As sombras da escravização autômata contemporânea
Por Alessandra Leles Rocha
Logo
cedo, me deparei com uma mensagem bastante reflexiva e oportuna que dizia “Privilégio
maior que estar vivo é se sentir vivo”. Filosofia em estado bruto! Principalmente,
considerando o rolo compressor contemporâneo que não se constrange em afetar a
nossa saúde mental, comprometendo o nosso modo de pensar e de refletir.
Bem,
já dizia Erich Fromm que “O perigo do passado era que os homens se tornassem
escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autômatos”. Pena que
ninguém levou isso a sério e, portanto, temos não só autômatos; mas, também,
uma legião de novos escravos, no século XXI. E por conta dessa realidade, nos
deparamos com uma humanidade cada vez mais adoecida física, mental e moralmente
falando.
Uma
breve passada de olhos pela internet dá a dimensão a esse respeito. Nos espaços
voltados para saúde e qualidade de vida, por exemplo, há inúmeras matérias
tratando da importância da higiene mental, em razão dos excessos e abusos do
uso das novas tecnologias. Pois já se sabe que o adoecimento mental se expande
rapidamente para o corpo, podendo desencadear efeitos nefastos sobre o indivíduo.
No
entanto, essa é uma maneira sutil das Big Techs lavarem as mãos diante de um
processo de adoecimento mental, o qual elas próprias fomentam. Isso significa
que se por um lado elas depositam no livre arbítrio do ser humano a
autorregulação para o uso das novas tecnologias, por outro, percebendo que
ninguém está nem aí para os perigos alertados, elas intensificam as suas
estratégias de expansão e fidelização de público consumidor dos seus produtos. Assim, elas garantem a manutenção da sua
lucratividade em detrimento da saúde mental das pessoas.
Mídia
de informação. Mídia de entretenimento. Mídia de Esporte. Mídia de compra. Mídia
... De modo que um gigantesco conjunto de meios de comunicação de massas se
estabelece como ferramenta de controle e manipulação social, em tempo integral,
na realidade contemporânea. Sim, porque essa comunicação não se dá,
necessariamente, de maneira orgânica; mas, sob o crivo dos interesses,
especialmente econômicos, das Big Techs.
Haja
vista o modo como têm sido apresentadas as duas guerras em curso. Aliás, a
guerra entre a Ucrânia e a Rússia perdeu totalmente o seu espaço midiático. Não
se ouve mais falar a respeito. Não se trazem notícias dos acontecimentos, nem
de um lado e nem de outro. Enfim. Mas, não é por acaso que isso acontece. A guerra entre Israel e o Hamas envolve
diretamente, não apenas o capitalismo global, como as pretensões expansionistas
da ultradireita. Daí a razão dessa guerra tomar a visibilidade nos veículos de
comunicação. Nada mais nada menos do que o poder da repressão tecnológica.
Já
ficou claro o papel das Big Techs na promoção da ultradireita, em diferentes
partes do planeta, não apenas pela obstaculização em conter o avanço das Fake
News nas suas mídias sociais, como na punição aos veículos de comunicação que expressam
opiniões contrárias àquelas defendidas pela ultradireita. Ora, isso acontece porque a ultradireita detém
um poder capital que interessa diretamente às Big Techs. Então, elas se aliam
àqueles que podem ampliar e consolidar o seu enriquecimento, ainda que isso
custe o enviesamento dos fatos e uma alienação doentia da sociedade.
Se
lembram dos tempos em que fofocas rendiam milhões? Pois é. Hoje, o que rende na
comunicação social são as polarizações. Na medida em que são despejadas nas
mídias, notícias e Fake News, em toneladas, há de certa forma uma
impossibilidade de realizar um escrutínio apurado em torno delas, impulsionando
ao efeito manada de seguir o senso comum de uma maioria, mesmo que essa maioria
esteja na contramão da verdade factual.
O
que assusta é o fato de que é por meio desse efeito manada que as pessoas têm buscado
a sua legitimação ideológica e, assim, postarem-se vitoriosas nas discussões
polarizadas. Munidas de quantidades exorbitantes de informação rasa, infundada,
inverídica, distorcida, elas tomam partido do lado que lhes é mais conveniente.
Portanto, ao abdicarem da sua
racionalidade, das suas convicções, dos seus pontos de vista, elas demonstram o
grau de adoecimento mental e moral a que foram submetidas.
Sim,
porque o cerne desse impacto brutal incide sobre a sua identidade. Toda a construção
da sua consciência individual, através das relações subjetivas, comunicativas, linguísticas
e das experiências sociais, passou a ser condicionada e subjugada a interesses de
outras pessoas. Daí o fato de estar vivo, do ponto de vista biológico, não
significar sentir-se vivo, do ponto vista existencial, porque o indivíduo está
sob um estado de automatismo.
O pior é que, enquanto isso, as Big Techs prosperam mais e mais. A humanidade adoece mais e mais. E as guerras tendem a não ter fim. Pois, como escreveu Zygmunt Bauman, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Tempos Líquidos, 2007).