A vez do negacionismo
diplomático
Por Alessandra
Leles Rocha
O veto dos EUA 1 à resolução proposta pelo Brasil na
reunião do Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU), vai
além do fato em si. Não foi um fracasso diplomático, nem político. Foi um
fracasso da humanidade, o que significa que a desumanidade venceu, mais uma
vez.
Assistindo a tudo o que vem
acontecendo nos últimos 12 dias, entre Israel e o Hamas, as notícias soam como instrumentos
de revelação das camadas que constituem essa história de conflitos. E só mesmo,
através da história, para se tecer análises isentas, pautadas exclusivamente
nos registros factuais.
Muito antes da formação dos Estados-Nação,
o mundo já convivia com guerras bárbaras e sangrentas. No entanto, os exércitos
da época disputavam entre si, dentro de um certo equilíbrio, na medida em que o
arsenal disponível era o mesmo para ambas as partes.
Variavam, talvez, o número de
soldados à disposição e a presença de guerreiros mais fortes e bons
estrategistas. Eram guerras da força bruta, da lei do mais forte.
Com o passar do tempo e da
natural evolução socioeconômica, e já dentro do cenário dos Estados-Nação, as
guerras foram submetidas ao enviesamento do equilíbrio de forças, em razão do
poder capital para adquirir as novas armas de guerra, muito mais beligerantes e
destrutivas.
De modo que os exércitos melhor
servidos pelo poder capital, inevitavelmente, despontavam o seu favoritismo nos
confrontos. O mundo passou a assistir a lei do mais forte sobre a lei do mais
fraco.
Acontece que nesse ponto se faz
necessário dedicar uma atenção muito especial. Nem todas as guerras e conflitos
envolvem Estados-Nação reconhecidos pela comunidade internacional. É aí que se
esbarra em duas situações importantes do campo diplomático, as quais dizem
respeito aos apátridas e as nações sem estado reconhecido.
Frequentemente essas pessoas se
encontram imersas em eventos de extrema belicosidade e de afronta aos direitos
humanos fundamentais.
Bem, para quem nunca ouviu falar
no termo, os apátridas “são pessoas que não têm sua nacionalidade
reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como
discriminação contra minorias na legislação nacional, falha de reconhecer todos
os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão
de Estados) e conflitos de leis entre países” 2.
Já as nações sem estado, são
aquelas que não dispõem de um território autônomo e vivem, então, em áreas cujo
poder é exercido por outros grupos. É o caso, por exemplo, dos Curdos, dos
Palestinos, dos Tibetanos, dos Bascos, dos Chechenos, dos Caxemires, e em
breve, dos armênios que estão sendo expulsos de Nagorno-Karabakh pelo governo
do Azerbaijão.
Isso significa que qualquer
ofensiva bélica contra essas pessoas é totalmente desproporcional. Se elas não dispõem
de seu próprio território, por consequência, também, não dispõem de exército e
de recursos militares equivalentes aos das nações reconhecidas.
São populações geralmente
empobrecidas, em sua maioria, privadas de uma existência digna, com ausência de
acessibilidade aos direitos humanos fundamentais. O que significa que naturalmente
elas estão expostas a todo tipo de expressão xenofóbica, ou seja, de ódio,
receio, hostilidade e rejeição em relação aos estrangeiros. Na verdade, uma xenofobia
que instrumentaliza a necropolítica, presente na realidade contemporânea.
Infelizmente, embora milênios já
tenham se passado na história da humanidade, a existência de dominados e
dominadores persiste. O mundo reafirma diariamente as marcas colonialistas e imperialistas
nas relações socioeconômicas, como mostrava um antigo quadro humorístico de TV,
“Primo rico, primo pobre” 3. O pobre
visitava o rico para pedir comida; mas, sempre se frustrava, porque o rico sutilmente
negava e ainda fazia questão de humilhá-lo, ostentando a boa vida.
Isso significa que seres humanos
apátridas ou sem Estado-Nação próprio tendem a permanecer invisibilizados no
mundo, portanto, à margem de eventuais discussões resolutivas para sua
situação. Acontece que essa invisibilidade é bastante tendenciosa; posto que,
eles permanecem como alvos preferenciais da beligerância global. Pois é, já
dizia Jean-Jacques Rousseau, “O homem nasce livre e por toda parte
encontra-se acorrentado” 4.
Acontece que não basta nascer
livre. A barbárie primitiva moldou a sociedade por diversas dicotomias de
poder: fortes e fracos, dominados e dominadores, ricos e pobres, importantes e desimportantes,
burgueses e proletários, enfim ...
Basta lançar um olhar sobre a pirâmide
social contemporânea, para perceber o quanto essa modelagem foi profunda e
impactante sobre a humanidade. Daí ser tão desafiador exercitar a empatia, a alteridade,
o altruísmo e a compaixão, uns com os outros.
E a razão dessa dificuldade está
no fato de que “Antes de falar sobre o bem da satisfação das necessidades, é
preciso decidir quais necessidades constituem o bem” (Liev Tolstói). Por que
a pergunta a se fazer é quem decide?
Sim, as pequenas e as grandes
decisões do mundo são sempre tomadas por indivíduos e/ou instituições que
desempenham algum papel de importância ou relevância social. Pessoas que têm seus
próprios interesses, ambições, relações, vaidades, ...
Por isso, o veto dos EUA à
resolução proposta pelo Brasil na reunião do Conselho de Segurança, da
Organização das Nações Unidas (ONU). Não só pela franca fraternidade dedicada
aos israelenses, desde sempre, a decisão dos EUA teve um componente de disputa de
protagonismo com o Brasil.
A aprovação teria colocado o
governo brasileiro como um novo expoente diplomático para a mediação de
conflitos no Oriente Médio, algo que jamais agradaria aos norte-americanos, dado
o seu histórico papel nesse sentido. De modo que, por uma questão geopolítica egóica,
se fez deflagrar o fracasso da diplomacia e acender a chama da desumanidade.
Então, se o Conselho de Segurança,
da Organização das Nações Unidas (ONU), aceita que decisões, dessa envergadura,
sejam obstaculizadas por justificativas inconsistentes e de alto teor impiedoso,
onde tudo isso vai parar é a pergunta a se fazer, a partir de agora.
3
BALANÇA, MAS NÃO CAI – Primo Pobre & Primo Rico (1975) - https://www.youtube.com/watch?v=Y4RJQwhjH9E