Colonialismo
penhorado
Por
Alessandra Leles Rocha
Diante do frisson causado pelas
joias não declaradas pelo ex-governo brasileiro 1,
não pude deixar de lembrar de uma certa canção da década de 80 2, que fazia menção a um outro “[...] escândalo das joias, e o contrabando,
e um bando de gente importante envolvida [...]”. Pois é, vira daqui mexe
dali e o Brasil sempre repetindo seus velhos padrões bizarros de comportamento.
Quando falo que a herança
colonial brasileira pulsa ativamente, em pleno século XXI, não estou
equivocada. Ela pulsa sim! Sobretudo, no que diz respeito, ao modus operandi da
sua elite, que historicamente emergiu convicta da sua posição e do seu poder, de
modo a subverter, à revelia de qualquer um que se coloque no seu caminho, às
leis, às regras, os protocolos, às práxis sociais.
Tanto que a situação não fica só
nesse viés. O caso do ministro, no atual governo, que fez uso de avião da Força
Aérea Brasileira (FAB) para resolver questões de interesse particular, é parte disso.
Ainda que ele tenha se redimido, de alguma forma, e devolvido ao erário as
diárias, o fato é que ele usou da prerrogativa ministerial para se colocar
acima da ética e das boas práticas de governo 3.
Porque esse é o pensamento que vigora, desde sempre, no país.
A certeza, a convicção, de que
sendo a elite a detentora do exercício dos poderes, da propriedade do grande
capital, da elaboração das leis, falem o que quiser que nada poderá afetar a
blindagem que resguarda suas regalias e privilégios históricos. Daí o fato de episódios
como os citados acima se repetirem tão amiúde.
O pior é que esse comportamento
cria no inconsciente coletivo uma reafirmação para essa pseudossuperioridade que
compromete diretamente a consciência cidadã, como se existisse uma cidadania
ajustada ao estrato social o qual pertence o indivíduo. Ou seja, como se ela
pudesse ser analisada pelo parâmetro do vale quanto pesa.
Sim, porque as pessoas sabem
muito bem que por trás de qualquer afronta às leis, às regras, aos protocolos,
às diretrizes do país, está o fato de que os agentes desse tipo de conduta,
muitas vezes, têm nas mãos a prerrogativa do status, da importância na
hierarquia social. Então, eles fazem porque se sentem protegidos, amparados, verdadeiramente,
acima do Bem e do Mal.
E são a partir de cenários assim construídos
que as desigualdades socioeconômicas se tornam cada vez mais difíceis de serem
vencidas e superadas. É dessa forma que se estabelece o estigma dos cidadãos de
primeira e de última classe, no Brasil, ou seja, os importantes e os desimportantes.
Mesmo considerando que o entendimento constitucional expresse clara e
objetivamente que “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, CF de 1988).
Assim, os ruídos de cada eventual
novo flagrante delito acabam se dispersando na passagem do tempo, fazendo cair
no esquecimento popular. Talvez, seja por esse movimento que se construa uma
seletividade tão consolidada na memória nacional. Há uma visível incapacidade
de associar os fatos históricos como um traço marcado e incorporado à
identidade nacional, como se a história do país pudesse ser vista e entendida a
partir de imagens isoladas e não na sequência de um filme.
Cabe ressaltar, que se do ponto
de vista nacional isso parece pouco problemático, para uns e outros por aí, do
ponto de vista internacional é extremamente ruim. Especialmente, em tempos em
que a Democracia anda tão fragilizada e ameaçada. Essa exacerbada tolerância com
os desvios de comportamento, com a falta de ética, com a subversão da
moralidade no campo político-partidário, esgarça a credibilidade, a seriedade,
o compromisso do país no cenário mundial.
Afinal, não é possível acreditar
que figuras públicas, muitas vezes representantes do povo, desconheçam os
limites do certo e do errado, na perspectiva do que estabelece o ordenamento jurídico
e institucional brasileiro. Se o fazem, o fazem por livre e espontânea vontade,
consciência e interesses particulares, não do país. O que afeta diretamente a
sua permanência no trânsito das relações diplomáticas e comerciais.
A grande verdade é que o “jeitinho brasileiro” institucionalizou
a deturpação da cidadania nacional, na medida em que o próprio cidadão;
sobretudo, as classes mais abastadas, não expressa pudor ou constrangimento em
ferir, desacatar ou burlar as leis, as diretrizes e as normas que regem as
relações sociais no país.
Sem dispor, talvez, de plena consciência
a respeito, os (as) brasileiros (as) através dessa práxis legitimaram tantas
outras, mais ou menos nocivas (se cabe estipular a possibilidade de gradação
para qualquer ato maléfico), ao equilíbrio da convivência e da coexistência nacional,
dado o seu conjunto de intolerâncias, perversidades, abusos e violências, que
acontecem diariamente, à luz do dia, em cada canto do país.
Darcy Ribeiro dizia que “A coisa mais importante para os brasileiros
é inventar o Brasil que nós queremos´”. No entanto, esse tipo de
questionamento acaba por nos fazer perceber que “Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade,
que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia
verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceram a história brasileira,
étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que
nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros” (Darcy Ribeiro).
Porque no fim das contas o Colonialismo saiu do Brasil; mas, o Brasil não saiu
do Colonialismo.
1 https://g1.globo.com/politica/blog/valdo-cruz/post/2023/03/07/corrupcao-passiva-pf-vai-apurar-se-governo-bolsonaro-ofereceu-contrapartida-a-sauditas-por-joias.ghtml