terça-feira, 29 de agosto de 2023

MARCO TEMPORAL NÃO! Brasil terra indígena!


MARCO TEMPORAL NÃO! Brasil terra indígena!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nem deveríamos ter que discutir o óbvio; mas, insistentemente a contemporaneidade nos conclama a fazê-lo. Amanhã, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma a análise sobre o Marco Temporal das Terras Indígenas 1 e a apreensão paira no ar. Afinal, parece estranho que tal assunto seja posto em discussão, quando o próprio texto constitucional vigente afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231, CF. 1988).

Mas, como já tenho manifesto diversas vezes, o Brasil permanece contaminado pelos absurdos e distorções abjetas herdadas do seu passado colonial; sobretudo, quando se mantém subserviente aos interesses da bancada ruralista e de grupos ligados à exploração vegetal e mineral em terras indígenas. O que estampa o mais completo paradoxo, ou seja, o país vivendo entre dois mundos distintos, o da inovação tecnológica, do século XXI, e o de exportador de commodities, como no século XVI. Algo que perde a simplicidade das palavras, para alcançar a imensidão da complexidade que representa esse cenário.

A tese do Marco Temporal não diz respeito apenas a uma deturpação intencional da norma jurídica; mas, trata da ruptura com as bases de construção histórica da identidade nacional, quando desconsidera e invisibiliza que “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art.31, §1º, CF. 1988).

E isso não é apenas grave, é gravíssimo! Elementos da sociedade contemporânea tentam se apropriar indevidamente de algo que pertence ao país. Os povos originários são o patrimônio maior do Brasil e retirar deles o seu habitat natural significa desqualificar a importância da nossa identidade social, cultural, ambiental e econômica. Trata-se, portanto, da explícita demonstração de desapreço pelo país; bem como, de total incapacidade em reconhecer a dívida histórica existente com os povos originários.

Sim, porque durante todo o processo de colonização, ocorrido entre os séculos XVI e XIX, foram os povos originários vítima de todo tipo de abusos e violências, inclusive, a expulsão de seu habitat natural, cometidos pelo forasteiro colonizador. Por isso tribos foram totalmente dizimadas. Línguas, costumes e tradições perdidas. Milhares de lacunas foram estabelecidas, fazendo da   identidade brasileira uma história enviesada pela força e pela brutalidade de um processo tido como civilizatório, pelo colonizador europeu.

Talvez, seja isso o que mais espanta, a reprodução de uma crueldade e de uma perversidade que o país traz marcado na sua gênese. É como se tudo o que de pior e mais terrível ocorrido por aqui, tivesse sido indolor, normal, quando não foi. Hoje, não é mais o colonizador, do século XVI, quem desrespeita o Brasil; mas, a descendência da burguesia que aqui se formou. Gente que faz questão de lustrar seu apreço pela herança colonial, sob os mais diferentes aspectos, incluindo o conservadorismo e o predomínio das atividades primárias, como força motriz da economia.

Dito isso, é preciso fazer uma ressalva importante. Dada a evolução da sociedade e dos modos de produção, nesses pouco mais de 500 anos, as atividades primárias não demandam necessariamente de mais terras para ampliar a produção. Recursos científicos e tecnológicos existentes criam condições de garantir a qualidade do solo para a produção, por mais tempo. Claro que considerando a colaboração primordial do clima na consolidação do processo! De modo que o interesse contemporâneo sobre as terras indígenas parece estar muito mais associado à especulação imobiliária e ao extrativismo exploratório dos recursos naturais, do que qualquer outra coisa.

Algo que faz bastante sentido, na medida em que é fácil perceber como o que buscam essas pessoas ao defenderem a aprovação do Marco Temporal é a legalização de algo que já acontece à margem, na mais absoluta ilegalidade. Como pode ser visto durante a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, que ganhou repercussão mundial, no início deste ano. Embora seja um problema que atinge, também, outros povos originários brasileiros, no caso dos Yanomamis, “ao longo de décadas, a invasão das terras, em especial por garimpeiros ilegais, afetou a população yanomami em vários aspectos, principalmente pela escalada da violência no território, o aliciamento dos jovens, a contaminação dos rios e a intoxicação de pessoas, animais e plantios pelos dejetos do garimpo ilegal. Também foi registrado aumento significativo dos casos de malária, infecções sexualmente transmissíveis e outras doenças” 2.

Então, o que se tem diante dos olhos é um flagrante desequilíbrio social! Cidadãos brancos, ricos, poderosos, amparados por todo tipo de regalias e privilégios sociais e institucionais, desafiando cidadãos descendentes dos povos originários, pobres, frágeis, desprovidos dos direitos sociais e institucionais que lhes são garantidos pela própria legislação nacional. Em tempos de tanta violência deliberada, de tanta apropriação indébita, de tanta afronta ao ordenamento jurídico nacional e ao Estado de Direito, não é de se espantar que a sobrevivência e a dignidade humana sejam colocadas à prova dessa maneira!

Caro (a) leitor (a), diante dessa breve reflexão, não se esqueça de que “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à Justiça por toda parte” (Martin Luther King Jr.). Como tão bem escreveu Bertolt Brecht, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como eu tenho emprego / também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. /Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”. Porque a grande questão, que se coloca no momento, reside no fato de cada ser humano - branco, negro, índio, quilombola - estar potencialmente fadado a ser vítima da arbitrariedade das conjunturas.



1 Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Fonte: Agência Câmara de Notícias.

2 Entenda a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami - https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/crise-humanitaria-terra-indigena-yanomami/ 

O mundo e suas (in)certezas


O mundo e suas (in)certezas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto uma gigantesca parcela da população refuta admitir o peso da existência do Efeito Borboleta sobre a dinâmica cotidiana do mundo, se deixando levar por uma frenética corrida de ambições e um poder desmedido, as certezas se esvaem como fumaça. Por mais que as grandes decisões sejam tomadas a partir de uma análise mais ampla, foge ao controle de qualquer pessoa alguns detalhes e imprevisibilidades que cruzam o caminho de maneira decisiva.

Nesse contexto, um ponto merece total atenção. Não há questão social que não seja atravessada pela Economia. Pode até parecer clichê; mas, o dinheiro é sim, a mola do mundo. E por essa razão, talvez, seja o momento de enfrentar a dura realidade de que o sistema capitalista, formulado a partir da esteira da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, esgotou frente ao próprio curso evolutivo da humanidade.

