Reflexão
natalina
Por Alessandra
Leles Rocha
Por mais que eu tenha consciência
de que o Natal tem sido aviltado na sua essência, em razão de uma apropriação indébita pela sociedade de consumo, permaneço convicta na minha intenção de refletir sobre
seu significado e compartilhar minhas observações, quem sabe, resgatando algum
olhar, teimosamente turvado, sobre o assunto.
Lá se vão 2023 anos, desde que
uma família humilde se viu obrigada, pela tirania do poder, a se deslocar pelo
deserto, para que seu filho não fosse vítima fatal da crueldade humana. O pobre
menino nasceu em condições precárias, sem quaisquer regalias ou privilégios. E
é por causa dele, Jesus de Nazaré, que o Natal existe. Afinal, ele nasceu em 25
de dezembro.
Portanto, o nascimento do filho
de Deus, do salvador do mundo, segundo os cristãos, não é uma celebração
embalada por valores mundanos. Natal não é uma festa destituída do simbolismo
sagrado, da conexão mais profunda com a fé. O Natal nos ensina a olhar além das
probabilidades, das aparências, das cascas, dos vernizes, das máscaras.
Realisticamente, todos os prognósticos
eram contrários ao nascimento do menino Jesus. Mas... O que significa que o
Natal, em si, é um milagre. Um milagre que rompe com rótulos, com estereótipos,
com preconceitos, para trazer à luz da consciência humana certos valores, tais
como a família, o afeto, a união, a comunhão, o cuidado. O nascimento de Cristo
enaltece uma humanidade genuína que, apesar de todos os pesares, ainda habita
em cada indivíduo, seja ele quem for.
No entanto, falar de pobreza, de dignidade
humana, de amor, de empatia, de fraternidade, ... é algo tão distante dos
interesses da sociedade de consumo, que foi por esse motivo que ela se empenhou
em uma ressignificação da data. Ora, considerando que a contemporaneidade adota
o individualismo e o narcisismo, como pilares de sua sustentação, a história
real do nascimento de Jesus de Nazaré tornou-se um entrave aos seus interesses
capitais e de poder.
Acontece que se engana quem pensa
que essa ressignificação chegou pelas mãos do Papai Noel, o Bom Velhinho! Ele, também,
foi remodelado para caber no Natal da sociedade de consumo! Segundo registros a
respeito de sua origem, ela está diretamente relacionada com São Nicolau de
Mira, também chamado de Nicolau Taumaturgo, um bispo cristão que viveu entre os
séculos III d.C. e IV d.C., na Ásia Menor (atual território da Turquia).
Conhecido por sua generosidade, ele
utilizou a sua herança para repartir entre os pobres. O que retorna o
simbolismo do Natal, à sua gênese, aos valores humanos, ou seja, amor,
respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade. Uma conexão com o
sagrado que emerge a partir da capacidade de manifestar a fé pelo
transbordamento da empatia entre seus pares.
Por isso, a sociedade de consumo
se viu obrigada a buscar, em outras referências, uma narrativa natalina que
melhor coubesse aos seus interesses. Algo que pudesse se alinhar mais
satisfatoriamente aos interesses do consumo e incorporar no inconsciente
coletivo essa imagem repleta de bens, produtos e serviços. E nada mais conveniente
do que se apropriar de uma figura como esse senhor rechonchudo, de barbas brancas,
roupas vermelhas, com ar de vovô bonzinho, que atende a todos os pedidos, sem
reclamar, na noite de 24 para 25 de dezembro.
Entretanto, isso não traduz o
Natal! Assim, como a opulência das festas. Ou a fartura desmedida sobre as mesas.
... Simplesmente, porque o ser humano esqueceu-se de si mesmo, daquilo que
realmente importa e o acompanha, 365 ou 366 dias por ano, enquanto está vivo. Tanto
que chegamos, em dezembro, com duas guerras em curso no planeta. Esse é o
retrato mais nítido da alienação humana.
Cecília Meireles tinha razão, “É
preciso amar as pessoas e usar as coisas e não amar as coisas e usar as pessoas”.
Na medida em que as relações humanas se permitiram romper com o que há de
mais belo, de mais puro e de mais sagrado, o Natal nosso de cada dia se esgarçou.
Porque se não há amor, respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade,
em uma data específica no calendário, o que dirá no restante dos dias?
Natal, caro (a) leitor (a), é
profissão de fé, na medida da reflexão, do comprometimento, da convicção, que nos
é exigida. É olhar, além do EU, para compreender a dimensão do NÓS. Por isso, a
tarefa mais importante em relação ao Natal é compreender que “O que somos é
um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à
vida” (Herbert de Souza – Betinho).
E olhando para todas as voltas e
reviravoltas que tem dado o planeta, nos deixando a um triz de desaparecer da
face da Terra, se permita olhar para o Natal, com a gratidão sublime, de quem
enxerga nesse pequeno recorte de tempo, uma possibilidade real para renovar os
votos, no sentido de se aproximar, de corpo e alma, do amor, do respeito, da união,
da fraternidade, da solidariedade e da humildade.
Pois, como diz a canção, “Então
é Natal, e o que você fez? / O ano termina e nasce outra vez / Então é Natal, a
festa Cristã / Do velho e do novo / Do amor como um todo / Então bom Natal / E
um Ano Novo também / Que seja feliz quem / Souber o que é o bem [...]” 1. Não se esqueça de que “É Natal
sempre que deixares Deus amar os outros através de ti ... sim, é Natal sempre
que sorrires ao teu irmão e lhe ofereceres a tua mão” (Madre Teresa de Calcutá).
1 Então é Natal
[Happy Xmas (War is over) – John Lennon / Yoko Ono] – Simone