Não
dê asas só para a imaginação! Dê asas para a sua voz!
Por
Alessandra Leles Rocha
Distante dos achismos e casuísmos
que sempre envolveram a situação da mulher no mundo, poucos se dão conta de um
aspecto fundamental nessa história. Lá, em “1908,
quando 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York exigindo a redução
das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto” 1, elas estavam se apropriando da sua
própria voz.
Pois é, passa despercebido aos
milhares de olhos inquisidores, por aí, um aspecto historicamente importante
nas relações sociais que é o silenciamento das minorias, dentre elas, as
mulheres. O que não significa necessariamente o fato de não lhes permitir a
expressão da fala, mas o direito de dar voz aos seus pensamentos, as suas
ideias, aos seus sonhos, a sua própria história.
Durante séculos e séculos, as
mulheres tiveram suas vozes cerceadas pelas convenções e imposições sociais, de
um mundo dominado e controlado pelos homens. De um modo ou de outro, suas vidas
foram marcadas pelo controle masculino. Há sempre um avô, um pai, um irmão, um
padrinho, um tio, um primo, um marido ou um religioso ligado à família, a
exercer algum tipo de influência sobre aquela mulher, durante toda a sua
existência, e a quem ela deve alguma forma de obediência inquestionável.
Acontece que essa realidade não se
restringe à dinâmica cotidiana, apenas. Quando retratada à luz da literatura mundial,
por exemplo, a maioria das grandes personagens femininas foram construídas pela
perspectiva do imaginário masculino. Lady Macbeth, por William Shakespeare.
Anna Karenina, por Leon Tolstói. Dolores Haze (Lolita), por Vladimir Nabokov.
Capitu, por Machado de Assis. Iracema, por José de Alencar. Gabriela, por Jorge
Amado. Emma Bovary, por Gustave Flaubert. ... E queiram ou não admitir, há sim,
em todas elas, um traço da influência masculina sobre o recorte temporal de uma
época, dentro de uma dada concepção social.
E esse é um ponto fundamental
para a reflexão contemporânea, porque, de certo modo, ele ajuda a elucidar a
desqualificação da voz feminina. Haja vista o amplo conjunto de situações
atuais em que as opiniões, as manifestações, as reivindicações, as denúncias,
trazidas ao conhecimento público, individualmente ou por coletivos de mulheres,
são submetidas ao mais rigoroso e cruel escrutínio dentro da sociedade.
Aliás, é bom que se diga também,
que essa realidade ajuda a descortinar uma desigualdade dentro do universo feminino.
Mesmo que se consiga perceber esse silenciamento, essa desqualificação, essa violência,
nada disso acontece de maneira homogênea e linear entre as mulheres. O poder
aquisitivo, a idade, a raça, a escolaridade, acabam se tornando instrumentos de
distinção para tornar essas arbitrariedades mais ou menos impactantes,
degradantes, absurdas.
Pois é, só uma coisa não muda, o
fato de que os longos séculos de silenciamento forçado, impositivo, autoritário,
errônea e equivocadamente legitimaram os homens como representantes legais e
morais das mulheres. Como se somente eles pudessem verbalizar, com propriedade
e segurança, o que elas pensam, querem, sentem, desejam, buscam, ... Como se o
direito a ter voz fosse uma propriedade, um privilégio exclusivamente
masculino. Deram aos homens o poder de filtrar, de desconstruir, de
interpretar, de redefinir, uma expressão absoluta da identidade feminina, a sua
voz.
Desse modo, quando alguns são
confrontados nesse contexto, a maneira que encontraram para responder e reagir
aos questionamentos foi a violência. Física. Psicológica. Sexual. Patrimonial.
Moral. Porque todas elas culminam, em alguma extensão, no silenciamento social
da mulher. Afinal, as violências tendem historicamente a se desdobrar em
vergonha, em constrangimento, em desconforto, em medo, em horror, favorecendo a
prevalência da voz do agressor no ambiente social, ou seja, as razões dele, as
justificativas dele, as desculpas dele.
No entanto, isso só faz
demonstrar o desalinhamento ideológico que se estabeleceu em relação à evolução
social do mundo. Considerando a realidade brasileira, as mulheres representam
51,1% da população 2 e, portanto, contribuem
de maneira efetiva e fundamental para o desenvolvimento do país. Porque nessa
longa jornada, aos trancos e barrancos, elas foram se libertando desse casulo
de silêncios para ganhar a liberdade das palavras, das ideias, dos sonhos, nos
mais diferentes espaços da sociedade.
Mais do que um direito, uma
necessidade vital, o que almejam milhões de mulheres, mundo afora, é a
possibilidade de, através da própria voz, revelarem quem realmente são. O que pensam,
querem, sentem, desejam, buscam. Mostrar quem está além daquele rosto, daquele
corpo, daqueles olhos. Pois, embora a comunicação não se dê restrita às
linguagens orais e escritas, o mundo nem sempre dispõe da sutileza necessária
para ler e entender pelas linguagens não verbais, na profundidade e na
complexidade indispensáveis.
Como bem falou Melinda Gates, “Uma mulher com voz é, por definição, uma
mulher forte”. Sendo assim, que as vozes femininas sejam cada vez mais presentes,
mais atuantes, mais incisivas, no mundo. Porque antes de ser uma voz que
transborda para além dos limites do ser, toda mulher têm uma voz interior
repleta de sabedoria, de consciência, de experiência, sempre disposta ao
processo construtivo da sociedade.
O que falta a essa voz, então, é a
liberdade de extravasar, fluir, para que dessa forma se una em comunhão para ser
capaz de reverberar todos os cânticos de igualdade, de fraternidade, de empatia
e de sororidade, que a humanidade tanto anseia, tanto precisa para seguir
adiante. Uma liberdade que não sinalize como permissão limitada a um único dia
no calendário – como hoje, por exemplo –; mas, todos os dias, os 365 ou 366,
dependendo do ano. Afinal de contas, é isso o que irá reafirmar a sua convicção
de que “O ato mais corajoso é pensar por você
mesma. Em voz alta! ” (Coco Chanel).