segunda-feira, 23 de outubro de 2023

As sombras da escravização autômata contemporânea


As sombras da escravização autômata contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Logo cedo, me deparei com uma mensagem bastante reflexiva e oportuna que dizia “Privilégio maior que estar vivo é se sentir vivo”. Filosofia em estado bruto! Principalmente, considerando o rolo compressor contemporâneo que não se constrange em afetar a nossa saúde mental, comprometendo o nosso modo de pensar e de refletir.

Bem, já dizia Erich Fromm que “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autômatos”. Pena que ninguém levou isso a sério e, portanto, temos não só autômatos; mas, também, uma legião de novos escravos, no século XXI. E por conta dessa realidade, nos deparamos com uma humanidade cada vez mais adoecida física, mental e moralmente falando.

Uma breve passada de olhos pela internet dá a dimensão a esse respeito. Nos espaços voltados para saúde e qualidade de vida, por exemplo, há inúmeras matérias tratando da importância da higiene mental, em razão dos excessos e abusos do uso das novas tecnologias. Pois já se sabe que o adoecimento mental se expande rapidamente para o corpo, podendo desencadear efeitos nefastos sobre o indivíduo.

No entanto, essa é uma maneira sutil das Big Techs lavarem as mãos diante de um processo de adoecimento mental, o qual elas próprias fomentam. Isso significa que se por um lado elas depositam no livre arbítrio do ser humano a autorregulação para o uso das novas tecnologias, por outro, percebendo que ninguém está nem aí para os perigos alertados, elas intensificam as suas estratégias de expansão e fidelização de público consumidor dos seus produtos.  Assim, elas garantem a manutenção da sua lucratividade em detrimento da saúde mental das pessoas.

Mídia de informação. Mídia de entretenimento. Mídia de Esporte. Mídia de compra. Mídia ... De modo que um gigantesco conjunto de meios de comunicação de massas se estabelece como ferramenta de controle e manipulação social, em tempo integral, na realidade contemporânea. Sim, porque essa comunicação não se dá, necessariamente, de maneira orgânica; mas, sob o crivo dos interesses, especialmente econômicos, das Big Techs.

Haja vista o modo como têm sido apresentadas as duas guerras em curso. Aliás, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia perdeu totalmente o seu espaço midiático. Não se ouve mais falar a respeito. Não se trazem notícias dos acontecimentos, nem de um lado e nem de outro. Enfim. Mas, não é por acaso que isso acontece.  A guerra entre Israel e o Hamas envolve diretamente, não apenas o capitalismo global, como as pretensões expansionistas da ultradireita. Daí a razão dessa guerra tomar a visibilidade nos veículos de comunicação. Nada mais nada menos do que o poder da repressão tecnológica.

Já ficou claro o papel das Big Techs na promoção da ultradireita, em diferentes partes do planeta, não apenas pela obstaculização em conter o avanço das Fake News nas suas mídias sociais, como na punição aos veículos de comunicação que expressam opiniões contrárias àquelas defendidas pela ultradireita.  Ora, isso acontece porque a ultradireita detém um poder capital que interessa diretamente às Big Techs. Então, elas se aliam àqueles que podem ampliar e consolidar o seu enriquecimento, ainda que isso custe o enviesamento dos fatos e uma alienação doentia da sociedade.

Se lembram dos tempos em que fofocas rendiam milhões? Pois é. Hoje, o que rende na comunicação social são as polarizações. Na medida em que são despejadas nas mídias, notícias e Fake News, em toneladas, há de certa forma uma impossibilidade de realizar um escrutínio apurado em torno delas, impulsionando ao efeito manada de seguir o senso comum de uma maioria, mesmo que essa maioria esteja na contramão da verdade factual.  

O que assusta é o fato de que é por meio desse efeito manada que as pessoas têm buscado a sua legitimação ideológica e, assim, postarem-se vitoriosas nas discussões polarizadas. Munidas de quantidades exorbitantes de informação rasa, infundada, inverídica, distorcida, elas tomam partido do lado que lhes é mais conveniente.  Portanto, ao abdicarem da sua racionalidade, das suas convicções, dos seus pontos de vista, elas demonstram o grau de adoecimento mental e moral a que foram submetidas.

Sim, porque o cerne desse impacto brutal incide sobre a sua identidade. Toda a construção da sua consciência individual, através das relações subjetivas, comunicativas, linguísticas e das experiências sociais, passou a ser condicionada e subjugada a interesses de outras pessoas. Daí o fato de estar vivo, do ponto de vista biológico, não significar sentir-se vivo, do ponto vista existencial, porque o indivíduo está sob um estado de automatismo.  

O pior é que, enquanto isso, as Big Techs prosperam mais e mais. A humanidade adoece mais e mais. E as guerras tendem a não ter fim. Pois, como escreveu Zygmunt Bauman, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Tempos Líquidos, 2007)