O
julgamento ...
Por
Alessandra Leles Rocha
A apoteose dos atos
antidemocráticos foi, de fato, o 8 de janeiro deste ano, dado o seu ineditismo.
Ora, o Brasil jamais havia assistido nada nesse sentido ou nessas proporções,
até então. Representando, portanto, uma desconstrução profunda do ideário pacífico
do povo brasileiro, tido costumeiramente como um povo feliz, ordeiro, tranquilo,
avesso às turbulências sociais.
No entanto, mais do que isso, essa
barbárie possibilitou dissipar um obscurantismo secular, que reinava no país,
remanescente das suas raízes coloniais. Finalmente, as elites brasileiras embebidas
nas fontes ideológicas da Direita; sobretudo, as suas vertentes mais radicais e
extremistas, saíram das sombras para figurar, de cara lavada, as suas crenças,
princípios e convicções.
E nesse sentido, um traço ficou
bastante marcado, ou seja, a sua imensa capacidade de se abster das responsabilidades
sobre suas falas e atitudes. Há no inconsciente coletivo dessas pessoas uma
certeza tão absoluta da sua importância social, do seu poder socioeconômico,
que elas não se permitem transitar pelos caminhos da igualdade e da equidade estabelecida
pelos protocolos sociais.
Sim, é isso mesmo! Elas se julgam
acima do Bem e do Mal, como se não precisassem dar satisfação dos seus atos a
ninguém, por acreditarem dispor de uma prerrogativa de superioridade social sem
limites. Elas literalmente decidiram pagar para ver, medir forças com a
realidade, desconsiderando que alguém tivesse coragem, suficiente, para confrontá-las.
Mas, a verdade é inexorável! Diante
dos fatos, elas foram obrigadas a mudar de estratégia. Foi, então, que
começaram a apelar para um discurso de vitimização, onde muito se ouviu dizer
uma avalanche de distorções, tendenciosamente oportunistas, em relação à
liberdade de expressão, de manifestação político-partidária, de patriotismo
etc.etc.etc. Afinal, como disse Santo Agostinho,
“Se queres conhecer a uma pessoa, não lhe perguntes o que pensa, mas sim o
que ela ama”.
E agora, durante os julgamentos das
primeiras ações penais sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro 1, conseguiram acentuar o vitimismo,
colocando os réus em posição de total infantilidade, como se não fossem dotados
de capacidade intelectual para assumir suas responsabilidades e deveres
cidadãos diante dos fatos. Numa vexatória exibição de condescendência, de tolerância,
de indulgência, de permissividade, apesar da gravidade das ações praticadas.
Desse modo, a dosimetria das
penas, até o momento aplicadas 2, não me
parece demasiada frente ao teor criminoso e repugnante do comportamento dos réus.
Dentre eles não há meninos ou meninas. Todos desfrutam de maioridade penal para
arcarem com as consequências de suas atitudes, para serem devidamente
responsabilizados por suas escolhas e decisões. Ainda que tenham sido
persuadidos, convencidos ou manipulados, a agirem daquela maneira, não é
possível despi-los da sua capacidade de discernimento e reflexão.
Aliás, não creio que suas
manifestações indóceis, indignadas, enfurecidas, sejam necessariamente por
conta do resultado dos julgamentos já realizados. Me parece algo de uma ordem
mais profunda. Da descoberta abrupta de que jamais dispuseram de qualquer prerrogativa
de superioridade social sem limites. Enfim, foram apresentados à realidade de
que são cidadãos tanto quanto quaisquer outros, submetidos as mesmas leis, aos
mesmos ordenamentos jurídico-sociais.
De repente, estamos diante de um reequilíbrio
de forças. Talvez, tardio; mas, não menos importante. Ainda que a história não
possa ser passada a limpo, a dinâmica do tempo não só permite, como exige,
reparos e ajustes para que a evolução possa acontecer. O caráter pedagógico
presente no julgamento dessas ações penais tem muito desse compromisso
temporal. Na ruptura com velhos paradigmas, velhas idealizações, velhas
percepções. Mesmo que muitos ainda resistam e persistam nas suas bolhas, nos
seus casulos.
No entanto, vale ressaltar que
esse processo não representa em si, a impossibilidade de uma reincidência. Infelizmente,
foi aberto um precedente nefasto na história brasileira. Além disso, é de
conhecimento público que os rigores da lei inibem; mas, não impedem que o
cidadão opte por determinados caminhos e/ou transgressões.
Mas, como se lê no texto sagrado
do judaísmo, “A reflexão eleva o indivíduo, permitindo-lhe dominar o caráter
defeituoso e assenhorar-se da própria dignidade”. E esse, talvez, seja o
maior e mais importante objetivo social que pretende alcançar o Supremo
Tribunal Federal (STF) com a realização desses julgamentos. Resgatar, ainda que,
minimamente, a consciência do indivíduo sobre o significado da sua própria cidadania.