Mude a perspectiva
e ajude a mudar o mundo
Por Alessandra
Leles Rocha
É uma pena que a realidade contemporânea
venha conseguindo subverter a lógica das prioridades pela força bruta da
alienação que estabelece desimportâncias. Algo essencial para refletir, porque
afeta diretamente a sobrevivência humana em diferentes formas e conteúdos.
Bem, não é de hoje que essas
questões me desconfortam. Graduada em Ciências Biológicas e com Mestrado em
Geografia, eu dediquei a minha formação acadêmica a entender a gigantesca teia
que envolve a discussão sobre os resíduos sólidos.
E se muita coisa mudou positivamente,
no período de 2003 para cá, outro tanto se arrasta lentamente na trilha
resistente do negacionismo socioambiental. Embora muito se propague, em termos
de reduzir, reutilizar e reciclar, o inconsciente coletivo da chamada sociedade
de consumo permanece refratária a outras propostas tão importantes ao processo,
tais como repensar, recusar, reparar e reintegrar.
Pois é... é por essas e por
outras que nos deparamos, por exemplo, com a seguinte situação: “Brasil tem
mais de 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3
milhões em insegurança alimentar, diz ONU. No mundo, são 735 milhões de pessoas
passando fome e 2,3 bilhões em situação de insegurança alimentar” 1.
Muitos podem se ater aos números,
mas o mais importante nesse caso é entender a dinâmica do processo que
constitui esse cenário. Especialmente, quando se olha para o Brasil, com sua potente
dimensão geográfica e vasta produção agropecuária de exportação, e se estabelece
uma ideia estereotipada que, de certa forma, invisibiliza a existência de
quaisquer problemas.
Bem, o país é majoritariamente um
celeiro exportador de commodities agrícolas – soja, trigo, milho, café, laranja,
açúcar, algodão, carne –, ou seja, dedica as suas vastas extensões de terra aos
produtos primários comercializados “in natura” ou com baixo teor de
industrialização.
De modo que não importa a origem
(nacionalidade) da commodity, o preço é cotado pelo mercado internacional, segundo
a lei da oferta e da procura, extremamente influenciada por fatores como os
eventos climáticos, macroeconômicos e geopolíticos.
Assim, o restante dos alimentos
que compõem a mesa dos brasileiros deriva das cooperativas de pequenos
produtores. E tanto no caso das commodities quanto dos demais alimentos,
diversas razões influenciam na perda qualitativa e quantitativa dos mesmos, interferindo
diretamente no valor de comercialização.
Considerando o fato de serem
alimentos perecíveis, aspectos como o manuseio incorreto, condições de
embalagem inadequadas, ineficiência no transporte e no armazenamento, aquisição
excessiva por parte dos centros de distribuição e comercialização, falta de
critério do consumidor e descarte indevido, se mostram não só como os
principais causadores de desperdício alimentar; mas, da geração ininterrupta de
resíduos sólidos orgânicos.
E aí, concentrando apenas na
questão do descarte indevido, ele acontece muitas vezes, não porque o alimento
está fora da data de validade ou apresenta-se com aspecto contaminado por bolor
ou insetos; mas, por não se alinhar a um padrão de perfeição.
Só que não para, por aí, há
também um preconceito institucionalizado em relação à xepa, ou seja, os
alimentos perecíveis vendidos na feira, ao final das atividades, por um preço
menor. Uma opção para muitas pessoas que não têm como pagar o preço normal. Acontece
que a xepa atrela o preço a produtos imperfeitos e, às vezes, de qualidade
questionável.
E como a contemporaneidade
instituiu que a raça humana exigisse de tudo e de todos uma perfeição absoluta,
como se isso fosse possível, toneladas e toneladas de alimentos que poderiam
ser consumidos são descartados diariamente, numa realidade que ostenta milhões
de seres humanos passando fome.
Aliás, não raras às vezes,
acredito que essa busca alucinada pela perfeição é só um estratagema para
encobrir as mais terríveis imperfeições humanas, um jeito equivocado de desviar
o foco. Mas, deixando a digressão de lado, voltemos aos alimentos feios ou
imperfeitos. Acontece que a aparência do alimento fora do tido padrão
convencional não tem quaisquer implicações quanto ao seu valor nutricional ou
sabor 2.
Daí a necessidade de trazer esse
assunto à baila. Não apenas pela imposição da sazonalidade para muitos; mas,
porque os eventos extremos do clima vêm impactando severamente o setor agrícola
e pecuário, dificultando a manutenção quantitativa e qualitativa dos alimentos,
o que acaba resultando em elevação dos preços.
Queiram ou não admitir, o fato é
que a intensidade com a qual as mudanças climáticas vêm se operacionalizando
tende sim, a aumentar a ocorrência de pragas e doenças nas plantações, aumentar
as concentrações de dióxido de carbono (CO₂) na atmosfera contribuindo para fenômenos
de seca grave ou inundações, sem contar na redução de proteínas e conteúdo
nutricional em alguns alimentos.
Se hoje o mundo assiste a um
quadro de fome mediante a existência de alimentos, pode ser que, em pouco
tempo, a fome seja pela mais absoluta ausência de alimentos. Portanto, podemos
dizer que essa é uma discussão, sob diferentes aspectos, ética. A fartura criou
no ser humano um modo de se relacionar com os alimentos muito deturpado, daí o
imenso desperdício. Acontece que o cenário mudou e as conjunturas exigem uma
ruptura com velhos paradigmas e uma reconstrução de valores, de princípios.
Por isso, caro (a) leitor (a)
lembre-se das palavras de São Basilio, “Pertence aquele que tem fome o pão
que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus
guarda-vestidos; àquele que está descalço, os sapatos que apodrecem em tua
casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado. Assim tu cometes tantas
injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar”.
Porque uma citação como essa nos
remete exatamente ao tipo de gente que ilustra os valores, os princípios e as
convicções da sociedade contemporânea; sem, no entanto, sustentar garantias suficientes
para sobreviver ao futuro que se vislumbra no horizonte.
Como dizia José Saramago, em seu
Ensaio sobre a Cegueira (1995), “A pior cegueira é a mental, que faz com que
não reconheçamos o que temos pela frente” e, dessa maneira, “Estamos a
destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar
como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo
do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão”.
1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/07/12/brasil-tem-101-milhoes-de-brasileiros-passando-fome-e-703-milhoes-em-inseguranca-alimentar-aponta-onu.ghtml
2 https://gauchazh.clicrbs.com.br/destemperados/tendencias/noticia/2019/02/feio-para-quem-luiz-americo-camargo-ckbkul4eh000hegsl3lfjoga6.html#:~:text=E%20abrange%2C%20claro%2C%20acabar%20com,descarte%20dos%20chamados%20alimentos%20feios.&text=S%C3%A3o%20aqueles%20legumes%20fora%20de,%E2%80%9Cnormal%E2%80%9D%20de%20um%20ingrediente.
https://saberhortifruti.com.br/alimentos-imperfeitos/
https://agrosaber.com.br/ugly-food-movimento-mundial-estimula-a-compra-de-alimentos-feios/
https://www.youtube.com/watch?v=I68Kh6Ai0ts (14:20 – alimentos feios)