terça-feira, 29 de agosto de 2023

MARCO TEMPORAL NÃO! Brasil terra indígena!


MARCO TEMPORAL NÃO! Brasil terra indígena!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nem deveríamos ter que discutir o óbvio; mas, insistentemente a contemporaneidade nos conclama a fazê-lo. Amanhã, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma a análise sobre o Marco Temporal das Terras Indígenas 1 e a apreensão paira no ar. Afinal, parece estranho que tal assunto seja posto em discussão, quando o próprio texto constitucional vigente afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231, CF. 1988).

Mas, como já tenho manifesto diversas vezes, o Brasil permanece contaminado pelos absurdos e distorções abjetas herdadas do seu passado colonial; sobretudo, quando se mantém subserviente aos interesses da bancada ruralista e de grupos ligados à exploração vegetal e mineral em terras indígenas. O que estampa o mais completo paradoxo, ou seja, o país vivendo entre dois mundos distintos, o da inovação tecnológica, do século XXI, e o de exportador de commodities, como no século XVI. Algo que perde a simplicidade das palavras, para alcançar a imensidão da complexidade que representa esse cenário.

A tese do Marco Temporal não diz respeito apenas a uma deturpação intencional da norma jurídica; mas, trata da ruptura com as bases de construção histórica da identidade nacional, quando desconsidera e invisibiliza que “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art.31, §1º, CF. 1988).

E isso não é apenas grave, é gravíssimo! Elementos da sociedade contemporânea tentam se apropriar indevidamente de algo que pertence ao país. Os povos originários são o patrimônio maior do Brasil e retirar deles o seu habitat natural significa desqualificar a importância da nossa identidade social, cultural, ambiental e econômica. Trata-se, portanto, da explícita demonstração de desapreço pelo país; bem como, de total incapacidade em reconhecer a dívida histórica existente com os povos originários.

Sim, porque durante todo o processo de colonização, ocorrido entre os séculos XVI e XIX, foram os povos originários vítima de todo tipo de abusos e violências, inclusive, a expulsão de seu habitat natural, cometidos pelo forasteiro colonizador. Por isso tribos foram totalmente dizimadas. Línguas, costumes e tradições perdidas. Milhares de lacunas foram estabelecidas, fazendo da   identidade brasileira uma história enviesada pela força e pela brutalidade de um processo tido como civilizatório, pelo colonizador europeu.

Talvez, seja isso o que mais espanta, a reprodução de uma crueldade e de uma perversidade que o país traz marcado na sua gênese. É como se tudo o que de pior e mais terrível ocorrido por aqui, tivesse sido indolor, normal, quando não foi. Hoje, não é mais o colonizador, do século XVI, quem desrespeita o Brasil; mas, a descendência da burguesia que aqui se formou. Gente que faz questão de lustrar seu apreço pela herança colonial, sob os mais diferentes aspectos, incluindo o conservadorismo e o predomínio das atividades primárias, como força motriz da economia.

Dito isso, é preciso fazer uma ressalva importante. Dada a evolução da sociedade e dos modos de produção, nesses pouco mais de 500 anos, as atividades primárias não demandam necessariamente de mais terras para ampliar a produção. Recursos científicos e tecnológicos existentes criam condições de garantir a qualidade do solo para a produção, por mais tempo. Claro que considerando a colaboração primordial do clima na consolidação do processo! De modo que o interesse contemporâneo sobre as terras indígenas parece estar muito mais associado à especulação imobiliária e ao extrativismo exploratório dos recursos naturais, do que qualquer outra coisa.

Algo que faz bastante sentido, na medida em que é fácil perceber como o que buscam essas pessoas ao defenderem a aprovação do Marco Temporal é a legalização de algo que já acontece à margem, na mais absoluta ilegalidade. Como pode ser visto durante a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, que ganhou repercussão mundial, no início deste ano. Embora seja um problema que atinge, também, outros povos originários brasileiros, no caso dos Yanomamis, “ao longo de décadas, a invasão das terras, em especial por garimpeiros ilegais, afetou a população yanomami em vários aspectos, principalmente pela escalada da violência no território, o aliciamento dos jovens, a contaminação dos rios e a intoxicação de pessoas, animais e plantios pelos dejetos do garimpo ilegal. Também foi registrado aumento significativo dos casos de malária, infecções sexualmente transmissíveis e outras doenças” 2.

Então, o que se tem diante dos olhos é um flagrante desequilíbrio social! Cidadãos brancos, ricos, poderosos, amparados por todo tipo de regalias e privilégios sociais e institucionais, desafiando cidadãos descendentes dos povos originários, pobres, frágeis, desprovidos dos direitos sociais e institucionais que lhes são garantidos pela própria legislação nacional. Em tempos de tanta violência deliberada, de tanta apropriação indébita, de tanta afronta ao ordenamento jurídico nacional e ao Estado de Direito, não é de se espantar que a sobrevivência e a dignidade humana sejam colocadas à prova dessa maneira!

Caro (a) leitor (a), diante dessa breve reflexão, não se esqueça de que “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à Justiça por toda parte” (Martin Luther King Jr.). Como tão bem escreveu Bertolt Brecht, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como eu tenho emprego / também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. /Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”. Porque a grande questão, que se coloca no momento, reside no fato de cada ser humano - branco, negro, índio, quilombola - estar potencialmente fadado a ser vítima da arbitrariedade das conjunturas.



1 Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Fonte: Agência Câmara de Notícias.

2 Entenda a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami - https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/crise-humanitaria-terra-indigena-yanomami/