segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Saudosismo. Flertando com o passado.


Saudosismo. Flertando com o passado.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A manchete “Militares veem justiça esticando a corda e gerando instabilidade e insegurança nas Forças Armadas” 1 diz bem mais do que parece. Não, porque as palavras buscam na pós-verdade um modo de inverter a lógica da realidade, abstendo os militares do recente processo golpista no país e colocando-os na posição de vítimas do judiciário; mas, pelo fato de materializar uma explicação importante para o fenômeno saudosista encampado pelo ideário da ultradireita nacional.

O saudosismo, caro (a) leitor (a), tem essa capacidade peculiar de invisibilizar ou negar a história, permitindo enxergá-la apenas pelo prisma de recortes definidos pelo interesse individual ou coletivo, de determinado grupo. Vamos e convenhamos, então, que ninguém sente saudade daquilo que foi ruim. Assim, o saudosismo fornece subsídios para acalentar uma zona de conforto àqueles que decidem contar a história por uma perspectiva muito particular, constituída majoritariamente de momentos bastante pródigos e agradáveis aos próprios interesses.

Acontece que não é possível voltar no tempo, nem moldar o presente no passado e, muito menos, apagar a história. Depois dessa matéria, tudo fez sentido. O saudosismo dessas pessoas tem uma razão muito especial de ser. Ele emerge para tentar sepultar de vez o incômodo que a lei n.º 6683 (Lei da Anistia), de 28 agosto de 1979, não conseguiu aplacar à subjetividade da classe militar brasileira. Muitas dessas pessoas traziam consigo a nítida impressão de que a lei em si não teria capacidade suficiente para pôr termo a quaisquer questionamentos que restassem sem resposta sobre aquelas duas décadas de chumbo.

Portanto, o tempo para essas pessoas não passou. Sobre elas esteve sempre pairando o fantasma da história, nutrido pela dor e o inconformismo de milhares de indivíduos envolvidos, direta ou indiretamente, naquele contexto. Pais. Mães. Irmãos. Filhos. Famílias inteiras impactadas pelo desaparecimento súbito de entes queridos. O que significa algo muito mais profundo do que o próprio direito da nação, enquanto coletivo identitário, em saber quando, como e onde esses fatos terríveis ocorreram.   

E apesar de viver aos sobressaltos com eventuais rumores questionadores da história, a ausência de tensão a respeito não era suficiente para se traduzir em algo definitivamente pacificado. Simplesmente, porque o acesso à história nacional passa, de certo modo, pelo poder político-partidário e de suas instituições. O modo como entendem o processo de construção identitária do país, a relevância da verdade histórica para os movimentos de desconstrução e ressignificação cidadã, varia de acordo com a consciência social vigente no poder.

De modo que a solução encontrada por um grupo de elementos da seara militar foi buscar uma participação mais efetiva nas esferas de poder, mesmo que para isso fosse necessário o emprego de práxis nada republicanas e democráticas. Porém, sobre as velhas camadas de escombros históricos que tanto lhes causam inquietação e incômodo, eis que o recente movimento, dada a gravidade dos acontecimentos, os colocou na cena da anticidadania e da antidemocracia outra vez, sob uma torrente de novas indagações. Como se o lustro dado ao seu saudosismo tivesse sido demasiado e esgarçado definitivamente a sua imagem.   

Pois é, se tivessem permitido verdadeiramente pacificar a história, ao longo das últimas quase quatro décadas, não seriam necessários arroubos saudosistas com essa magnitude de enviesamento e distorção. A história não é um espaço restrito às glórias, às vitórias, às conquistas. A história é repleta de erros, de absurdos, de arbitrariedades, porque seu elemento central é o ser humano. Querer transformá-la em palco da pós-verdade é, portanto, o caminho mais deplorável para condenar e subjugar a sociedade a viver sob o peso assombroso de fantasmas, os quais não se concede a clemência do descanso e da paz.  

Não adianta negar, a história do Brasil é o que é. O que houve de 1964 a 1985 é só mais um fragmento dentro de um coletivo de horrores, cujas raízes começam, inclusive, pela colonização. São tantos os esqueletos no armário do país! Racismo. Misoginia. Xenofobia. Aporofobia. Homo e transfobia. ... De modo que a pretensão do recente saudosismo é trazer à tona uma história nacional idealizada, como se nenhuma dessas questões tivesse existido e, portanto, quaisquer manifestações a respeito são descabidas e intoleráveis.

Assim, ao chegar ao fim dessa breve reflexão, trago uma citação que cabe perfeitamente ao contexto atual: “Mas talvez naquele momento ele não tenha sido capaz de nenhum cálculo, o grito que lhe saiu da boca era o grito de sua alma e nele e com ele descarregava anos de longos e secretos remorsos. Ou seja, após uma vida de incertezas, entusiasmos e desilusões, vilezas e traições, posto diante da inelutabilidade de sua ruína, ele decida professar a fé de sua juventude, sem mais perguntar se era justa ou errada, mas para mostrar a si mesmo que era capaz de alguma fé” (Umberto Eco - O nome da Rosa [1980]).  

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