quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A história está sempre nas entrelinhas


A história está sempre nas entrelinhas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto o cenário político brasileiro explode em acontecimentos do arco da velha, eu busco tecer minhas reflexões em torno das entrelinhas, as quais, quase sempre, acabam passando despercebidas diante do volume de informações.

E não é que dessa vez a história facilitou a minha vida! Acontece que há séculos o Brasil padece de um mal terrível chamado fisiologismo político, muito comum na seara do Congresso Nacional. Práxis típica de certos regimes democráticos, tendo em vista que nos autoritários ela é praticamente impossível de acontecer.

Portanto, estamos falando a respeito das relações políticas determinadas a partir de ações e decisões tomadas com base na troca de favores, ou de benesses, ou de quaisquer outros agrados para satisfazer interesses de natureza privada, que acontecem em detrimento da coletividade nacional.

Em suma, um total desrespeito dos representantes do povo com o seu eleitorado. Fato gravíssimo; mas, infelizmente, já institucionalizado no país. Quem não se lembra do tal Orçamento Secreto 1 ? No entanto, esse é um mal que figura dentro de um recorte limitado da esfera de poder, ou seja, entre o Legislativo e o Executivo. O que faz com que se tenha uma falsa impressão de que ainda existe algum tipo de mecanismo de controle, o qual não permite a situação descambar ou degenerar para repercussões mais nefastas.

Mas, como já disse muitas vezes, O Brasil não é para amadores! Os malfeitos nessa terra têm raízes históricas tão profundas e decompostas que os desdobramentos entre eles acabam se tornando inevitáveis. É aí que entra a questão do aparelhamento do Estado. Ele não deixa de se basear na troca de favores, ou de benesses, ou quaisquer outros agrados para satisfazer interesses de natureza privada; porém, está alicerçado no controle de órgãos ou setores da administração pública por indivíduos indicados para representar os interesses corporativos, ideológicos ou político-partidários de quem está no poder.

Quem nunca ouviu falar na expressão “cabide de emprego”? Pois é, ela pode ser considerada a materialização dessa ocupação de cargos estratégicos nas instituições de Estado, na medida em que são criados postos de trabalho para lotar pessoas para representarem os tais interesses acima citados. Ora, isso é extremamente nocivo, tanto para o desenvolvimento do país quanto para a própria Democracia. Sim, porque muitas dessas pessoas desenvolvem uma dívida moral em razão do favor ou bem recebido, o que as leva a agir no sentido de comprometer o fluxo da alternância de governos, quando permanecem nos postos ocupados.

Vamos e convenhamos que esse não é um assunto desconhecido por ninguém. Ocorre que pelo fato de pertencer ao rol dos nossos ranços históricos, ele foi banalizado, trivializado e incorporado à dinâmica das relações político-sociais. E sem que nos atentássemos para esse movimento, praticamente, podemos dizer que ele se tornou uma nova roupagem para o velho “voto de cabresto”. Bem menos abusivo, impositivo e arbitrário do que a conhecida prática da República Velha; mas, não perdendo o princípio comum do controle e da manipulação social, que chega revestido pelo senso de uma dívida moral.  

Mas, veja bem, estamos em pleno século XXI, em plena era das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), em franca convulsão do fenômeno das Fake News. Portanto, os espaços da administração pública tornaram-se um verdadeiro campo minado, no que diz respeito ao papel do mecanismo de aparelhamento estatal. Há todo um cenário para que as divergências ideológicas se digladiem e reverberem suas ondas tsunâmicas.

Pois, enquanto os servidores da administração pública, sejam eles civis ou militares, estão submetidos a um regime jurídico para estabelecer seus direitos e deveres no exercício função, o que em tese mitigaria os efeitos deletérios do aparelhamento estatal; há outros tantos, no governo, enquadrados na condição de funcionários temporários ou comissionados, que já chegam condicionados aos objetivos dessa referida práxis. De modo que é preciso separar o joio do trigo; mas, no sentido de desconstruir esse ranço histórico.

Em pleno século XXI, a ideia de aparelhamento do Estado soa constrangedora ao mesmo tempo em que autoritária. Porque aparelhar o Estado significa, nada mais nada menos, do que abafar e silenciar o contraditório, dar carta branca a um modelo de governança, referendar uma ideia de país olhando para o próprio umbigo, graças a uma claque de apoio. É preciso compreender que o Estado aparelhado é constituído de sujeitos totalmente individualistas, que não se colocam ao serviço de um país, de um coletivo; mas, dos seus próprios interesses. A máxima deles é uma velha conhecida, “O fim justifica os meios”.

Assim, penso que ao invés de oferecer 15 minutos de fama para esse contingente desvairado que está povoando os veículos de comunicação e de informação nos últimos meses, deveríamos estar empenhados em discutir esses meandros da história nacional. Ir ao cerne mais profundo das nossas deformidades e distorções identitárias e cidadãs. Não basta repulsa, nem indignação, nem cólera, diante dessas personagens mesquinhas e ridículas, na medida em que elas são apenas uma pequena amostra de um total de outras que as aplaude e festeja seu comportamento deplorável.

Como escreveu Clarice Lispector, “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar” 2. Portanto, temos que dar o nome certo para as coisas. Temos que falar objetivamente sobre a origem do nosso caos. Basta dessa sucessão interminável de plot twists que causam frisson, até mesmo, nos mais ilustres roteiristas! Afinal, o país peca na repetição das mesmas fórmulas políticas vexatórias, o que significa que não há nada de novo para nos surpreendermos. E se temos alguma consciência disso, lembremo-nos que “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (Eduardo Galeano)3.



2 Livro “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” (1969), de Clarice Lispector.

3 Livro “As Veias Abertas da América Latina” (1971), Eduardo Galeano.