domingo, 27 de agosto de 2023

O eterno ruído em torno do conservadorismo e do progressismo


O eterno ruído em torno do conservadorismo e do progressismo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O recente descortinar da história brasileira ainda desconforta muita gente, por aí. Encarar a verdade sobre a identidade nacional, com todo o seu ranço colonial impregnado, não é mesmo uma tarefa fácil. Afinal, vivíamos sob a falsa impressão de um país de bem com a vida, sem a presença de tensões sociais, quando, na verdade, o que existia era um constante varrer de problemas para debaixo do tapete.

Pois é, o Brasil sempre foi racista, misógino, aporofóbico, xenofóbico, homofóbico, etarista e todos os preconceitos mais. Não vou dizer que não expressava; mas, havia uma tolerabilidade explícita, nessas ocasiões. Como se a sociedade tivesse que aceitar os absurdos sem se manifestar a respeito, colocando-os na conta de uma banalidade social, quando jamais foram.

Então, nos últimos dias, alguns veículos de comunicação e informação vieram trazendo seu espanto diante dos recentes votos do mais novo ministro da Suprema Corte nacional, por conta do seu desalinhamento ideológico com o atual governo. Tendo sido a sua indicação uma escolha pessoal do atual Presidente da República havia uma expectativa da sociedade, a qual, de repente, foi frustrada.

No entanto, analiso os fatos por uma outra perspectiva. Na verdade, trata-se de um alerta importantíssimo para a população, considerando todos os movimentos antidemocráticos, anticidadãos e antirrepublicanos ocorridos ao longo dos últimos anos no país e cujo ápice da sua expressão foi o 08 de janeiro de 2023. Lamento, mas aquela amostra populacional insurgente é insuficiente para refletir, com exatidão, a dimensão do conservadorismo brasileiro.

Por quê? Porque quando o assunto é o conservadorismo, ele ultrapassa as fronteiras políticas, em tese, estabelecidas. O conservadorismo no Brasil é sim, herança do sistema colonial. Estou falando de um ideário que tem como princípio e valor a manutenção das tradições dentro de um sistema civilizatório, no que diz respeito à continuidade de ideias capazes de sustentar a visão de mundo, os costumes, os comportamentos, as crenças e a educação de um coletivo social.

Portanto, ainda que a ultradireita, o braço mais radical e extremista da direita brasileira, tenha se apropriado do conservadorismo, enquanto plataforma político-partidária, não se engane! O conservadorismo está intrínseco à matriz identitária nacional, dada a própria construção histórica do pensamento e da cidadania brasileira.

Inclusive, em razão, da própria presença religiosa do cristianismo, chegado ao Brasil pela religiosidade do colonizador português, no século XVI, através de certos dogmas presentes em sua doutrina e que permanecem distantes de um processo de reavaliação, mesmo diante das profundas transformações da sociedade no cenário contemporâneo. Algo que deveria impulsionar a reflexão social, por conta do antagonismo natural existente nessa situação.

Ora, de saída, então, o conservadorismo bate de frente com a realidade no que diz respeito ao progresso, seja no campo científico, tecnológico, econômico, comportamental e organizacional da sociedade. De modo que ele só resiste e sobrevive, no país, por conta da existência de um modelo social, o qual reproduz, de certa forma, a organização das estruturas coloniais, no que tange a distribuição dos poderes, das influências, das importâncias, no exercício da manipulação e do controle do cidadão.

Há um erro em pensar que o conservadorismo, dentro da perspectiva contemporânea, esteja associado totalmente aos partidários e simpatizantes da direita brasileira ou aos membros das igrejas cristãs neopentecostais, por exemplo. Nesses grupos existe sim, uma predisposição maior ao ideário conservador; porém, eles não são os únicos. O que une pessoas plurais nesse pensamento é, então, a defesa do nacionalismo, da ordem e da moral, da racionalidade e da tradição, da desigualdade social, do individualismo e do liberalismo econômico, que têm suas sementes no colonialismo.  

A grande questão é que essa defesa vem sendo nutrida por um radicalismo, um extremismo, que foge ao controle e à normalidade da convivência pacífica. O que significa que o conservadorismo contemporâneo se aproxima cada vez mais de ser uma expressão do fundamentalismo. Como escreveu Umberto Eco, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante ignorância e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo”, porque eles têm total convicção nas suas perspectivas de sociedade, as quais lhes parecem fornecer uma zona de conforto ideal para suas necessidades e interesses.

E devo dizer que a própria contemporaneidade fomentou esse processo. Pois é, ela tem uma responsabilidade direta sobre a expansão conservadora, na medida em que se permitiu hastear uma bandeira de liberdade absoluta que esgarçou todos os pilares objetivos e subjetivos da segurança social. Acontece que o ser humano em si, para o seu desenvolvimento pleno e saudável, precisa se sentir seguro, de alguma forma. Ele precisa encontrar pontos de apoio que garantam a certeza de um mínimo amparo e proteção.

O que significa dizer que a segurança tem muito a ver com as individualidades do ser humano. Entendendo que essa segurança advém de valores fundamentais, tais como serenidade, paciência, humildade, generosidade, racionalidade, conciliação, amabilidade, equilíbrio, respeito, justiça, caridade, empatia e fraternidade, é que ele define a sua própria individualidade.

Afinal, é esse conjunto de valores que, presentes na identidade do indivíduo, lhe permite, então, fundamentar as bases da sua cidadania, ou seja, o modo como irá exercitar o conjunto de direitos e deveres sociais referentes ao seu poder e seu grau de intervenção e transformação da realidade política do seu país.

De modo que a ausência deles, ou a sua fragilização e vulnerabilização, decorrente desse padrão fundamentalista conservador, tende a impactar a própria sobrevivência da Democracia nacional. Porque se não há espaço para o diálogo, para o contraditório, para o progresso científico, tecnológico, econômico, comportamental e organizacional da sociedade, a Democracia não consegue estabelecer o consenso essencial para garantir a sua soberania, a manifestação plena da cidadania, o respeito à dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, nem tampouco, o pluralismo político.  

Assim, é sobre esses aspectos, discorridos brevemente acima, que devemos debruçar a nossa consciência crítica e reflexiva. Citando, mais uma vez, o escritor Umberto Eco, “[...]deixemos de lado as metafísicas e as transcendências se quisermos reconstruir juntos uma moral perdida; reconheçamos juntos o valor moral do bem comum e da caridade no sentido mais alto do termo; pratiquemo-lo profundamente, não para merecer prêmios ou escapar de castigos, mas simplesmente para seguir o instinto que provém da raiz humana comum e do código genético comum que está inscrito no corpo de cada um de nós”. Afinal, essas palavras são uma pista valiosa para complementar a jornada analítica sobre o conservadorismo nacional.