Mais do que nunca, a concentração de renda nas mãos de uma ínfima minoria tornou-se uma ameaça ao próprio planeta, na medida em que repercute as piores consequências e desdobramentos no espectro das desigualdades sociais 1. A base da pirâmide é o que sustenta o topo e se ela entra em colapso, por conta da insatisfação de demandas básicas e fundamentais, a estrutura rui.

Acontece que, por mais óbvio que isso seja, parece difícil que as elites dominantes abdiquem das velhas práxis, porque isso significa admitir que os tempos são outros. Algo que faz soar como um panorama de fragilidade e de vulnerabilização do poder que sempre ostentaram e sinaliza uma ameaça ao equilíbrio das suas zonas de conforto. Ainda que, a princípio, não se signifique necessariamente uma inversão de posição entre dominantes e dominados, ela aponta para uma desestabilização dessa dominância.

Sim, quanto mais a base da pirâmide se amplia, menos dominadores permanecem no jogo. Sem contar que essa maioria passa a exercer uma pressão descomunal sobre os interesses do topo, porque passa por ela o sucesso ou o fracasso do desenvolvimento e do progresso. Pois é, para quem acredita que as desigualdades não sejam um problema, aí está a prova de que são sim. O massacre social imposto pelo modelo capitalista vigente acabou prejudicando a si mesmo.

Pensar que o peso de todo o ônus do sistema poderia ser carregado pela parcela dominada foi um grande erro. As engrenagens da produção e do consumo precisam estar equilibradamente alinhadas para garantir o seu fluxo natural. Quando a grande massa da população é soterrada por impostos, tributos, baixos salários, condições indignas de trabalho e sobrevivência, os reflexos sobre as atividades produtivas e a vazão do consumo são nefastos. Mas, por incrível que pareça, ainda há, em pleno século XXI, quem aceite e permita, por exemplo, a existência de mão de obra análoga à escravidão.

Entretanto, a reflexão em torno dessa situação vai bem mais além. Praticamente 300 anos depois da 1ª Revolução Industrial, o mundo contemporâneo vive um divisor de águas nas relações de trabalho, a partir do ápice da inovação científica e tecnológica, representada, principalmente, pela inteligência artificial. Observe que “A previsão é de que, até 2025, 85 milhões de empregos no mundo desaparecerão por conta da tecnologia, indica o estudo do Fórum Econômico Mundial (WEF, sigla em inglês)” 2, enquanto a expectativa de criação de novas oportunidades gira em torno de 69 milhões.

Fato é que a defasagem numérica apresentada, por si só, aponta para um recrudescimento do empobrecimento global já existente, ao mesmo tempo em que implicará na desaceleração do enriquecimento das elites e no acirramento das desigualdades, de modo que, a produção ficará comprometida pela inexistência de mercado consumidor suficiente.

Algo compartilhado pela Organização das Nações Unidas (ONU) quando “alerta para o aumento da pobreza e das desigualdades dentro e entre os países, aliado às crises econômicas e sociais dos últimos anos”, o que significa que “A nova realidade global inclui perturbações econômicas ligadas à globalização e à tecnologia, transformações demográficas expressivas, fluxos migratórios crescentes e situações de fragilidade que levam mais tempo” 3.

Bem, diante do exposto só posso recordar as seguintes palavras de Paulo Freire: “E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas”. Afinal, ter certeza é mesmo uma convicção tola. Certeza de que, quando a própria condição humana é mutável! Somos, por excelência, seres inacabados, em franca transformação. E, talvez, seja essa força invisível que faz mover as asas de todas as borboletas mundo afora, nesse balé caótico que reafirma cada vez mais a inexistência de um “para sempre” idealizado, como querem tantos acreditar.


domingo, 27 de agosto de 2023

O eterno ruído em torno do conservadorismo e do progressismo


O eterno ruído em torno do conservadorismo e do progressismo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O recente descortinar da história brasileira ainda desconforta muita gente, por aí. Encarar a verdade sobre a identidade nacional, com todo o seu ranço colonial impregnado, não é mesmo uma tarefa fácil. Afinal, vivíamos sob a falsa impressão de um país de bem com a vida, sem a presença de tensões sociais, quando, na verdade, o que existia era um constante varrer de problemas para debaixo do tapete.

Pois é, o Brasil sempre foi racista, misógino, aporofóbico, xenofóbico, homofóbico, etarista e todos os preconceitos mais. Não vou dizer que não expressava; mas, havia uma tolerabilidade explícita, nessas ocasiões. Como se a sociedade tivesse que aceitar os absurdos sem se manifestar a respeito, colocando-os na conta de uma banalidade social, quando jamais foram.

Então, nos últimos dias, alguns veículos de comunicação e informação vieram trazendo seu espanto diante dos recentes votos do mais novo ministro da Suprema Corte nacional, por conta do seu desalinhamento ideológico com o atual governo. Tendo sido a sua indicação uma escolha pessoal do atual Presidente da República havia uma expectativa da sociedade, a qual, de repente, foi frustrada.

No entanto, analiso os fatos por uma outra perspectiva. Na verdade, trata-se de um alerta importantíssimo para a população, considerando todos os movimentos antidemocráticos, anticidadãos e antirrepublicanos ocorridos ao longo dos últimos anos no país e cujo ápice da sua expressão foi o 08 de janeiro de 2023. Lamento, mas aquela amostra populacional insurgente é insuficiente para refletir, com exatidão, a dimensão do conservadorismo brasileiro.

Por quê? Porque quando o assunto é o conservadorismo, ele ultrapassa as fronteiras políticas, em tese, estabelecidas. O conservadorismo no Brasil é sim, herança do sistema colonial. Estou falando de um ideário que tem como princípio e valor a manutenção das tradições dentro de um sistema civilizatório, no que diz respeito à continuidade de ideias capazes de sustentar a visão de mundo, os costumes, os comportamentos, as crenças e a educação de um coletivo social.

Portanto, ainda que a ultradireita, o braço mais radical e extremista da direita brasileira, tenha se apropriado do conservadorismo, enquanto plataforma político-partidária, não se engane! O conservadorismo está intrínseco à matriz identitária nacional, dada a própria construção histórica do pensamento e da cidadania brasileira.

