A insuficiência
e a ineficiência da “caridade” contemporânea
Por Alessandra
Leles Rocha
Os horrores das guerras são, de
fato, excelentes catalisadores da reflexão. Ainda que muitas pessoas tentem se
abster de análises e pensamentos, mais profundos, em algum momento eles se
tornam inevitáveis, dada a sua impactante necessidade.
Nos últimos dias, tenho sido
inundada pela reverberação das notícias trazidas pelos veículos de informação e
de comunicação, o que tem me possibilitado a elucidação de muitas coisas, as
quais pareciam a priori sem sentido algum. Acontece que tudo, nessa vida, tem propósito
sim.
Enquanto, o Conselho de Segurança
da Organização das Nações Unidas (ONU), na presidência temporária do Brasil,
não vem medindo esforços para aprovar uma resolução que traga ajuda aos palestinos,
através de um corredor humanitário, ligando o Egito à Faixa de Gaza, extrapolei
os limites desse recorte para olhar além do tempo.
Não resta dúvida a urgência do
momento, para se propor algo nesse sentido. No entanto, a verdade se descortina,
quando se percebe que determinadas práxis, como essa, que deveriam ter um caráter
de excepcionalidade, acabaram sendo legitimadas como solução, diante de uma
incapacidade dialógica resistente.
Infelizmente, caro (a) leitor
(a), os palestinos; sobretudo, os que residem na Faixa de Gaza, nessas pouco
mais de sete décadas, só sobrevivem à custa de ajuda humanitária. O que ultrapassa
a ideia da territorialidade em si, na medida em que ter um espaço geográfico capaz
de alocar uma população sem, contudo, permitir-lhes o acesso aos direitos
humanos fundamentais é, simplesmente, cruel e perverso.
Portanto, a dor e o sofrimento do
povo palestino não reside limitado aos conflitos, ou à ausência do
estabelecimento do seu Estado-Nação; mas, principalmente, pelo peso das desigualdades
socioeconômicas, as quais eles foram sumariamente subjugados. Sim, porque a dependência
da ajuda humanitária é uma imposição conjuntural, não partiu deles a escolha de
sobreviverem dessa maneira.
Acontece que a Faixa de Gaza é
uma área territorial de 365km², onde vivem aproximadamente 2,2 milhões de habitantes.
Portanto, uma população confinada em um espaço geográfico incapaz de possibilitar-lhes
uma sobrevivência autônoma, na medida em que não há acesso livre à água potável,
não há condições territoriais e ambientais para produção de alimentos, e não há
produção de energia elétrica. Sem contar,
todo o controle, a vigilância e a violência que permeia a convivência deles com
Israel.
Portanto, há um flagrante desequilíbrio
de forças entre palestinos e israelenses, o qual se reafirmou ao longo dessas
pouco mais de sete décadas, pela omissão da diplomacia internacional. Vamos e
convenhamos que a ajuda humanitária, na ótica dessa realidade, funciona como um
socorro inócuo, sem quaisquer potenciais de transformação resolutiva para o
caso.
Acaba sendo uma medida simplicista
para o controle de eventuais tensões; mas, totalmente indigna. O que significa
que as grandes lideranças globais, realmente, não se abalam ou se constrangem
com a reafirmação das desigualdades no planeta. Há uma naturalização, ou uma trivialização,
que legitima e permite que existam seres humanos submetidos à diferentes formas
de indignidade, de desumanidade, em pleno século XXI.
Segundo dados do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por exemplo, “Pelo
menos 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas
casas. Entre elas estão 35,3 milhões de refugiados. Há também 4,4 milhões de
apátridas, pessoas a quem foi negada a nacionalidade e que não têm acesso a
direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de movimento” 1.
Pois é, existem mais de 100
campos de refugiados em diferentes regiões do mundo. Os principais são Dadaab
(Quênia), Nakivale (Uganda), Dollo Ado (Etiópia), Kakuma (Quênia), Zaatari
(Jordânia), Ain Al-Hilweh (Líbano), Saharawi (Argélia), Yida (Sudão do Sul),
Mbera (Mauritânia), Nyarugusu (Tanzânia) 2.
Tratam-se, portanto, de “assentamentos
de estruturas precárias, de estadia temporária (teoricamente) e com condições
sanitárias mínimas, ocupados geralmente por populações sem qualquer renda ou
que perderam todas as suas posses” 3.
Desse modo, a guerra que se
estabeleceu entre Israel e o Hamas deixa todas essas questões muito evidentes. Afinal,
este é só mais um exemplo de como os diálogos de paz podem passar à margem da
discussão sobre as desigualdades, para que não se precisem debater sobre os
desdobramentos da necropolítica e do necrocapitalismo 4,
no mundo.
Porque isso implicaria nas
alianças geopolíticas, na corrida armamentista, nas construções sociais imperialistas,
enfim. O que me faz relembrar, de pronto, as seguintes palavras de Eduardo Galeano:
“Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza
sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seu
beleguins nativos”.
E aí, como a cereja desse bolo
indigesto, crianças e jovens palestinos, que representam o futuro de seu povo,
resumem os horrores dessa belicosidade contemporânea, pela terrível lógica de
que “Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam
desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os
meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o
dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se
transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres conserva-os
atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida
prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser
crianças” (Eduardo Galeano) 5.
2 https://memoria.ebc.com.br/noticias/2016/06/dia-mundial-do-refugiado-conheca-os-campos-que-acolhem-refugiados-pelo-mundo#:~:text=%E2%80%9CAlguns%20exemplos%20s%C3%A3o%20o%20Iraque,o%20maior%20campo%20de%20refugiados
3 https://www.infoescola.com/sociedade/campos-de-refugiados/#:~:text=Localizados%20no%20mesmo%20pa%C3%ADs%20ou,perderam%20todas%20as%20suas%20posses.
4
Necrocapitalismo é definido como as formas contemporâneas de acumulação
organizacional que envolvem a desapropriação e subjugação da vida ao poder da
morte. Isso inclui diferentes formas de poder – institucional, material e
discursivo – que operam na economia política e na violência e desapropriação que
daí resultam. - https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0170840607096386
5 De pernas para o ar – a escola do mundo às avessas, 1999, L&PM, 370p.