Muitos podem até, chamar de fim
do mundo; mas, eu chamo de transformação. Tenho que concordar que o processo em
si, da mais profunda metamorfose, não tem nada de muito bonito. No entanto,
também, não posso desconsiderar que é preciso virar e revirar do direito e do
avesso para, finalmente, se chegar a um equilíbrio que se conheça como novo.
Isso explica, pelo menos em
parte, os embates, um tanto quanto belicosos, que têm ocorrido no mundo, a
partir dos mais diferentes contextos. A vida parece em ebulição. O ser humano parece
em ebulição. Tudo está à flor da pele, porque, na verdade, tem que estar. Afinal de contas, não há mudança sem a
agitação da energia. E o que é o mundo senão energia?
De fato, nada disso é tarefa
fácil de compreender, de digerir! A inquietude perturba, incomoda, aflige. De repente,
somos retirados das zonas de conforto e, quase sempre, esse processo não chega
sem dor, sem cansaço, sem qualquer sinal de desequilíbrio. E esse é o ponto da
reflexão. Dado esse cenário é que uma gigantesca torrente humana opta por
resistir, por lutar com unhas e dentes contra as transformações. Entretanto,
isso é inútil!
Conjunturas acima de nós, acima
da nossa compreensão, se impõem à revelia de nossas vontades e quereres. A maioria
de nós, quando se dá conta, percebe que está sendo arrastada por uma onda de
transformações, as quais ultrapassam o seu próprio movimento natural. Somos empurrados,
envolvidos, mergulhados, nesse mar de acontecimentos que se deslocam com a
mesma fúria de uma avalanche sobre nossas cabeças.
O curioso é observar como paira o
medo, o temor, das pessoas em relação a esse processo que, contrariando às
expectativas, é tão natural à própria vida. Ora, nascemos, crescemos,
envelhecemos e morremos. O ciclo da vida é pura transformação. Por dentro. Por fora.
Corpo. Mente. Espírito. Não há escolha. Não há opção. Não há como impedir que a
biologia da existência se cumpra. E se isso acontece na perspectiva individual,
o que se pode dizer, então, quanto à perspectiva do todo, do coletivo humano? Pois
é ...
Ainda que, dessa perspectiva
maior, muitos ciclos venham a se repetir, a ideia fundamental é que haja sempre
a presença de novos traços, novas cores, novas intenções, novas metas, novos
personagens, enfim... Bem, já sabemos que “Na natureza, nada se cria, nada
se perde, tudo se transforma” (Lei de Lavoisier). Animais. Gente. Objetos. Espaços.
Geografias. Tudo. Simplesmente, porque há uma tendência de desgaste, de insuficiência,
de desajuste, de insatisfação, ... Sem isso, o novo, que tanto nos atrai e
fascina, jamais existiria.
Sem contar que cada ciclo é a
promessa do amadurecimento. Da descoberta de novas facetas. Da lapidação de
habilidades, de talentos, de competências. Ele lança um olhar profundo sobre
coisas que, talvez, passariam despercebidas sem a presença de um estímulo
diferente. Coisas de um processo metamórfico que desnuda as entranhas de cada
um de nós, de cada realidade, do mundo, como se dissecasse cada camada material
e etérea.
Razão pela qual as metamorfoses
acontecem ladeira abaixo! Não há como impedir. Não há como controlar. Elas escorrem
entre os dedos, obstinadas em alcançar o seu propósito final. Em 1989, uma
fantástica professora de Língua Portuguesa deixou a seguinte mensagem de fim de
ano no meu caderno: “Uma nuvem não sabe porque se move em tal direção. Sente
um impulso... É para este lugar que devo ir agora. Mas o céu sabe os motivos e
desenhos por trás de todas as nuvens, e você também saberá, quando se erguer o
suficiente para ver além dos horizontes” (Richard Bach).
Passado tanto tempo, agora, consigo
perceber que ela falava de ciclos, de transformações, de metamorfoses. Afinal, é
preciso dar vazão ao crescimento, ao desenvolvimento, à evolução, para se
conseguir ver além dos horizontes e compreender os movimentos que regem e
cortam os caminhos. As metamorfoses pedem o desapego, a confiança, a entrega,
para cumprirem, de fato, a sua sina e nos revelar o novo, sob as mais
diferentes formas e conteúdos. Pois elas
jamais irão se curvar às nossas idealizações. Elas têm vontade própria,
autonomia e autoralidade, para agir sobre a vida, sobre nós, sobre o mundo.
