sábado, 16 de dezembro de 2023

Reflexão natalina


Reflexão natalina

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que eu tenha consciência de que o Natal tem sido aviltado na sua essência, em razão de uma apropriação indébita pela sociedade de consumo, permaneço convicta na minha intenção de refletir sobre seu significado e compartilhar minhas observações, quem sabe, resgatando algum olhar, teimosamente turvado, sobre o assunto.   

Lá se vão 2023 anos, desde que uma família humilde se viu obrigada, pela tirania do poder, a se deslocar pelo deserto, para que seu filho não fosse vítima fatal da crueldade humana. O pobre menino nasceu em condições precárias, sem quaisquer regalias ou privilégios. E é por causa dele, Jesus de Nazaré, que o Natal existe. Afinal, ele nasceu em 25 de dezembro.

Portanto, o nascimento do filho de Deus, do salvador do mundo, segundo os cristãos, não é uma celebração embalada por valores mundanos. Natal não é uma festa destituída do simbolismo sagrado, da conexão mais profunda com a fé. O Natal nos ensina a olhar além das probabilidades, das aparências, das cascas, dos vernizes, das máscaras.

Realisticamente, todos os prognósticos eram contrários ao nascimento do menino Jesus. Mas... O que significa que o Natal, em si, é um milagre. Um milagre que rompe com rótulos, com estereótipos, com preconceitos, para trazer à luz da consciência humana certos valores, tais como a família, o afeto, a união, a comunhão, o cuidado. O nascimento de Cristo enaltece uma humanidade genuína que, apesar de todos os pesares, ainda habita em cada indivíduo, seja ele quem for.

No entanto, falar de pobreza, de dignidade humana, de amor, de empatia, de fraternidade, ... é algo tão distante dos interesses da sociedade de consumo, que foi por esse motivo que ela se empenhou em uma ressignificação da data. Ora, considerando que a contemporaneidade adota o individualismo e o narcisismo, como pilares de sua sustentação, a história real do nascimento de Jesus de Nazaré tornou-se um entrave aos seus interesses capitais e de poder.

Acontece que se engana quem pensa que essa ressignificação chegou pelas mãos do Papai Noel, o Bom Velhinho! Ele, também, foi remodelado para caber no Natal da sociedade de consumo! Segundo registros a respeito de sua origem, ela está diretamente relacionada com São Nicolau de Mira, também chamado de Nicolau Taumaturgo, um bispo cristão que viveu entre os séculos III d.C. e IV d.C., na Ásia Menor (atual território da Turquia).  

Conhecido por sua generosidade, ele utilizou a sua herança para repartir entre os pobres. O que retorna o simbolismo do Natal, à sua gênese, aos valores humanos, ou seja, amor, respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade. Uma conexão com o sagrado que emerge a partir da capacidade de manifestar a fé pelo transbordamento da empatia entre seus pares.

Por isso, a sociedade de consumo se viu obrigada a buscar, em outras referências, uma narrativa natalina que melhor coubesse aos seus interesses. Algo que pudesse se alinhar mais satisfatoriamente aos interesses do consumo e incorporar no inconsciente coletivo essa imagem repleta de bens, produtos e serviços. E nada mais conveniente do que se apropriar de uma figura como esse senhor rechonchudo, de barbas brancas, roupas vermelhas, com ar de vovô bonzinho, que atende a todos os pedidos, sem reclamar, na noite de 24 para 25 de dezembro.

Entretanto, isso não traduz o Natal! Assim, como a opulência das festas. Ou a fartura desmedida sobre as mesas. ... Simplesmente, porque o ser humano esqueceu-se de si mesmo, daquilo que realmente importa e o acompanha, 365 ou 366 dias por ano, enquanto está vivo. Tanto que chegamos, em dezembro, com duas guerras em curso no planeta. Esse é o retrato mais nítido da alienação humana.

Cecília Meireles tinha razão, “É preciso amar as pessoas e usar as coisas e não amar as coisas e usar as pessoas”. Na medida em que as relações humanas se permitiram romper com o que há de mais belo, de mais puro e de mais sagrado, o Natal nosso de cada dia se esgarçou. Porque se não há amor, respeito, união, fraternidade, solidariedade, humildade, em uma data específica no calendário, o que dirá no restante dos dias?

Natal, caro (a) leitor (a), é profissão de fé, na medida da reflexão, do comprometimento, da convicção, que nos é exigida. É olhar, além do EU, para compreender a dimensão do NÓS. Por isso, a tarefa mais importante em relação ao Natal é compreender que “O que somos é um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à vida” (Herbert de Souza – Betinho).

E olhando para todas as voltas e reviravoltas que tem dado o planeta, nos deixando a um triz de desaparecer da face da Terra, se permita olhar para o Natal, com a gratidão sublime, de quem enxerga nesse pequeno recorte de tempo, uma possibilidade real para renovar os votos, no sentido de se aproximar, de corpo e alma, do amor, do respeito, da união, da fraternidade, da solidariedade e da humildade.

Pois, como diz a canção, “Então é Natal, e o que você fez? / O ano termina e nasce outra vez / Então é Natal, a festa Cristã / Do velho e do novo / Do amor como um todo / Então bom Natal / E um Ano Novo também / Que seja feliz quem / Souber o que é o bem [...]” 1. Não se esqueça de que “É Natal sempre que deixares Deus amar os outros através de ti ... sim, é Natal sempre que sorrires ao teu irmão e lhe ofereceres a tua mão” (Madre Teresa de Calcutá).



1 Então é Natal [Happy Xmas (War is over) – John Lennon / Yoko Ono] – Simone

https://www.letras.mus.br/simone/69570/

https://www.youtube.com/watch?v=yN4Uu0OlmTg