Pós-verdade...
Por
Alessandra Leles Rocha
Tempos da pós-verdade? Sim. Mas não
da maneira que querem fazer parecer uns e outros por aí. Subverter a lógica dos
fatos a fim de satisfazer os interesses pessoais, seja de um indivíduo ou de um
coletivo, não massifica necessariamente o consciente da população como um todo.
A pós-verdade é sim, uma boa ferramenta para inflamar as emoções, os
sentimentos e as crenças, daquele grupo que simpatiza e coaduna com a mesma perspectiva.
Acontece que um grupo é só um grupo, uma mera amostra de um contingente muito
maior e que é plural por excelência.
Assim, por mais que a manipulação
da verdade se faça presente no mundo contemporâneo, ela continua sendo só um viés
de possibilidade. Porque a humanidade, por mais que queira ou tente, não
consegue extinguir o genuíno ímpeto do contraditório. Ainda que em muitos
momentos sejamos arrebatados pela nítida sensação de que a sociedade vagueia
sob efeito manada, há sempre as suas ovelhinhas negras, por aí. É o ser humano
sendo o ser humano, graças ao seu vasto repertório de idiossincrasias.
Iguais, só até a página dois! Cada
um tem sua genética particular, suas variações anatômicas e fisiológicas, suas
alergias, e principalmente, sua própria engenharia intelectual e cognitiva. Herança
de família. Contaminação social. Vivência. Ou um mix de tudo isso, que acaba
fazendo com que ressalte uma perspectiva da vida e do mundo quase que indomável.
De modo que não adianta passar com a pós-verdade, da vez, como um rolo
compressor sobre a sociedade, porque não vai funcionar no seu absolutismo completo.
Ah, e não vamos nos esquecer de que
pós-verdade não tem nada a ver com lentes cor-de-rosa! Pois é, não há nela
quaisquer traços de estabelecer uma visão de mundo melhor ou mais bonito. Aliás,
a pós-verdade institucionaliza o descompromisso social com os fatos em si, valendo-se
das inverdades, das distorções, das mentiras, da tendenciosidade oportunista e,
muitas vezes, da disseminação do terror social. Na medida em que apela para questões
já impregnadas negativamente no inconsciente coletivo, exacerbando o sentimento
de repulsa, receio ou temor.
Não é à toa que a presença da
pós-verdade, de certo modo, faz alguns de nós entendermos que “O discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar”
(Michel Foucault 1). Daí se compreende porque
diante das necessidades sociais contemporâneas, as pessoas não se constrangem ou
se inibem em lançar mão do recurso da pós-verdade para alcançar seus objetivos.
Mesmo que isso signifique
impactar apenas a sua própria bolha de seguidores e simpatizantes. Pois se
trata de um processo de fortalecimento da alienação ideológica a partir da
agregação dos indivíduos por uma mesma perspectiva. Assim, mesmo que as
afirmações, as notícias ou as ideias sejam inverossímeis, o apelo sentimental e
emocional provocado por elas, em razão das crenças pessoais, extrapola qualquer
necessidade de comprovação da verdade objetiva. Afinal de contas, a pós-verdade
chega, geralmente, por meio de pessoas que ocupam determinadas posições sociais
que autorizam esse discurso e historicamente não estão sujeitas à contestação.
Só posso dizer que esse me parece
só um dos vieses deletérios da questão. O pior, talvez, esteja no fato de que a
pós-verdade acaba por retirar a visibilidade das verdadeiras prioridades do
mundo contemporâneo. Eventos extremos do clima. Empobrecimento global. Saúde mental.
A crise dos refugiados. Guerras e conflitos. Desertificação. Escassez hídrica e
de alimentos. Epidemias. ... Enquanto ela entretém com falatórios e polêmicas
desnecessárias, a sociedade se desvia de pensar e debater sobre questões gravíssimas
que afetam não só a dinâmica do cotidiano; mas, sobretudo, a sobrevivência da
sua espécie.
Citando mais uma vez, Michel Foucault,
“Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas,
nossa insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que os sonhos, a motivação,
o desejo de ser livre nos ajudam a superar esses monstros, vencê-los e
utilizá-los como servos da nossa inteligência. Não tenha medo da dor, tenha
medo de não enfrentá-la, criticá-la, usá-la”.
Ora, cada minuto a mais, nesse
mundo, aponta para a mais completa ineficiência da pós-verdade, no sentido de
nos livrar ou nos proteger do grande desafio planetário que se aproxima. Assim,
não nos esqueçamos jamais de que por trás da pós-verdade há uma verdade inconteste,
ou seja, “As pessoas sabem aquilo que fazem; frequentemente sabem porque
fazem o que fazem; mas, o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem”
(Michel Foucault).