Saudosismo.
Flertando com o passado.
Por Alessandra
Leles Rocha
A manchete “Militares veem
justiça esticando a corda e gerando instabilidade e insegurança nas Forças
Armadas” 1 diz bem mais do que
parece. Não, porque as palavras buscam na pós-verdade um modo de inverter a lógica
da realidade, abstendo os militares do recente processo golpista no país e
colocando-os na posição de vítimas do judiciário; mas, pelo fato de
materializar uma explicação importante para o fenômeno saudosista encampado pelo
ideário da ultradireita nacional.
O saudosismo, caro (a) leitor
(a), tem essa capacidade peculiar de invisibilizar ou negar a história,
permitindo enxergá-la apenas pelo prisma de recortes definidos pelo interesse
individual ou coletivo, de determinado grupo. Vamos e convenhamos, então, que
ninguém sente saudade daquilo que foi ruim. Assim, o saudosismo fornece subsídios
para acalentar uma zona de conforto àqueles que decidem contar a história por
uma perspectiva muito particular, constituída majoritariamente de momentos bastante
pródigos e agradáveis aos próprios interesses.
Acontece que não é possível voltar
no tempo, nem moldar o presente no passado e, muito menos, apagar a história. Depois
dessa matéria, tudo fez sentido. O saudosismo dessas pessoas tem uma razão
muito especial de ser. Ele emerge para tentar sepultar de vez o incômodo que a
lei n.º 6683 (Lei da Anistia), de 28 agosto de 1979, não conseguiu aplacar à
subjetividade da classe militar brasileira. Muitas dessas pessoas traziam
consigo a nítida impressão de que a lei em si não teria capacidade suficiente
para pôr termo a quaisquer questionamentos que restassem sem resposta sobre aquelas
duas décadas de chumbo.
Portanto, o tempo para essas
pessoas não passou. Sobre elas esteve sempre pairando o fantasma da história,
nutrido pela dor e o inconformismo de milhares de indivíduos envolvidos, direta
ou indiretamente, naquele contexto. Pais. Mães. Irmãos. Filhos. Famílias
inteiras impactadas pelo desaparecimento súbito de entes queridos. O que significa
algo muito mais profundo do que o próprio direito da nação, enquanto coletivo identitário,
em saber quando, como e onde esses fatos terríveis ocorreram.
E apesar de viver aos
sobressaltos com eventuais rumores questionadores da história, a ausência de
tensão a respeito não era suficiente para se traduzir em algo definitivamente
pacificado. Simplesmente, porque o acesso à história nacional passa, de certo
modo, pelo poder político-partidário e de suas instituições. O modo como entendem
o processo de construção identitária do país, a relevância da verdade histórica
para os movimentos de desconstrução e ressignificação cidadã, varia de acordo
com a consciência social vigente no poder.
De modo que a solução encontrada
por um grupo de elementos da seara militar foi buscar uma participação mais
efetiva nas esferas de poder, mesmo que para isso fosse necessário o emprego de
práxis nada republicanas e democráticas. Porém, sobre as velhas camadas de
escombros históricos que tanto lhes causam inquietação e incômodo, eis que o
recente movimento, dada a gravidade dos acontecimentos, os colocou na cena da
anticidadania e da antidemocracia outra vez, sob uma torrente de novas
indagações. Como se o lustro dado ao seu saudosismo tivesse sido demasiado e esgarçado
definitivamente a sua imagem.
Pois é, se tivessem permitido verdadeiramente
pacificar a história, ao longo das últimas quase quatro décadas, não seriam
necessários arroubos saudosistas com essa magnitude de enviesamento e
distorção. A história não é um espaço restrito às glórias, às vitórias, às
conquistas. A história é repleta de erros, de absurdos, de arbitrariedades,
porque seu elemento central é o ser humano. Querer transformá-la em palco da
pós-verdade é, portanto, o caminho mais deplorável para condenar e subjugar a sociedade
a viver sob o peso assombroso de fantasmas, os quais não se concede a clemência
do descanso e da paz.
Não adianta negar, a história do
Brasil é o que é. O que houve de 1964 a 1985 é só mais um fragmento dentro de
um coletivo de horrores, cujas raízes começam, inclusive, pela colonização. São
tantos os esqueletos no armário do país! Racismo. Misoginia. Xenofobia. Aporofobia.
Homo e transfobia. ... De modo que a pretensão do recente saudosismo é trazer à
tona uma história nacional idealizada, como se nenhuma dessas questões tivesse existido
e, portanto, quaisquer manifestações a respeito são descabidas e intoleráveis.
Assim, ao chegar ao fim dessa
breve reflexão, trago uma citação que cabe perfeitamente ao contexto atual: “Mas
talvez naquele momento ele não tenha sido capaz de nenhum cálculo, o grito que
lhe saiu da boca era o grito de sua alma e nele e com ele descarregava anos de
longos e secretos remorsos. Ou seja, após uma vida de incertezas, entusiasmos e
desilusões, vilezas e traições, posto diante da inelutabilidade de sua ruína,
ele decida professar a fé de sua juventude, sem mais perguntar se era justa ou
errada, mas para mostrar a si mesmo que era capaz de alguma fé” (Umberto
Eco - O nome da Rosa [1980]).