A
orfandade que nos assola
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma questão que sempre me
incomodou em relação às guerras é a orfandade que elas produzem.
Porque ela consegue ir muito mais
além do fato de estabelecer a ruptura com os laços parentais, para milhares de
crianças e adolescentes.
A orfandade rega, ainda que
inconscientemente, as sementes do ódio que a fez surgir.
As gerações expostas ao ódio
retroalimentam esse ódio. Sobretudo, no contexto belicoso das guerras e dos
conflitos, os quais têm em si essa capacidade incrível de permanecer
reverberando a sua agressividade, a sua combatividade, o seu antipacifismo, ao
longo das gerações.
Diante disso, a dramática ruptura
com o princípio social mais importante para qualquer criança ou adolescente,
que é a família, representa o descaso da humanidade em relação não só aos
direitos delas; mas, à própria construção da paz, nas suas mais diferentes
instâncias.
Ora, se as autoridades retiram
delas o direito de “desenvolverem-se física, mental, moral, espiritual e
socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e
dignidade” 1e, também, de “serem
protegidas contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial,
religiosa, ou de qualquer outra índole. Devendo serem educadas dentro de um
espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade
universais” 2, o que se pode esperar?
Acontece que esse modo de agir
das autoridades acaba por se refletir na inação e no torpor da própria
sociedade. As pessoas geralmente pensam na guerra na perspectiva da destruição,
das bombas, das mortes; mas, quase sempre, se esquecem de pensar sobre os
órfãos e em como seria a vida deles nos campos de refugiados, mundo afora, por
exemplo.
Isso, sem contar, que dentre
essas crianças e adolescentes, há vários portadores de deficiência e/ou doentes
crônicos, os quais demandam uma atenção ainda mais especial.
Então, para que exista
visibilidade para essa questão é fundamental entender que “mais da metade da
população mundial de refugiados é constituída por crianças. Os jovens de 15 a
24 anos também constituem uma grande parcela das populações afetadas pelo deslocamento
forçado. Muitos vão passar a vida inteira longe de casa, às vezes separados de
suas famílias” 3, o que inclui situações
de orfandade por guerras e conflitos.
Só para se ter uma ideia a
respeito do que isso significa, segundo o novo relatório publicado pela Agência
da ONU para Refugiados (ACNUR), “mais da metade das 14,8 milhões de crianças
refugiadas em idade escolar do mundo não estão tendo acesso à educação formal,
o que coloca em risco sua prosperidade futura e o alcance das metas de
desenvolvimento global” 4.
Portanto, essa realidade pode
implicar em diversas formas de risco, ou seja, abusos, negligências,
violências, exploração, tráfico ou recrutamento militar.
Pois é, guerras e conflitos
ameaçam o futuro da humanidade, inclusive, sob a ótica das novas gerações. Não é à toa que Pablo Neruda escreveu, “Só
um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência
humana”.
Afinal, sob o som estridente das
bombas cruzando os céus, dos gritos asfixiados pela dor, do horror deformante
dos corpos, seres humanos se permitem interromper, sem cerimônias ou
constrangimentos, o fluxo natural da vida – nascer, crescer, envelhecer e
morrer.
Assim, a orfandade se multiplica.
Bem mais do que a orfandade de pai e/ou de mãe, ela se decompõe em orfandade de
sonhos. De esperanças. De desejos. De amor. De solidariedade. De ... paz.
De modo que o mundo, então, se
torna um lugar incapaz de nos caber. Triste. Pesado. Medonho. Totalmente
desbotado e silencioso.
Simplesmente, porque “Não
existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta
trata as suas crianças” (Nelson Mandela).
1 Princípio
II – Declaração Universal dos Direitos das Crianças – UNICEF, 20 de novembro de
1959 - https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_universal_direitos_crianca.pdf
2 Princípio X
– Declaração Universal dos Direitos das Crianças – UNICEF, 20 de novembro de
1959 - https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_universal_direitos_crianca.pdf