Inclusive, em razão, da própria presença religiosa do cristianismo, chegado ao Brasil pela religiosidade do colonizador português, no século XVI, através de certos dogmas presentes em sua doutrina e que permanecem distantes de um processo de reavaliação, mesmo diante das profundas transformações da sociedade no cenário contemporâneo. Algo que deveria impulsionar a reflexão social, por conta do antagonismo natural existente nessa situação.

Ora, de saída, então, o conservadorismo bate de frente com a realidade no que diz respeito ao progresso, seja no campo científico, tecnológico, econômico, comportamental e organizacional da sociedade. De modo que ele só resiste e sobrevive, no país, por conta da existência de um modelo social, o qual reproduz, de certa forma, a organização das estruturas coloniais, no que tange a distribuição dos poderes, das influências, das importâncias, no exercício da manipulação e do controle do cidadão.

Há um erro em pensar que o conservadorismo, dentro da perspectiva contemporânea, esteja associado totalmente aos partidários e simpatizantes da direita brasileira ou aos membros das igrejas cristãs neopentecostais, por exemplo. Nesses grupos existe sim, uma predisposição maior ao ideário conservador; porém, eles não são os únicos. O que une pessoas plurais nesse pensamento é, então, a defesa do nacionalismo, da ordem e da moral, da racionalidade e da tradição, da desigualdade social, do individualismo e do liberalismo econômico, que têm suas sementes no colonialismo.  

A grande questão é que essa defesa vem sendo nutrida por um radicalismo, um extremismo, que foge ao controle e à normalidade da convivência pacífica. O que significa que o conservadorismo contemporâneo se aproxima cada vez mais de ser uma expressão do fundamentalismo. Como escreveu Umberto Eco, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante ignorância e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo”, porque eles têm total convicção nas suas perspectivas de sociedade, as quais lhes parecem fornecer uma zona de conforto ideal para suas necessidades e interesses.

E devo dizer que a própria contemporaneidade fomentou esse processo. Pois é, ela tem uma responsabilidade direta sobre a expansão conservadora, na medida em que se permitiu hastear uma bandeira de liberdade absoluta que esgarçou todos os pilares objetivos e subjetivos da segurança social. Acontece que o ser humano em si, para o seu desenvolvimento pleno e saudável, precisa se sentir seguro, de alguma forma. Ele precisa encontrar pontos de apoio que garantam a certeza de um mínimo amparo e proteção.

O que significa dizer que a segurança tem muito a ver com as individualidades do ser humano. Entendendo que essa segurança advém de valores fundamentais, tais como serenidade, paciência, humildade, generosidade, racionalidade, conciliação, amabilidade, equilíbrio, respeito, justiça, caridade, empatia e fraternidade, é que ele define a sua própria individualidade.

Afinal, é esse conjunto de valores que, presentes na identidade do indivíduo, lhe permite, então, fundamentar as bases da sua cidadania, ou seja, o modo como irá exercitar o conjunto de direitos e deveres sociais referentes ao seu poder e seu grau de intervenção e transformação da realidade política do seu país.

De modo que a ausência deles, ou a sua fragilização e vulnerabilização, decorrente desse padrão fundamentalista conservador, tende a impactar a própria sobrevivência da Democracia nacional. Porque se não há espaço para o diálogo, para o contraditório, para o progresso científico, tecnológico, econômico, comportamental e organizacional da sociedade, a Democracia não consegue estabelecer o consenso essencial para garantir a sua soberania, a manifestação plena da cidadania, o respeito à dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, nem tampouco, o pluralismo político.  

Assim, é sobre esses aspectos, discorridos brevemente acima, que devemos debruçar a nossa consciência crítica e reflexiva. Citando, mais uma vez, o escritor Umberto Eco, “[...]deixemos de lado as metafísicas e as transcendências se quisermos reconstruir juntos uma moral perdida; reconheçamos juntos o valor moral do bem comum e da caridade no sentido mais alto do termo; pratiquemo-lo profundamente, não para merecer prêmios ou escapar de castigos, mas simplesmente para seguir o instinto que provém da raiz humana comum e do código genético comum que está inscrito no corpo de cada um de nós”. Afinal, essas palavras são uma pista valiosa para complementar a jornada analítica sobre o conservadorismo nacional.  

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

A ameaça do personalismo às instituições brasileiras


A ameaça do personalismo às instituições brasileiras

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais extenuante que possa parecer acompanhar a ebulição que vive o Brasil, nesses primeiros oito meses de 2023, vale a pena o esforço na medida em que se consegue perceber os pontos nevrálgicos da deterioração da organização socioinstitucional do país. E, talvez, o mais visível e perigoso deles seja o personalismo que toma conta das instituições nacionais.

De repente, a visão particular ou o ponto de vista extremamente pessoal, a respeito de algo ou de alguém, transbordou os limites institucionais, fazendo com que se estabelecesse um conflito de interesses muito graves, e comprometedores, ao equilíbrio da nação. Ora, tais instituições estão a serviço do país, dos interesses nacionais, da sua coletividade populacional e, portanto, não podem agir sob a seletivização dos propósitos de uns e outros.

Assim, é preciso deixar claro qual caminho pretendem seguir as instituições, a partir de agora. O que significa separar o joio do trigo, ou seja, podem elas permitir as devidas responsabilizações aos seus elementos envolvidos em atos reprováveis de desobediência e total indisciplina, quanto ao cumprimento das suas atribuições estabelecidas em lei, ou se predispor a assumir seu papel na corresponsabilidade das infrações, ainda que isso venha a impor um peso negativo à sua imagem.

Afinal de contas, isso é necessário em virtude de as instituições, ao menos em tese, se fundamentarem pela coesão e pela coerência de um senso comum a fim de garantir-lhes a confiança e a credibilidade da população. O que faz com que as expectativas sociais construídas em torno de seus servidores, ou de seus funcionários públicos, orbite a satisfação dos interesses coletivos nacionais e não, de alguns em detrimento de outros.

Parece urgente, então, a necessidade de as instituições brasileiras reverem o acirramento dos constrangimentos comportamentais, impostos por certos elementos, com o intuito de fazer prevalecer o individualismo egóico de suas opiniões e perspectivas, como se não houvesse uma distinção entre a vida privada e a vida pública do cidadão. Ora, o cotidiano não funciona sob as mesmas orientações e protocolos sociais em todos os espaços geográficos que ocupamos!

