MARCO
TEMPORAL NÃO! Brasil terra indígena!
Por
Alessandra Leles Rocha
Nem deveríamos ter que discutir o
óbvio; mas, insistentemente a contemporaneidade nos conclama a fazê-lo. Amanhã,
o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma a análise sobre o Marco Temporal das
Terras Indígenas 1 e a apreensão paira no
ar. Afinal, parece estranho que tal assunto seja posto em discussão, quando o próprio
texto constitucional vigente afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231, CF. 1988).
Mas, como já tenho manifesto
diversas vezes, o Brasil permanece contaminado pelos absurdos e distorções abjetas
herdadas do seu passado colonial; sobretudo, quando se mantém subserviente aos
interesses da bancada ruralista e de grupos ligados à exploração vegetal e
mineral em terras indígenas. O que estampa o mais completo paradoxo, ou seja, o
país vivendo entre dois mundos distintos, o da inovação tecnológica, do século
XXI, e o de exportador de commodities, como no século XVI. Algo que
perde a simplicidade das palavras, para alcançar a imensidão da complexidade que
representa esse cenário.
A tese do Marco Temporal não diz
respeito apenas a uma deturpação intencional da norma jurídica; mas, trata da
ruptura com as bases de construção histórica da identidade nacional, quando
desconsidera e invisibiliza que “São terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art.31, §1º, CF.
1988).
E isso não é apenas grave, é gravíssimo!
Elementos da sociedade contemporânea tentam se apropriar indevidamente de algo
que pertence ao país. Os povos originários são o patrimônio maior do Brasil e
retirar deles o seu habitat natural significa desqualificar a importância da
nossa identidade social, cultural, ambiental e econômica. Trata-se, portanto,
da explícita demonstração de desapreço pelo país; bem como, de total
incapacidade em reconhecer a dívida histórica existente com os povos
originários.
Sim, porque durante todo o
processo de colonização, ocorrido entre os séculos XVI e XIX, foram os povos
originários vítima de todo tipo de abusos e violências, inclusive, a expulsão
de seu habitat natural, cometidos pelo forasteiro colonizador. Por isso tribos
foram totalmente dizimadas. Línguas, costumes e tradições perdidas. Milhares de
lacunas foram estabelecidas, fazendo da identidade brasileira uma história enviesada
pela força e pela brutalidade de um processo tido como civilizatório, pelo
colonizador europeu.
Talvez, seja isso o que mais
espanta, a reprodução de uma crueldade e de uma perversidade que o país traz
marcado na sua gênese. É como se tudo o que de pior e mais terrível ocorrido
por aqui, tivesse sido indolor, normal, quando não foi. Hoje, não é mais o
colonizador, do século XVI, quem desrespeita o Brasil; mas, a descendência da
burguesia que aqui se formou. Gente que faz questão de lustrar seu apreço pela
herança colonial, sob os mais diferentes aspectos, incluindo o conservadorismo
e o predomínio das atividades primárias, como força motriz da economia.
Dito isso, é preciso fazer uma
ressalva importante. Dada a evolução da sociedade e dos modos de produção, nesses
pouco mais de 500 anos, as atividades primárias não demandam necessariamente de
mais terras para ampliar a produção. Recursos científicos e tecnológicos existentes
criam condições de garantir a qualidade do solo para a produção, por mais
tempo. Claro que considerando a colaboração primordial do clima na consolidação
do processo! De modo que o interesse contemporâneo sobre as terras indígenas
parece estar muito mais associado à especulação imobiliária e ao extrativismo
exploratório dos recursos naturais, do que qualquer outra coisa.
Algo que faz bastante sentido, na
medida em que é fácil perceber como o que buscam essas pessoas ao defenderem a
aprovação do Marco Temporal é a legalização de algo que já acontece à margem,
na mais absoluta ilegalidade. Como pode ser visto durante a crise humanitária
na Terra Indígena Yanomami, que ganhou repercussão mundial, no início deste
ano. Embora seja um problema que atinge, também, outros povos originários
brasileiros, no caso dos Yanomamis, “ao longo de décadas, a invasão das
terras, em especial por garimpeiros ilegais, afetou a população yanomami em
vários aspectos, principalmente pela escalada da violência no território, o
aliciamento dos jovens, a contaminação dos rios e a intoxicação de pessoas,
animais e plantios pelos dejetos do garimpo ilegal. Também foi registrado
aumento significativo dos casos de malária, infecções sexualmente transmissíveis
e outras doenças” 2.
Então, o que se tem diante dos
olhos é um flagrante desequilíbrio social! Cidadãos brancos, ricos, poderosos,
amparados por todo tipo de regalias e privilégios sociais e institucionais, desafiando
cidadãos descendentes dos povos originários, pobres, frágeis, desprovidos dos
direitos sociais e institucionais que lhes são garantidos pela própria legislação
nacional. Em tempos de tanta violência deliberada, de tanta apropriação indébita,
de tanta afronta ao ordenamento jurídico nacional e ao Estado de Direito, não é
de se espantar que a sobrevivência e a dignidade humana sejam colocadas à prova
dessa maneira!
Caro (a) leitor (a), diante dessa breve reflexão, não se esqueça de que “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à Justiça por toda parte” (Martin Luther King Jr.). Como tão bem escreveu Bertolt Brecht, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como eu tenho emprego / também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. /Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”. Porque a grande questão, que se coloca no momento, reside no fato de cada ser humano - branco, negro, índio, quilombola - estar potencialmente fadado a ser vítima da arbitrariedade das conjunturas.
1 Marco
temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de
ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988,
data de promulgação da Constituição. Fonte: Agência Câmara de Notícias.
2 Entenda a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami - https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/crise-humanitaria-terra-indigena-yanomami/