quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A orfandade que nos assola


A orfandade que nos assola

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma questão que sempre me incomodou em relação às guerras é a orfandade que elas produzem.

Porque ela consegue ir muito mais além do fato de estabelecer a ruptura com os laços parentais, para milhares de crianças e adolescentes.

A orfandade rega, ainda que inconscientemente, as sementes do ódio que a fez surgir.

As gerações expostas ao ódio retroalimentam esse ódio. Sobretudo, no contexto belicoso das guerras e dos conflitos, os quais têm em si essa capacidade incrível de permanecer reverberando a sua agressividade, a sua combatividade, o seu antipacifismo, ao longo das gerações.

Diante disso, a dramática ruptura com o princípio social mais importante para qualquer criança ou adolescente, que é a família, representa o descaso da humanidade em relação não só aos direitos delas; mas, à própria construção da paz, nas suas mais diferentes instâncias.

Ora, se as autoridades retiram delas o direito de “desenvolverem-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade” 1e, também, de “serem protegidas contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra índole. Devendo serem educadas dentro de um espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universais” 2, o que se pode esperar?

Acontece que esse modo de agir das autoridades acaba por se refletir na inação e no torpor da própria sociedade. As pessoas geralmente pensam na guerra na perspectiva da destruição, das bombas, das mortes; mas, quase sempre, se esquecem de pensar sobre os órfãos e em como seria a vida deles nos campos de refugiados, mundo afora, por exemplo.  

Isso, sem contar, que dentre essas crianças e adolescentes, há vários portadores de deficiência e/ou doentes crônicos, os quais demandam uma atenção ainda mais especial.

Então, para que exista visibilidade para essa questão é fundamental entender que “mais da metade da população mundial de refugiados é constituída por crianças. Os jovens de 15 a 24 anos também constituem uma grande parcela das populações afetadas pelo deslocamento forçado. Muitos vão passar a vida inteira longe de casa, às vezes separados de suas famílias” 3, o que inclui situações de orfandade por guerras e conflitos.

Só para se ter uma ideia a respeito do que isso significa, segundo o novo relatório publicado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), “mais da metade das 14,8 milhões de crianças refugiadas em idade escolar do mundo não estão tendo acesso à educação formal, o que coloca em risco sua prosperidade futura e o alcance das metas de desenvolvimento global” 4.

Portanto, essa realidade pode implicar em diversas formas de risco, ou seja, abusos, negligências, violências, exploração, tráfico ou recrutamento militar. 

Pois é, guerras e conflitos ameaçam o futuro da humanidade, inclusive, sob a ótica das novas gerações.  Não é à toa que Pablo Neruda escreveu, “Só um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência humana”.  

Afinal, sob o som estridente das bombas cruzando os céus, dos gritos asfixiados pela dor, do horror deformante dos corpos, seres humanos se permitem interromper, sem cerimônias ou constrangimentos, o fluxo natural da vida – nascer, crescer, envelhecer e morrer.

Assim, a orfandade se multiplica. Bem mais do que a orfandade de pai e/ou de mãe, ela se decompõe em orfandade de sonhos. De esperanças. De desejos. De amor. De solidariedade. De ... paz.

De modo que o mundo, então, se torna um lugar incapaz de nos caber. Triste. Pesado. Medonho. Totalmente desbotado e silencioso.

Simplesmente, porque “Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças” (Nelson Mandela).