Quando não se estabelece a transparência no posicionamento institucional, ainda que equivocada, há uma tendência natural de se homogeneizar os acontecimentos, ou seja, atribuí-los diretamente às instituições e não, aos seus membros. Especialmente, quando estes se mantêm apegados aos elementos representativamente simbólicos, das instituições as quais pertencem.  

De modo que teimo em insistir que as instituições não podem e não devem permitir se transformar em palcos de desafios ideológicos, de insubordinações afrontosas, de ilegalidades dolosas, por parte de alguns dos seus, como se tem visto acontecer amiúde no país.

Não é hora de silêncios estratégicos. Nem de contemporizações enviesadas. Nem de construções narrativas esgarçadas. É hora de exercitar a lisura, a clareza, a objetividade, tão comumente presentes no ideário que se faz a respeito das instituições. Nada mais nada menos, do que colocar os pingos nos is e defender os valores, as crenças, os princípios e as convicções que sempre se apresentaram como o seu alicerce. Em suma, passando a história a limpo!

E é tecendo reflexões como esta, que se percebe como todo esse personalismo, em expansão, nas instituições brasileiras pode afetar diretamente a manutenção do senso prático de nossa Democracia. Já tão fragilizada e vulnerabilizada, sob diferentes formas, na contemporaneidade.

Afinal, é desse personalismo nutrido pela ousadia, pela arrogância, pela arbitrariedade de alguns, por aí, que somos envolvidos sutilmente pelo manto do medo, ou seja, “O medo é que faz que não vejas, nem ouças porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos, e fazer que pareçam as coisas outras do que são!” (Miguel de Cervantes – Dom Quixote de la Mancha [1605])

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A difícil arte de exercitar a mea-culpa...


A difícil arte de exercitar a mea-culpa...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A difícil arte de exercitar a mea-culpa é um mal genuíno do ser humano. É certo que algumas posições dentro do contexto social tornam o ato de pedir perdão ou a confissão de culpa ainda mais desafiadora e complexa. Mas, em maior ou em menor escala, em algum momento da vida, todo ser humano esbarra nessa questão.

E olhando com mais atenção para a contemporaneidade, isso fica ainda mais evidente. Estamos diante de uma sociedade que pode ser caracterizada por três elementos importantes, ou seja, o individualismo, o narcisismo e o egoísmo. Por conta da necessidade de reafirmação dos interesses pessoais, valendo-se de uma apropriação desmedida da liberdade existencial, o sujeito contemporâneo aproveita para ostentar e lustrar suas possíveis habilidades e competências de modo grandioso e exibicionista.

O que em linhas gerais, aponta para um total sentimento de indiferença, de empatia, de alteridade. Isso porque ele está tomado por um amor próprio excessivo, o qual limita a sua percepção quanto ao senso coletivo, social. Para ele não existe a figura do outro, nem tampouco outras opiniões, interesses, necessidades que não sejam as suas. E aí, ele ultrapassa as fronteiras, os limites e mete os pés pelas mãos compulsivamente.

Justamente desse ponto de partida, então, é que se deve estabelecer qualquer análise crítico-reflexiva sobre a mea-culpa. Ora, apesar de traços tão bem delimitados, eles não foram capazes de desaparecer com a necessidade fundamental humana de pertencimento. E aí está o grande desafio, ou seja, como compatibilizar o individualismo, o narcisismo, o egoísmo, o pertencimento e a mea-culpa? Afinal de contas, a mea-culpa emerge das próprias circunstâncias conflituosas estabelecidas nas propostas de se fazer caber no pertencimento social, sem abdicar da identidade que carrega consigo.

Me refiro a uma luta de egos que se digladiam, à luz do dia, a toda hora e em qualquer canto do planeta. Basta fechar os olhos e imaginar oito bilhões de indivíduos tendo que defender, por escolha própria, o seu individualismo, o seu narcisismo, o seu egoísmo, frente ao desejo simultâneo de fazer parte de um coletivo. As tensões, os conflitos, as beligerâncias, as traições, ... tudo passa a contextualizar essa dinâmica e conduzir, inevitavelmente, a uma imposição real do exercício consciente e integral da mea-culpa, para no mínimo estancar as consequências e desdobramentos indesejáveis e, muitas vezes, já em curso.

Acontece que calçar as sandálias da humildade, não é para qualquer ser humano, que dirá um sujeito contemporâneo! É difícil que alguém imerso no visgo social que marca esse recorte temporal, ainda tenha correndo nas veias, gotas suficientes de altruísmo, desprendimento, abnegação, desapego, simplicidade, despojamento ou autocontrole, para se predispor a admitir os seus erros, a sua falibilidade, as suas imperfeições, os seus equívocos.

Afinal, vivemos a era dos super-heróis! Figuras imortais, indestrutíveis, indefectíveis que estabelecem, portanto, uma noção de força e de poder que não permite quaisquer sinais de fragilidade ou de vulnerabilidade. E, lamentavelmente, o ato de pedir perdão ou de confessar uma culpa carrega sim, o peso dessa humanidade que habita em cada um de nós, mesmo que não demos demonstração disso e a mantemos guardada no mais profundo da nossa inconsciência.

Penso eu, que fazem isso porque é demasiadamente difícil encarar a dimensão dos estragos, dos efeitos deletérios de determinados atos e omissões. De algum modo o senso de espécie, existente no indivíduo, falha na sua expressão, mesmo que sutil e silenciosamente. Pena, que isso seja insuficiente para gerar algum desconforto ou perturbação; pois, temos que admitir que somente “O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros” (Confúcio).

Assim, observando os recentes rodopios do mundo pela perspectiva da imensa carência de mea-culpa, a qual se faz tão necessária e oportuna, encerro aqui as minhas considerações a respeito do tema, com as seguintes palavras de Oscar Wilde: “O homem pode suportar as desgraças, elas são acidentais e vêm de fora: o que realmente dói, na vida, é sofrer pelas próprias culpas”

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Quando é que vamos perceber que a humanidade está adoecendo???


Quando é que vamos perceber que a humanidade está adoecendo???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, impulsionou uma nova perspectiva social para a raça humana, o consumo. Para produzir em larga escala era fundamental que houvesse demanda. Então, da consciência em torno do óbvio emergiram milhares de teorias e técnicas suficientemente capazes de envolver e persuadir as pessoas a se integrarem totalmente no ciclo de produção e consumo.

