Ainda
reverbera...
Por
Alessandra Leles Rocha
Ainda reverberam absurdamente desconfortáveis
e indigestas as notícias em torno do caso de trabalho análogo à escravidão,
ocorrido em vinícolas do sul do Brasil. E isso decorre do fato de que ninguém é
tão ingênuo, em pleno século XXI, para acreditar se tratar de um caso
esporádico, pontual, na realidade brasileira. Os próprios registros realizados
pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho dão
conta de que, só em 2022, 2575 trabalhadores foram resgatados nessas condições 1.
A grande questão é que esse tipo
de notícia não alcança a extensão do fato em si. A configuração da condição de
trabalho análogo à escravidão é tão impactante que, sem querer, ofusca a
verdadeira realidade contemporânea do trabalho no mundo, que diz respeito a
todo o processo de precarização envolvida nas atuais relações de trabalho. A aparente
condição formalizada através de documentos, de contratos, infelizmente, não protege
e ampara o funcionário contra a exploração sob diferentes formas e conteúdos.
Queiram ou não aceitar, mais uma
vez é preciso reconhecer que a imprevidência em relação aos processos da Revolução
Industrial chegou ao ápice das suas cobranças. O mundo que naquele momento
tinha uma população em torno de 1 bilhão de pessoas caminhou a passos largos
para atingir o dobro em 1930. E o crescimento populacional tem sim, um peso
enorme nessa análise reflexiva, porque quanto mais pessoas no mundo mais
demandas a serem satisfeitas. A questão é perguntar se as elites detentoras dos
poderes e dos meios de produção estiveram em algum momento dispostas a reduzir
suas gigantescas margens de lucro para satisfazer a essa realidade.
Como já era de se imaginar, é
claro que não! De modo que as estratégias encontradas e formalizadas através de
legislações elaboradas para esse fim, incluem, por exemplo, redução de
salários, demissões em massa, cortes de benefícios, mecanização em certos
setores, terceirizações. Tudo para manter intocados os lucros de uma ínfima
parcela da população. O mundo pode acompanhar, por exemplo, através dos veículos
de comunicação e informação, “Várias das
maiores empresas de tecnologia do mundo demitiram mais de 150 mil trabalhadores
nos últimos meses” 2. Agora, é a vez dos
grandes bancos dos EUA fazerem demissões em massa após queda nos lucros 3.
Acontece que o mundo tem, hoje,
mais de 8 bilhões de pessoas. Vidas, sonhos, demandas, que dependem do trabalho
para serem satisfeitas. Se os lucros do topo da pirâmide social tiverem que
permanecer em franca ascensão, o mundo estará fadado ao colapso do
empobrecimento. Aliás, esse tendencioso viés de percepção das elites dominantes
não mede a realidade como, de fato, ela é. Se por um lado eles mantêm seguros
os seus lucros e dividendos, na segurança do seu espaço resguardado pelo
imobilismo social, por outro, a economia em si perde força pelo enfraquecimento
do consumo de bens, produtos e serviços, mesmo aqueles do rol mais essencial do
cotidiano.
Segundo dados do relatório da
Oxfam “A ‘Sobrevivência’ do mais rico –
por que é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades”,
apresentado em Davos (Suíça), este ano, “Desde
2020, o 1% mais rico do mundo adquiriu seis vezes mais dinheiro do que 90% da
população global”, o que significa que “Pela
primeira vez em 30 anos, a extrema pobreza e a extrema riqueza cresceram de forma
paralela. O relatório destaca que a comunidade global está vivendo um momento
sem precedentes, de múltiplas crises. E enquanto a população é afetada por
colapsos climáticos, altos níveis de pobreza e epidemias, como a de Covid-19, o
1% mais rico da humanidade se apropriou de mais da metade de toda a nova
riqueza global” 4.
Tudo isso, de certa forma, se
traduz através da precarização do trabalho e de todas as práxis análogas à
escravidão. Algo bem mais do que nocivo, mas extremamente perigoso, porque não
há uma ampla discussão e debate a respeito. A grande massa da população acaba
envolvida e enredada nessa teia abjeta, sem sequer compreender exatamente os
caminhos que a conduzem à sua própria indignidade humana. Quando se dão conta
já estão submetidas a mais plena degradação.
Enquanto aqueles que as submetem
a tais condições desumanas permanecem no alto da sua superioridade social,
repercutindo sobre o inconsciente coletivo dos seus pares os protocolos de
doutrinação para a continuidade desse ciclo de horrores. O que explica a razão
de não haver um consenso indignado em torno da exploração humana. Aos que
permanecem se beneficiando dela tudo parece ser natural, obediente à lógica
perversa e cruel da estratificação social, onde uns poucos nasceram para serem
servidos enquanto a imensa maioria nasceu para servir.
Dizia C. S. Lewis, “Temos que ser continuamente lembrados
daquilo em que acreditamos”. A questão da precarização trabalhista e do
trabalho análogo à escravidão está diretamente relacionada às crenças, valores,
princípios e convicções devotadas por uns e outros. Dessa forma, quando os
reveses surgem diante dessas práxis, no sentido de contrariar os interesses de
quem as fazem, é preciso sim, pensar que eles não foram frutos do acaso. Foram plantados
e cultivados pelas ideologias retrógradas, desumanas e autoritárias que se
dispersam pelo mundo. Portanto, não se esqueça de que “Não há culpa maior / do que entregar-se às vontades / não há mal maior
/ do que aquele de não saber contentar-se / não há dano maior / do que nutrir o
desejo de conquista” (Lao-Tsé).