O eterno
ruído em torno do conservadorismo e do progressismo
Por
Alessandra Leles Rocha
O recente descortinar da
história brasileira ainda desconforta muita gente, por aí. Encarar a verdade
sobre a identidade nacional, com todo o seu ranço colonial impregnado, não é
mesmo uma tarefa fácil. Afinal, vivíamos sob a falsa impressão de um país de bem
com a vida, sem a presença de tensões sociais, quando, na verdade, o que
existia era um constante varrer de problemas para debaixo do tapete.
Pois é, o Brasil sempre
foi racista, misógino, aporofóbico, xenofóbico, homofóbico, etarista e todos os
preconceitos mais. Não vou dizer que não expressava; mas, havia uma
tolerabilidade explícita, nessas ocasiões. Como se a sociedade tivesse que
aceitar os absurdos sem se manifestar a respeito, colocando-os na conta de uma
banalidade social, quando jamais foram.
Então, nos últimos dias,
alguns veículos de comunicação e informação vieram trazendo seu espanto diante
dos recentes votos do mais novo ministro da Suprema Corte nacional, por conta
do seu desalinhamento ideológico com o atual governo. Tendo sido a sua indicação
uma escolha pessoal do atual Presidente da República havia uma expectativa da
sociedade, a qual, de repente, foi frustrada.
No entanto, analiso os
fatos por uma outra perspectiva. Na verdade, trata-se de um alerta
importantíssimo para a população, considerando todos os movimentos
antidemocráticos, anticidadãos e antirrepublicanos ocorridos ao longo dos
últimos anos no país e cujo ápice da sua expressão foi o 08 de janeiro de 2023.
Lamento, mas aquela amostra populacional insurgente é insuficiente para refletir,
com exatidão, a dimensão do conservadorismo brasileiro.
Por quê? Porque quando o
assunto é o conservadorismo, ele ultrapassa as fronteiras políticas, em tese,
estabelecidas. O conservadorismo no Brasil é sim, herança do sistema colonial. Estou
falando de um ideário que tem como princípio e valor a manutenção das tradições
dentro de um sistema civilizatório, no que diz respeito à continuidade de ideias
capazes de sustentar a visão de mundo, os costumes, os comportamentos, as
crenças e a educação de um coletivo social.
Portanto, ainda que a
ultradireita, o braço mais radical e extremista da direita brasileira, tenha se
apropriado do conservadorismo, enquanto plataforma político-partidária, não se
engane! O conservadorismo está intrínseco à matriz identitária nacional, dada a
própria construção histórica do pensamento e da cidadania brasileira.
Inclusive, em razão, da própria
presença religiosa do cristianismo, chegado ao Brasil pela religiosidade do colonizador
português, no século XVI, através de certos dogmas presentes em sua doutrina e
que permanecem distantes de um processo de reavaliação, mesmo diante das profundas
transformações da sociedade no cenário contemporâneo. Algo que deveria
impulsionar a reflexão social, por conta do antagonismo natural existente nessa
situação.
Ora, de saída, então, o
conservadorismo bate de frente com a realidade no que diz respeito ao
progresso, seja no campo científico, tecnológico, econômico, comportamental e
organizacional da sociedade. De modo que ele só resiste e sobrevive, no país,
por conta da existência de um modelo social, o qual reproduz, de certa forma, a
organização das estruturas coloniais, no que tange a distribuição dos poderes,
das influências, das importâncias, no exercício da manipulação e do controle do
cidadão.
Há um erro em pensar que o
conservadorismo, dentro da perspectiva contemporânea, esteja associado totalmente
aos partidários e simpatizantes da direita brasileira ou aos membros das
igrejas cristãs neopentecostais, por exemplo. Nesses grupos existe sim, uma predisposição
maior ao ideário conservador; porém, eles não são os únicos. O que une pessoas
plurais nesse pensamento é, então, a defesa do nacionalismo, da ordem e da
moral, da racionalidade e da tradição, da desigualdade social, do
individualismo e do liberalismo econômico, que têm suas sementes no colonialismo.
A grande questão é que
essa defesa vem sendo nutrida por um radicalismo, um extremismo, que foge ao
controle e à normalidade da convivência pacífica. O que significa que o conservadorismo
contemporâneo se aproxima cada vez mais de ser uma expressão do fundamentalismo.
Como escreveu Umberto Eco, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante ignorância
e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo”,
porque eles têm total convicção nas suas perspectivas de sociedade, as quais
lhes parecem fornecer uma zona de conforto ideal para suas necessidades e
interesses.
E devo dizer que a própria
contemporaneidade fomentou esse processo. Pois é, ela tem uma responsabilidade
direta sobre a expansão conservadora, na medida em que se permitiu hastear uma
bandeira de liberdade absoluta que esgarçou todos os pilares objetivos e
subjetivos da segurança social. Acontece que o ser humano em si, para o seu
desenvolvimento pleno e saudável, precisa se sentir seguro, de alguma forma. Ele
precisa encontrar pontos de apoio que garantam a certeza de um mínimo amparo e
proteção.
O que significa dizer que
a segurança tem muito a ver com as individualidades do ser humano. Entendendo que
essa segurança advém de valores fundamentais, tais como serenidade, paciência,
humildade, generosidade, racionalidade, conciliação, amabilidade, equilíbrio,
respeito, justiça, caridade, empatia e fraternidade, é que ele define a sua própria
individualidade.
Afinal, é esse conjunto de
valores que, presentes na identidade do indivíduo, lhe permite, então,
fundamentar as bases da sua cidadania, ou seja, o modo como irá exercitar o
conjunto de direitos e deveres sociais referentes ao seu poder e seu grau de
intervenção e transformação da realidade política do seu país.
De modo que a ausência deles, ou a sua
fragilização e vulnerabilização, decorrente desse padrão fundamentalista
conservador, tende a impactar a própria sobrevivência da Democracia nacional. Porque
se não há espaço para o diálogo, para o contraditório, para o progresso
científico, tecnológico, econômico, comportamental e organizacional da
sociedade, a Democracia não consegue estabelecer o consenso essencial para garantir
a sua soberania, a manifestação plena da cidadania, o respeito à dignidade
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, nem tampouco, o
pluralismo político.
Assim, é sobre esses aspectos, discorridos
brevemente acima, que devemos debruçar a nossa consciência crítica e reflexiva.
Citando, mais uma vez, o escritor Umberto Eco, “[...]deixemos de lado as
metafísicas e as transcendências se quisermos reconstruir juntos uma moral
perdida; reconheçamos juntos o valor moral do bem comum e da caridade no
sentido mais alto do termo; pratiquemo-lo profundamente, não para merecer prêmios
ou escapar de castigos, mas simplesmente para seguir o instinto que provém da
raiz humana comum e do código genético comum que está inscrito no corpo de cada
um de nós”. Afinal, essas palavras são uma pista valiosa para complementar a
jornada analítica sobre o conservadorismo nacional.