Ora, isso foi decisivo, do ponto de vista do inconsciente coletivo, para dar forma a uma personalidade cada vez mais materialista ao longo dos séculos. Da lógica de um produzir suficientemente capaz de gerar recursos para o consumo, o ser humano foi se afastando de uma consciência sobre o que é realmente importante, essencial, para satisfazê-lo em suas necessidades mais simples ou complexas.

O mais estranho nesse movimento foi a inexistência de quaisquer questionamentos a respeito dos impactos e desdobramentos decorrentes da Revolução Industrial. Uma das explicações está no fato de que a própria arbitrariedade do poder capital silenciou a capacidade crítico-reflexiva das pessoas, através de um conjunto de narrativas inebriantes em torno do potencial da inovação que emergia e o acúmulo de tarefas e obrigações intermináveis. De modo que enredadas pelo novo, elas não se deram conta do que tudo isso representaria mais adiante.

Assim, excetuando-se as elites e os governos, detentores dos meios de produção, o restante da população se viu na condição de passar a trabalhar cada vez mais; mas, nem sempre, em condições e salários efetivamente satisfatórios para garantir a sua dignidade humana. E sem quaisquer coincidências ou acasos, eis que a partir desse contexto, a humanidade embarcou numa cruzada de adoecimento físico e mental bastante significativa.

É curioso que, apesar da melhoria na expectativa de vida de milhões de seres humanos, a fragilização da saúde permaneça figurando no planeta em decorrência de diferentes fatores. Algo elementar, caro (a) leitor (a)! O acirramento das desigualdades impõe esse desafio. Nem todos têm acesso aos serviços básicos de saúde ou dos avanços científicos e tecnológicos nesse setor, ou a alguma atividade física regular e assistida por um profissional, ou ao lazer e entretenimento, ou à segurança alimentar, ou a condições de moradia adequadas e salubres, enfim.

Não pense que isso é especulação da minha parte! Basta ver os índices de expectativa de vida para descobrir que dentro de uma mesma cidade, alguns cidadãos vivem mais do que outros, justamente por conta das desigualdades socioeconômicas existentes. Então, quando essa análise ganha a comparação entre estados ou países, a gente percebe como o adoecimento social é um problema real e concreto na contemporaneidade e precisa ser alvo de medidas urgentes.

Matérias como “As doenças desconhecidas que afetam 350 milhões ao redor do mundo” 1, ou “’Perdi todos os movimentos e fiquei 13 dias na UTI’, diz sobrevivente da Guillain-Barré” 2, ou “Estudo mostra por que o câncer de pele cresce e aponta limitações dos filtros solares” 3, por exemplo, deveriam exercer um choque de realidade para que as pessoas se despertassem para o fracasso da frenética dinâmica imposta pela sociedade de consumo.

É preciso entender que a busca pelo ter, não implica necessariamente, na efetividade da mobilidade social. Portanto, levados à exaustão nessa corrida sem fim, a real insuficiência e ineficiência do capital se mostra clara diante do adoecimento populacional. As estratégias de marketing, dizem por aí, que o indivíduo pode comprar de um tudo, só se esquecem de dizer que, quando o assunto é a saúde, a regra não se aplica. Segundo a própria organização Mundial da Saúde (OMS), “As pessoas estão vivendo mais – mas com mais incapacidade”, o que significa que “em grande medida, as doenças e condições de saúde que causam mais mortes são as responsáveis pelo maior número de anos de vida saudáveis perdidos” 4.

Razão pela qual, entre os 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), o terceiro diz respeito à “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades” 5, até 2030. Considerando que o desenvolvimento sustentável se fundamenta em três dimensões, ou seja, econômica, social e ambiental, a saúde se insere nessa consciência como condição essencial no modo de vida, no trabalho, na habitação, no ambiente, na educação, no lazer, na cultura e no acesso a bens e serviços indispensáveis.

Afinal, como escreveu Jiddu Krishnamurti, filósofo e educador indiano, “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. E o adoecimento global, nos moldes quem têm se apresentado, compromete definitivamente a sobrevivência da espécie humana, porque ele acontece sob diferentes formas; mas, todas elas motivadas principalmente pela desumanização e pela falta de perspectiva para o futuro. Infelizmente, essa perda da saúde pela maioria das pessoas é um reflexo da consciência de que fazer parte da sociedade consumo é, no fundo, uma luta inglória.  

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Exploração de petróleo na foz da bacia do Amazonas


Exploração de petróleo na foz da bacia do Amazonas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não vejo mal algum no fato de um país ambicionar mais para si, a partir de seus potenciais. O que sempre me pareceu estranho é o ímpeto desse movimento, tendo em vista de que muitas vezes isso acontece desconsiderando, por completo, a realidade histórica de passos que precisariam ter sido dados e não foram. E o Brasil tem muito disso. Talvez, pelo peso da herança colonial que carrega na sua identidade.

Verdade seja dita, esse é um país que esbanja potencial sob diferentes aspectos; mas, esbarra na sua imensa dificuldade de superar certos ranços da sua história. De modo que ele quer avançar, quer assumir pelas mãos um protagonismo, uma importância, porém, acaba se perdendo em meio ao seu modo atabalhoado e extremamente amador de se posicionar.

Ora, o Brasil teima no seu imediatismo! Sem muito apreço pelo conhecimento, pelo planejamento, pela análise, pelo critério, ele se acostumou desde sempre a agir por impulso, a se curvar por interesses contrários à lógica, ao bom senso, e, porque não dizer, à ciência. Como se não se preocupasse, nem um pouco, com as consequências dessa impetuosidade; sobretudo, no que diz respeito ao custo material que tudo isso pode significar.

Assim, a notícia de que “Parecer da AGU abre caminho para exploração de petróleo pela Petrobras na foz da bacia do Amazonas” 1, exemplifica bem as minhas considerações. Se a notícia se confirmar, no sentido de que os trabalhos sejam iniciados, o potencial de liderança global no campo da sustentabilidade socioambiental, o qual o atual governo brasileiro fez, de iniciativa própria, questão de manifestar internacionalmente, cai em ruína.