Então, depois de tanto falar em mudança, transformação, metamorfose, não poderia deixar de compartilhar uma citação de Franz Kafka, bastante oportuna. Segundo ele, “É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo” (A metamorfose, 1915). O que nos faz crer que devemos estar sempre preparados (as); pois, “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas” (Luis Fernando Veríssimo).
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023
Vida. Arte. Realidade. Ficção.
Vida. Arte.
Realidade. Ficção.
Por Alessandra
Leles Rocha
Dizia Oscar Wilde, “A vida
imita a arte muito mais do que a arte imita a vida...”. Acompanhando as
notícias sobre a situação socioambiental dramática, em Maceió, não pude deixar
de me lembrar dessas palavras, tendo em vista a sua mais absoluta
assertividade.
Bem como, de dois filmes
extraordinários, baseados em fatos reais, que discutem a questão ambiental da
mesma perspectiva do caso de Maceió, ou seja, o poder capital se sobrepondo à
sustentabilidade socioambiental.
Erin Brockovich – Uma mulher
de talento (2000) traz a história de uma das maiores
indenizações já judicializadas, nos EUA, contra uma grande corporação, por
contaminação de água com cromo hexavalente, cujos efeitos tóxicos sobre o
organismo humano incluem elevado potencial cancerígeno 1.
Minamata (2020) traz
a história de como o mundo soube da realidade dos moradores de Minamata, uma
cidade japonesa costeira, que haviam sido contaminados pelo mercúrio despejado
no mar, por uma poderosa fabricante de produtos químicos 2.
Pois é, as afrontas à
sustentabilidade socioambiental não são um privilégio exclusivo do Brasil; mas,
uma realidade globalmente comum, imposta pela industrialização. Em nome do ter,
do progresso, do capital, da ganância, ... as sociedades se renderam aos apelos
e pressões advindas dessa complexa teia industrial.
Queiram ou não admitir; mas, a industrialização,
desde o seu início, ainda na segunda metade do século XVIII, já escrevia
através das suas diferentes expressões, a sua titularidade como arautos de
um flagelo premeditado 3 , que
arrastam o peso do “invisível” sobre a vida 4.
Mas, em termos de análise socioambiental,
é fundamental separar o joio do trigo, quando das responsabilidades a serem
apontadas. Indústrias, as grandes
corporações e conglomerados, por mais conscientes do seu papel impactante e
degradador, apenas cumprem a tarefa de oferecer o seu “serviço”. De modo que
cabe às autoridades responsáveis, aos governos, decidir se aceitam ou não.
Assim, por mais que, em pleno
século XXI, depois de inúmeras tragédias ocorridas ao redor do planeta, não seja
possível fugir da lógica de que, apesar de todo o arcabouço de leis, códigos,
doutrinas, estudos científicos, que sustentam e amparam as políticas
socioambientais, o que permite a ocorrência e a reincidência dos episódios de
destruição é a força brutal do capitalismo industrial.
Infelizmente, grandes poluidores e
destruidores do meio ambiente se valem dos volumosos montantes de dinheiro, oriundos
das suas atividades, para investir em estratégias maciças de marketing
ambiental. A fim de encobrir as suas gravíssimas e nefastas agressões ao meio
ambiente e, especialmente, à população. Tornando o discurso da sustentabilidade
socioambiental, uma fala enviesada, distorcida, desconectada da realidade.
Vejam, no caso brasileiro, por
exemplo, que a legislação ambiental é robusta e bastante ampla. Então, não é
por falta de leis, o problema. O desafio decorre da fragilidade de
fiscalização, da carência de responsabilização dos infratores, dos arranjos
político-partidários, de velhas práxis que remontam dos tempos em que o país
era só uma colônia de exploração, a serviço de uma metrópole europeia.
Bom, até o momento, tudo parecia
fluir dentro desse roteiro. No entanto, o mundo dá voltas! E como dá! Pouco mais
de 500 anos depois, a realidade socioambiental brasileira é outra e ganhou um,
algo mais, para tensioná-la. Diante da emergência climática que vive o planeta,
as condições naturais tendem a não responder, como de costume, à
imprevisibilidade e à violência dos episódios.
