quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A vez do negacionismo diplomático


A vez do negacionismo diplomático

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O veto dos EUA 1 à resolução proposta pelo Brasil na reunião do Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU), vai além do fato em si. Não foi um fracasso diplomático, nem político. Foi um fracasso da humanidade, o que significa que a desumanidade venceu, mais uma vez.

Assistindo a tudo o que vem acontecendo nos últimos 12 dias, entre Israel e o Hamas, as notícias soam como instrumentos de revelação das camadas que constituem essa história de conflitos. E só mesmo, através da história, para se tecer análises isentas, pautadas exclusivamente nos registros factuais.

Muito antes da formação dos Estados-Nação, o mundo já convivia com guerras bárbaras e sangrentas. No entanto, os exércitos da época disputavam entre si, dentro de um certo equilíbrio, na medida em que o arsenal disponível era o mesmo para ambas as partes.

Variavam, talvez, o número de soldados à disposição e a presença de guerreiros mais fortes e bons estrategistas. Eram guerras da força bruta, da lei do mais forte.

Com o passar do tempo e da natural evolução socioeconômica, e já dentro do cenário dos Estados-Nação, as guerras foram submetidas ao enviesamento do equilíbrio de forças, em razão do poder capital para adquirir as novas armas de guerra, muito mais beligerantes e destrutivas.

De modo que os exércitos melhor servidos pelo poder capital, inevitavelmente, despontavam o seu favoritismo nos confrontos. O mundo passou a assistir a lei do mais forte sobre a lei do mais fraco.

Acontece que nesse ponto se faz necessário dedicar uma atenção muito especial. Nem todas as guerras e conflitos envolvem Estados-Nação reconhecidos pela comunidade internacional. É aí que se esbarra em duas situações importantes do campo diplomático, as quais dizem respeito aos apátridas e as nações sem estado reconhecido.

Frequentemente essas pessoas se encontram imersas em eventos de extrema belicosidade e de afronta aos direitos humanos fundamentais.

Bem, para quem nunca ouviu falar no termo, os apátridas “são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha de reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países” 2.

Já as nações sem estado, são aquelas que não dispõem de um território autônomo e vivem, então, em áreas cujo poder é exercido por outros grupos. É o caso, por exemplo, dos Curdos, dos Palestinos, dos Tibetanos, dos Bascos, dos Chechenos, dos Caxemires, e em breve, dos armênios que estão sendo expulsos de Nagorno-Karabakh pelo governo do Azerbaijão.

Isso significa que qualquer ofensiva bélica contra essas pessoas é totalmente desproporcional. Se elas não dispõem de seu próprio território, por consequência, também, não dispõem de exército e de recursos militares equivalentes aos das nações reconhecidas.  

São populações geralmente empobrecidas, em sua maioria, privadas de uma existência digna, com ausência de acessibilidade aos direitos humanos fundamentais. O que significa que naturalmente elas estão expostas a todo tipo de expressão xenofóbica, ou seja, de ódio, receio, hostilidade e rejeição em relação aos estrangeiros. Na verdade, uma xenofobia que instrumentaliza a necropolítica, presente na realidade contemporânea.

Infelizmente, embora milênios já tenham se passado na história da humanidade, a existência de dominados e dominadores persiste. O mundo reafirma diariamente as marcas colonialistas e imperialistas nas relações socioeconômicas, como mostrava um antigo quadro humorístico de TV, “Primo rico, primo pobre” 3. O pobre visitava o rico para pedir comida; mas, sempre se frustrava, porque o rico sutilmente negava e ainda fazia questão de humilhá-lo, ostentando a boa vida.

Isso significa que seres humanos apátridas ou sem Estado-Nação próprio tendem a permanecer invisibilizados no mundo, portanto, à margem de eventuais discussões resolutivas para sua situação. Acontece que essa invisibilidade é bastante tendenciosa; posto que, eles permanecem como alvos preferenciais da beligerância global. Pois é, já dizia Jean-Jacques Rousseau, “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado” 4.

Acontece que não basta nascer livre. A barbárie primitiva moldou a sociedade por diversas dicotomias de poder: fortes e fracos, dominados e dominadores, ricos e pobres, importantes e desimportantes, burgueses e proletários, enfim ...

Basta lançar um olhar sobre a pirâmide social contemporânea, para perceber o quanto essa modelagem foi profunda e impactante sobre a humanidade. Daí ser tão desafiador exercitar a empatia, a alteridade, o altruísmo e a compaixão, uns com os outros.

E a razão dessa dificuldade está no fato de que “Antes de falar sobre o bem da satisfação das necessidades, é preciso decidir quais necessidades constituem o bem” (Liev Tolstói). Por que a pergunta a se fazer é quem decide?

Sim, as pequenas e as grandes decisões do mundo são sempre tomadas por indivíduos e/ou instituições que desempenham algum papel de importância ou relevância social. Pessoas que têm seus próprios interesses, ambições, relações, vaidades, ...

Por isso, o veto dos EUA à resolução proposta pelo Brasil na reunião do Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU). Não só pela franca fraternidade dedicada aos israelenses, desde sempre, a decisão dos EUA teve um componente de disputa de protagonismo com o Brasil.

A aprovação teria colocado o governo brasileiro como um novo expoente diplomático para a mediação de conflitos no Oriente Médio, algo que jamais agradaria aos norte-americanos, dado o seu histórico papel nesse sentido. De modo que, por uma questão geopolítica egóica, se fez deflagrar o fracasso da diplomacia e acender a chama da desumanidade.

Então, se o Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU), aceita que decisões, dessa envergadura, sejam obstaculizadas por justificativas inconsistentes e de alto teor impiedoso, onde tudo isso vai parar é a pergunta a se fazer, a partir de agora.