Mais do que uma completa ruptura narrativa, que por si só demonstra uma total fragilidade de posicionamento sobre o que realmente deseja o país nessa seara, o Brasil demonstra o seu desalinhamento à todas as expectativas práticas, construídas pelas demais lideranças globais, mediante a empolgação com os discursos iniciais. Afinal, a superficialidade com a qual o governo tem tratado dessa questão petrolífera na Amazônia, inclusive, desconsiderando os pareces técnicos do setor ministerial responsável, esgarça as possibilidades de parceria internacional no enfrentamento dos desafios socioambientais contemporâneos.

Acontece que o mundo sabe, muito bem, que a atual gestão vive um momento de reconstrução brasileira bastante delicado e complexo, o que significa que eventuais catástrofes ambientais encontrariam dificuldade de serem prontamente solucionadas. O que deixa claro que o Brasil está literalmente, e mais uma vez na sua história, dando um passo maior do que a perna. Se embrenhando em uma aventura, cujas consequências e desdobramentos, ele está longe de estar efetivamente preparado para enfrentar.

Basta ver como o país lidou com os recentes desastres ambientais. Entre agosto de 2019 e março de 2020, por exemplo, aproximadamente 11 estados brasileiros, na área litorânea, foram severamente impactados por manchas de óleo e ficaram à mercê dos próprios esforços para resolver a situação. Ou o rompimento das barragens de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), em virtude da exploração mineral, em Minas Gerais. Isso sem contar a destruição de diversas cidades, em diferentes estados, por chuvas torrenciais que promoveram deslizamentos de encostas e atingiram milhares de cidadãos, com gravidade e letalidade, cujos cenários permanecem praticamente inalterados, desde então. ...

Bem, em um momento da história do planeta o qual os danos produzidos pela queima de combustíveis fosseis, como é o caso do petróleo, acarretam o recrudescimento dos efeitos extremos do clima e todos os seus impactos negativos sobre a vida humana e os mais diversos ecossistemas, há uma corrida geopolítica pela expansão das matrizes energéticas limpas, geradas a partir da água, do vento, do sol ou da biomassa (cana-de-açúcar), pelos mais diferentes setores da indústria.

E não foi por falta de avisos embasados a partir de pesquisas e documentos de elevada propriedade técnica que o mundo chegou ao seu limite de tolerabilidade socioambiental, necessitando aceitar novos paradigmas. Na verdade, a mesma negligência que o Brasil demonstra, nesse caso do petróleo da foz do Amazonas, o planeta o fez durante décadas. Portanto, a discussão ética desse assunto é muito mais profunda, do que uma simples ruptura narrativa pelo Brasil. Daí a certeza de que esse tipo posicionamento, escolhido pelo governo brasileiro, é errático e totalmente antiproducente.

Impactos ambientais negativos ligados à extração de petróleo não dizem respeito apenas ao risco de vazamento, poluição do ar, poluição da água, desmatamento, destruição de habitats marinhos e terrestres, ou seja, prejuízos gerados ao meio ambiente propriamente dito. Há Impactos socioculturais negativos. Impactos negativos à saúde. E o somatório desses impactos, muitos deles irreversíveis, desembocam nos impactos econômicos negativos, de grande proporção, para qualquer país.

Lamento, mas não basta só o potencial, ou só bater no peito e se dizer protagonista, ou usar da boa retórica para ocultar as verdades indigestas. Como escreveu Djonga, rapper e escritor mineiro, “Se cada um é um universo / Quem salva uma vida salva um mundo inteiro / Seja protagonista da sua história / Pega a folha e muda o roteiro ...”. Só não se esqueça de que “Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível” (Mahatma Gandhi).

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Saudosismo. Flertando com o passado.


Saudosismo. Flertando com o passado.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A manchete “Militares veem justiça esticando a corda e gerando instabilidade e insegurança nas Forças Armadas” 1 diz bem mais do que parece. Não, porque as palavras buscam na pós-verdade um modo de inverter a lógica da realidade, abstendo os militares do recente processo golpista no país e colocando-os na posição de vítimas do judiciário; mas, pelo fato de materializar uma explicação importante para o fenômeno saudosista encampado pelo ideário da ultradireita nacional.

O saudosismo, caro (a) leitor (a), tem essa capacidade peculiar de invisibilizar ou negar a história, permitindo enxergá-la apenas pelo prisma de recortes definidos pelo interesse individual ou coletivo, de determinado grupo. Vamos e convenhamos, então, que ninguém sente saudade daquilo que foi ruim. Assim, o saudosismo fornece subsídios para acalentar uma zona de conforto àqueles que decidem contar a história por uma perspectiva muito particular, constituída majoritariamente de momentos bastante pródigos e agradáveis aos próprios interesses.

Acontece que não é possível voltar no tempo, nem moldar o presente no passado e, muito menos, apagar a história. Depois dessa matéria, tudo fez sentido. O saudosismo dessas pessoas tem uma razão muito especial de ser. Ele emerge para tentar sepultar de vez o incômodo que a lei n.º 6683 (Lei da Anistia), de 28 agosto de 1979, não conseguiu aplacar à subjetividade da classe militar brasileira. Muitas dessas pessoas traziam consigo a nítida impressão de que a lei em si não teria capacidade suficiente para pôr termo a quaisquer questionamentos que restassem sem resposta sobre aquelas duas décadas de chumbo.

Portanto, o tempo para essas pessoas não passou. Sobre elas esteve sempre pairando o fantasma da história, nutrido pela dor e o inconformismo de milhares de indivíduos envolvidos, direta ou indiretamente, naquele contexto. Pais. Mães. Irmãos. Filhos. Famílias inteiras impactadas pelo desaparecimento súbito de entes queridos. O que significa algo muito mais profundo do que o próprio direito da nação, enquanto coletivo identitário, em saber quando, como e onde esses fatos terríveis ocorreram.   

E apesar de viver aos sobressaltos com eventuais rumores questionadores da história, a ausência de tensão a respeito não era suficiente para se traduzir em algo definitivamente pacificado. Simplesmente, porque o acesso à história nacional passa, de certo modo, pelo poder político-partidário e de suas instituições. O modo como entendem o processo de construção identitária do país, a relevância da verdade histórica para os movimentos de desconstrução e ressignificação cidadã, varia de acordo com a consciência social vigente no poder.