Estamos diante da reverberação
exacerbada dos efeitos antrópicos. As ações antrópicas produzidas afetaram o equilíbrio
socioambiental, o que significa efeito estufa, aquecimento global, elevação das
águas oceânicas, alterações pluviométricas, ... Então, agora, esse desequilíbrio
responde intempestivamente sobre as ações antrópicas, ou seja, urbanização,
industrialização, uso e ocupação irregular do solo, ...
De modo que, tomando o próprio caso
de Maceió, como exemplo, basta uma chuva torrencial sobre a área em iminência de
desabamento, para que o mesmo chegue a termo, dada a total instabilidade que a
ação antrópica de mineração criou naquele local. Tudo pode se tornar o estopim
para o caos, considerando que não há meios para reverter a situação.
O dinheiro que fez a alegria de
uns e outros, agora, não é capaz de resolver o problema que ajudou a criar! E esse
tende a ser um retrato a se repetir muitas e muitas vezes, porque o ônus da imprudência,
da imprevisibilidade, da irresponsabilidade, da ganância, da corrupção, ... vai
começar a mostrar a sua cara, cada vez mais amiúde.
Afinal de contas, até aqui,
nenhum evento socioambientalmente desolador foi capaz de parar a cobiça do
mundo industrial. Com os recursos obtidos eles abafam as repercussões
negativas, criam campanhas publicitárias enganosas, arrastam processos na
justiça; mas, não resolvem o problema em si. Como mostra o caso de Maceió.
Portanto, é fundamental entender
e discutir esse assunto, porque ele vai além dos impactos socioambientais em
si. Esses abusos de poder, essas negligências, essas arbitrariedades, estão
desenhando um quadro gravíssimo de refugiados internos, ou seja, dentro do próprio
país. Gente forçosamente deslocada de seu território natural, em razão de
conjunturas antrópicas nefastas.
Sim, porque uma vez estabelecida
a impossibilidade de viver naquele lugar, por conta da mais absoluta ruptura do
equilíbrio ambiental, essas pessoas terão que recomeçar um processo de readaptação
para sobreviver em uma nova realidade socioespacial. O que implica em desafios como, por exemplo, xenofobia.
Assim, mais uma vez, vou citar
José Saramago. Dessa vez, ele chega como a mais perfeita síntese para a minha
breve reflexão, ou seja, “Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada
geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A
única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira
da razão”; pois, “a pior cegueira é a mental, que faz com que não
reconheçamos o que temos pela frente” (Ensaio sobre a Cegueira, 1995).
1 Trailer
oficial Erin Brockovich - Uma Mulher de Talento
2 Trailer
oficial Minamata
sábado, 2 de dezembro de 2023
O caos e a imprevidência ...
O caos e
a imprevidência ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Enquanto “Maceió decreta
estado de emergência por risco de colapso em mina” 1,
o caso me faz pensar sobre dois aspectos importantes. O primeiro, diz respeito à
população, que foi obrigada a abandonar os bens, de uma vida inteira, para sair
às pressas da área ameaçada de desabar. O segundo, se refere ao modo como os
gestores públicos lidam com a necessidade das licenças ambientais.
O que o Brasil e o mundo
presenciam, em Maceió, capital do estado de Alagoas, é realmente o maior
desastre ambiental urbano da história. E como tal, ele não é a expressão do
agora. Ele conta uma história de décadas, em que a extração mineral
desenfreada, colocou o poder capital acima de todas as demandas socioambientais
de uma região.
Nesse momento, quando aproximamos
das celebrações de Natal e Ano Novo, é impossível não se consternar e ser
empático ao drama de milhares de pessoas que viviam nessa área de risco. Os
recentes acontecimentos são um gran finale catastrófico, o qual poderia sim,
ter sido evitado, posto que elas vêm clamando por uma solução há décadas.
Acontece que contra o poder
capital, suas vozes e seus direitos foram sumariamente silenciados. Como se um
problema dessa natureza e magnitude pudesse ser postergado, negligenciado,
invisibilizado. Como se a vida humana pudesse ser privada da sua dignidade, dos
seus direitos fundamentais, por conta de uma escala de prioridades imposta
arbitrariamente pelas autoridades competentes.
Chega a ser estarrecedor o modo
como esses cidadãos estão sendo tratados. Retirados de casa por força policial,
na madrugada. Impossibilitados de recolher adequadamente os seus pertences e as
suas memórias mais importantes. Como se fossem vítimas de uma catástrofe
repentina e, por isso, pudessem ser alojados em abrigos temporários.