De modo que a solução encontrada por um grupo de elementos da seara militar foi buscar uma participação mais efetiva nas esferas de poder, mesmo que para isso fosse necessário o emprego de práxis nada republicanas e democráticas. Porém, sobre as velhas camadas de escombros históricos que tanto lhes causam inquietação e incômodo, eis que o recente movimento, dada a gravidade dos acontecimentos, os colocou na cena da anticidadania e da antidemocracia outra vez, sob uma torrente de novas indagações. Como se o lustro dado ao seu saudosismo tivesse sido demasiado e esgarçado definitivamente a sua imagem.   

Pois é, se tivessem permitido verdadeiramente pacificar a história, ao longo das últimas quase quatro décadas, não seriam necessários arroubos saudosistas com essa magnitude de enviesamento e distorção. A história não é um espaço restrito às glórias, às vitórias, às conquistas. A história é repleta de erros, de absurdos, de arbitrariedades, porque seu elemento central é o ser humano. Querer transformá-la em palco da pós-verdade é, portanto, o caminho mais deplorável para condenar e subjugar a sociedade a viver sob o peso assombroso de fantasmas, os quais não se concede a clemência do descanso e da paz.  

Não adianta negar, a história do Brasil é o que é. O que houve de 1964 a 1985 é só mais um fragmento dentro de um coletivo de horrores, cujas raízes começam, inclusive, pela colonização. São tantos os esqueletos no armário do país! Racismo. Misoginia. Xenofobia. Aporofobia. Homo e transfobia. ... De modo que a pretensão do recente saudosismo é trazer à tona uma história nacional idealizada, como se nenhuma dessas questões tivesse existido e, portanto, quaisquer manifestações a respeito são descabidas e intoleráveis.

Assim, ao chegar ao fim dessa breve reflexão, trago uma citação que cabe perfeitamente ao contexto atual: “Mas talvez naquele momento ele não tenha sido capaz de nenhum cálculo, o grito que lhe saiu da boca era o grito de sua alma e nele e com ele descarregava anos de longos e secretos remorsos. Ou seja, após uma vida de incertezas, entusiasmos e desilusões, vilezas e traições, posto diante da inelutabilidade de sua ruína, ele decida professar a fé de sua juventude, sem mais perguntar se era justa ou errada, mas para mostrar a si mesmo que era capaz de alguma fé” (Umberto Eco - O nome da Rosa [1980]).  

sábado, 19 de agosto de 2023

Pós-verdade...


Pós-verdade...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tempos da pós-verdade? Sim. Mas não da maneira que querem fazer parecer uns e outros por aí. Subverter a lógica dos fatos a fim de satisfazer os interesses pessoais, seja de um indivíduo ou de um coletivo, não massifica necessariamente o consciente da população como um todo. A pós-verdade é sim, uma boa ferramenta para inflamar as emoções, os sentimentos e as crenças, daquele grupo que simpatiza e coaduna com a mesma perspectiva. Acontece que um grupo é só um grupo, uma mera amostra de um contingente muito maior e que é plural por excelência.

Assim, por mais que a manipulação da verdade se faça presente no mundo contemporâneo, ela continua sendo só um viés de possibilidade. Porque a humanidade, por mais que queira ou tente, não consegue extinguir o genuíno ímpeto do contraditório. Ainda que em muitos momentos sejamos arrebatados pela nítida sensação de que a sociedade vagueia sob efeito manada, há sempre as suas ovelhinhas negras, por aí. É o ser humano sendo o ser humano, graças ao seu vasto repertório de idiossincrasias.

Iguais, só até a página dois! Cada um tem sua genética particular, suas variações anatômicas e fisiológicas, suas alergias, e principalmente, sua própria engenharia intelectual e cognitiva. Herança de família. Contaminação social. Vivência. Ou um mix de tudo isso, que acaba fazendo com que ressalte uma perspectiva da vida e do mundo quase que indomável. De modo que não adianta passar com a pós-verdade, da vez, como um rolo compressor sobre a sociedade, porque não vai funcionar no seu absolutismo completo.

Ah, e não vamos nos esquecer de que pós-verdade não tem nada a ver com lentes cor-de-rosa! Pois é, não há nela quaisquer traços de estabelecer uma visão de mundo melhor ou mais bonito. Aliás, a pós-verdade institucionaliza o descompromisso social com os fatos em si, valendo-se das inverdades, das distorções, das mentiras, da tendenciosidade oportunista e, muitas vezes, da disseminação do terror social. Na medida em que apela para questões já impregnadas negativamente no inconsciente coletivo, exacerbando o sentimento de repulsa, receio ou temor.

Não é à toa que a presença da pós-verdade, de certo modo, faz alguns de nós entendermos que “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (Michel Foucault 1). Daí se compreende porque diante das necessidades sociais contemporâneas, as pessoas não se constrangem ou se inibem em lançar mão do recurso da pós-verdade para alcançar seus objetivos.

Mesmo que isso signifique impactar apenas a sua própria bolha de seguidores e simpatizantes. Pois se trata de um processo de fortalecimento da alienação ideológica a partir da agregação dos indivíduos por uma mesma perspectiva. Assim, mesmo que as afirmações, as notícias ou as ideias sejam inverossímeis, o apelo sentimental e emocional provocado por elas, em razão das crenças pessoais, extrapola qualquer necessidade de comprovação da verdade objetiva. Afinal de contas, a pós-verdade chega, geralmente, por meio de pessoas que ocupam determinadas posições sociais que autorizam esse discurso e historicamente não estão sujeitas à contestação.

Só posso dizer que esse me parece só um dos vieses deletérios da questão. O pior, talvez, esteja no fato de que a pós-verdade acaba por retirar a visibilidade das verdadeiras prioridades do mundo contemporâneo. Eventos extremos do clima. Empobrecimento global. Saúde mental. A crise dos refugiados. Guerras e conflitos. Desertificação. Escassez hídrica e de alimentos. Epidemias. ... Enquanto ela entretém com falatórios e polêmicas desnecessárias, a sociedade se desvia de pensar e debater sobre questões gravíssimas que afetam não só a dinâmica do cotidiano; mas, sobretudo, a sobrevivência da sua espécie.   

Citando mais uma vez, Michel Foucault, “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que os sonhos, a motivação, o desejo de ser livre nos ajudam a superar esses monstros, vencê-los e utilizá-los como servos da nossa inteligência. Não tenha medo da dor, tenha medo de não enfrentá-la, criticá-la, usá-la”.

Ora, cada minuto a mais, nesse mundo, aponta para a mais completa ineficiência da pós-verdade, no sentido de nos livrar ou nos proteger do grande desafio planetário que se aproxima. Assim, não nos esqueçamos jamais de que por trás da pós-verdade há uma verdade inconteste, ou seja, “As pessoas sabem aquilo que fazem; frequentemente sabem porque fazem o que fazem; mas, o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem” (Michel Foucault).

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A história está sempre nas entrelinhas


A história está sempre nas entrelinhas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto o cenário político brasileiro explode em acontecimentos do arco da velha, eu busco tecer minhas reflexões em torno das entrelinhas, as quais, quase sempre, acabam passando despercebidas diante do volume de informações.

E não é que dessa vez a história facilitou a minha vida! Acontece que há séculos o Brasil padece de um mal terrível chamado fisiologismo político, muito comum na seara do Congresso Nacional. Práxis típica de certos regimes democráticos, tendo em vista que nos autoritários ela é praticamente impossível de acontecer.

Portanto, estamos falando a respeito das relações políticas determinadas a partir de ações e decisões tomadas com base na troca de favores, ou de benesses, ou de quaisquer outros agrados para satisfazer interesses de natureza privada, que acontecem em detrimento da coletividade nacional.

Em suma, um total desrespeito dos representantes do povo com o seu eleitorado. Fato gravíssimo; mas, infelizmente, já institucionalizado no país. Quem não se lembra do tal Orçamento Secreto 1 ? No entanto, esse é um mal que figura dentro de um recorte limitado da esfera de poder, ou seja, entre o Legislativo e o Executivo. O que faz com que se tenha uma falsa impressão de que ainda existe algum tipo de mecanismo de controle, o qual não permite a situação descambar ou degenerar para repercussões mais nefastas.

Mas, como já disse muitas vezes, O Brasil não é para amadores! Os malfeitos nessa terra têm raízes históricas tão profundas e decompostas que os desdobramentos entre eles acabam se tornando inevitáveis. É aí que entra a questão do aparelhamento do Estado. Ele não deixa de se basear na troca de favores, ou de benesses, ou quaisquer outros agrados para satisfazer interesses de natureza privada; porém, está alicerçado no controle de órgãos ou setores da administração pública por indivíduos indicados para representar os interesses corporativos, ideológicos ou político-partidários de quem está no poder.

Quem nunca ouviu falar na expressão “cabide de emprego”? Pois é, ela pode ser considerada a materialização dessa ocupação de cargos estratégicos nas instituições de Estado, na medida em que são criados postos de trabalho para lotar pessoas para representarem os tais interesses acima citados. Ora, isso é extremamente nocivo, tanto para o desenvolvimento do país quanto para a própria Democracia. Sim, porque muitas dessas pessoas desenvolvem uma dívida moral em razão do favor ou bem recebido, o que as leva a agir no sentido de comprometer o fluxo da alternância de governos, quando permanecem nos postos ocupados.

Vamos e convenhamos que esse não é um assunto desconhecido por ninguém. Ocorre que pelo fato de pertencer ao rol dos nossos ranços históricos, ele foi banalizado, trivializado e incorporado à dinâmica das relações político-sociais. E sem que nos atentássemos para esse movimento, praticamente, podemos dizer que ele se tornou uma nova roupagem para o velho “voto de cabresto”. Bem menos abusivo, impositivo e arbitrário do que a conhecida prática da República Velha; mas, não perdendo o princípio comum do controle e da manipulação social, que chega revestido pelo senso de uma dívida moral.  

Mas, veja bem, estamos em pleno século XXI, em plena era das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), em franca convulsão do fenômeno das Fake News. Portanto, os espaços da administração pública tornaram-se um verdadeiro campo minado, no que diz respeito ao papel do mecanismo de aparelhamento estatal. Há todo um cenário para que as divergências ideológicas se digladiem e reverberem suas ondas tsunâmicas.

Pois, enquanto os servidores da administração pública, sejam eles civis ou militares, estão submetidos a um regime jurídico para estabelecer seus direitos e deveres no exercício função, o que em tese mitigaria os efeitos deletérios do aparelhamento estatal; há outros tantos, no governo, enquadrados na condição de funcionários temporários ou comissionados, que já chegam condicionados aos objetivos dessa referida práxis. De modo que é preciso separar o joio do trigo; mas, no sentido de desconstruir esse ranço histórico.

Em pleno século XXI, a ideia de aparelhamento do Estado soa constrangedora ao mesmo tempo em que autoritária. Porque aparelhar o Estado significa, nada mais nada menos, do que abafar e silenciar o contraditório, dar carta branca a um modelo de governança, referendar uma ideia de país olhando para o próprio umbigo, graças a uma claque de apoio. É preciso compreender que o Estado aparelhado é constituído de sujeitos totalmente individualistas, que não se colocam ao serviço de um país, de um coletivo; mas, dos seus próprios interesses. A máxima deles é uma velha conhecida, “O fim justifica os meios”.

Assim, penso que ao invés de oferecer 15 minutos de fama para esse contingente desvairado que está povoando os veículos de comunicação e de informação nos últimos meses, deveríamos estar empenhados em discutir esses meandros da história nacional. Ir ao cerne mais profundo das nossas deformidades e distorções identitárias e cidadãs. Não basta repulsa, nem indignação, nem cólera, diante dessas personagens mesquinhas e ridículas, na medida em que elas são apenas uma pequena amostra de um total de outras que as aplaude e festeja seu comportamento deplorável.

Como escreveu Clarice Lispector, “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar” 2. Portanto, temos que dar o nome certo para as coisas. Temos que falar objetivamente sobre a origem do nosso caos. Basta dessa sucessão interminável de plot twists que causam frisson, até mesmo, nos mais ilustres roteiristas! Afinal, o país peca na repetição das mesmas fórmulas políticas vexatórias, o que significa que não há nada de novo para nos surpreendermos. E se temos alguma consciência disso, lembremo-nos que “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (Eduardo Galeano)3.



2 Livro “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” (1969), de Clarice Lispector.

3 Livro “As Veias Abertas da América Latina” (1971), Eduardo Galeano.