Infelizmente, essas pessoas estão
experenciado o deslocamento humano forçado. Lançadas à mercê da própria sorte.
Sim, porque se não houve o respeito assistencial necessário, desde o início da
história da exploração mineral na região, é difícil acreditar que, agora, os
trâmites para proteção e ressarcimento irão acontecer dentro da celeridade e da
eficiência necessária. Afinal, o Brasil acumula camadas e camadas de tragédias,
personificadas no sofrimento de pessoas que aguardam, numa espera sem fim, o
desfecho da sua angústia e da sua dor.
O pior é que nada disso precisava
acontecer. Ainda que no Brasil as questões ambientais pareçam uma novidade
recente, na verdade, não é bem assim. Em termos de licenciamento ambiental, por
exemplo, ele remonta da década de 70, em razão da poluição causada pela
expansão industrial, que obrigou os estados a criarem medidas a respeito.
Depois, por força da presença de
grandes corporações estrangeiras se instalando no país e de parcerias
multigovernamentais, surge a lei n.º 6803/80, que institui a Avaliação de
Impacto Ambiental (AIA) a fim de estabelecer o zoneamento industrial em áreas
críticas de poluição. O que, de certa forma, impulsionou para que, no ano
seguinte, a lei n.º 6938/81, desse corpo à Política Nacional de Meio Ambiente.
Acontece que, dado o seu
histórico de ex-colônia de exploração, O Brasil sempre atuou de maneira
permissiva e condescendente com as práxis mineradoras, através de legislações
bastante flexíveis ou, em alguns casos, passíveis de ajustamento aos interesses
dos grupos mineradores, sob o argumento maior de que esses eram geradores de
grandes divisas, empregos e progresso. O que acabou estabelecendo concessões e
privilégios a outros grupos potencialmente degradadores do meio ambiente,
trazendo a impressão de que as leis ambientais no Brasil só existiam no papel.
E olhando para a realidade
nacional recente, não se pode negar que um tsunami de contestações e objeções à
legislação ambiental vigente, fundamentada a partir do capítulo IV, artigo 225,
da Constituição Federal de 1988, vem ocorrendo. Sobretudo, em relação ao
licenciamento ambiental, ou seja, a Licença Prévia (LP), a Licença de
Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO).
Inclusive, o exemplo mais recente
diz respeito a uma decisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) que “negou um pedido de autorização
para a Petrobras perfurar um poço de petróleo no litoral do Amapá, dentro da
área considerada da bacia da Foz do Amazonas”, por entender que “o
pedido de licença não continha garantias para atendimentos à fauna em possíveis
acidentes com o derramamento de óleo”; bem como, havia inconsistências
quanto “à previsão de impactos da atividade em três terras indígenas em
Oiapoque” 2. O que reverberou
atritos em diversas instâncias do Executivo e do Legislativo federal.
Mas, por uma ironia ácida do
destino, eis que o episódio em Maceió demonstra de maneira irrefutável como a
Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) para a liberação dos licenciamentos é
fundamental. Simplesmente, porque estabelece um conjunto de métodos e técnicas
de gestão ambiental, já consagradas, capazes de identificar, estabelecer
prognósticos e avaliar os efeitos e os impactos gerados por atividades e
empreendimentos sobre o meio ambiente, a fim de evitar, reduzir ou compensar
eventuais danos.
Recentemente, eu tracei uma outra
reflexão a respeito do uso e ocupação dos espaços geográficos, da produção das
cidades e a relação existente com as ações antrópicas 3, que se conecta diretamente com a necessidade,
cada vez mais, urgente, de se fazer a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA). Não
só para mitigar o montante de prejuízos materiais e econômicos; mas, para
proteger e resguardar milhares de vidas humanas.
Afinal de contas, o cidadão
pagador de impostos é um crédulo depositário da sua confiança nas autoridades. A
grande maioria da população passa à margem desse tipo de questão burocrática e,
por isso, não tem a dimensão da vulnerabilidade a que está submetida, quando
atividades e empreendimentos foram dispostos no meio em que ela reside à
revelia de quaisquer cuidados e precauções.
Que esse acontecimento terrível
seja, então, incorporado como lição essencial para nossa sobrevivência, diante
do que ainda pode acontecer no planeta. Como escreveu José Ortega y Gasset, “O
importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os
mesmos. O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro de seus erros, a larga experiência
vital decantada por milênios, gota a gota” (A Rebelião das Massas, 1929).