Ao
som do Réquiem dos Bodes Expiatórios
Por
Alessandra Leles Rocha
E de bodes expiatórios em bodes
expiatórios o Brasil vai tecendo a sua colcha de violências. Lidar de peito
aberto com as realidades, com as verdadeiras mazelas, isso ninguém ousa fazer! Buscam
pretextos, desculpas esfarrapadas, justificativas injustificáveis e soltam as
feras adormecidas dentro da alma, numa catarse insana e inútil.
Violência alguma, em tempo
nenhum, foi resposta resolutiva de nada. Violência é só violência. É só
instinto destruidor. É só barbárie. É só o primitivo gritando mais alto a sua
incapacidade dialógica e intelectual. Seres humanos morrem; mas, os problemas,
as aflições, os desafios, ... permanecem vivos.
Portanto, ela representa sempre o
extremo de uma tentativa de invisibilização, de banimento, de cancelamento que
não representa absolutamente quaisquer alterações significativas no curso da
história. O ponto nevrálgico da vida, o qual desconforta, perturba, aflige, permanece
intacto porque ele não é materializado por pessoas.
Pena, que muitos não entendam, ou
não queiram entender, essa verdade inconteste e continuem insistindo em
manifestar a sua violência contra o simbólico. Infelizmente, o Brasil padece de
problemas historicamente cronificados, muitos deles ranços herdados da sua própria
colonização, os quais com o passar do tempo foram se moldando (e se agravando)
às novas conjunturas do mundo.
Mas, como poucos têm a graça de
viver 100 anos ou mais, as gerações se sucedem e acabam dando mais atenção ao viés
histórico que lhes é mais próximo, desconsiderando, até mesmo, as lições das
aulas de história ensinadas na escola.
É quase um reflexo imediatista
que se apropria, então, dos indivíduos e cria uma bolha temporal que traz a
impressão de que os problemas surgiram naquele momento, pelas mãos de A, B ou
C, quando na verdade não é bem assim.
A história brasileira é uma
sobreposição de camadas desajustadas de questões mal resolvidas, que o tempo
vai aprofundando a sua deterioração e reverberando consequências e
desdobramentos cada vez mais insolúveis e nefastos.
E isso acontece, porque as classes
dominantes, que se mantêm no poder ao longo desses pouco mais de 500 anos,
acreditam que dessa forma podem assegurar algum benefício de manutenção para
suas regalias e privilégios.
Não é à toa, por exemplo, que o
vai e vem da economia nacional em desfavor da grande massa da população está
sempre presente, de alguma forma, nas páginas da história.
Não é à toa que quaisquer mínimas
conquistas em favor daqueles menos amparados é rapidamente extirpada ou
consumida por manobras que signifiquem por fim rapidamente a elas.
Não é à toa a insuficiência perene
da renda daqueles que compõem a base da pirâmide social. ... Não, não é à toa.
Como, também, não é à toa como
esse cenário sempre oportunizou o surgimento de “salvadores da pátria”, ou de “falsos profetas”, que por discursos e narrativas envolventes vêm
oferecendo seus serviços, a preços nada módicos, para encerrar de vez o sofrimento
e a desesperança nacional.
Sendo, muitas as vezes, o
resultado dessa credulidade desesperada, um golpe ainda mais certeiro e
profundo nas cicatrizes do seu desalento. Ao invés de “o que estava ruim melhorar”, acabam descobrindo das piores
maneiras que “o que estava ruim podia
piorar ainda mais”.
E assim, a pobreza, a miséria, a
carestia, o desemprego, a precarização do trabalho, o adoecimento, a desassistência,
e todo tipo de mazelas que se pode emergir em um contexto como esse, acirram a
sua presença e abarcam mais contingentes populacionais.
Portanto, o país foi se
enveredando por uma teia de promessas e credulidades que, de certa forma,
acontecem na penumbra da ignorância.
Sim, porque mesmo depois da
instituição do voto para a construção da representatividade política nacional, o
cidadão não conseguiu perceber com exatidão que algo muito importante não
acontecia, ou seja, a renovação entre os representantes.
O que não significa dizer,
simplesmente, que eram sempre os mesmos indivíduos, as mesmas figuras. O problema
maior estava na não renovação das bases de apoio desses representantes.
Eles vinham do mesmo berço
político, das mesmas ideologias, das mesmas crenças, dos mesmos valores e princípios.
De modo que suas práxis estavam fadadas a se repetirem indefinidamente, como,
de fato, se viu e vê acontecer.
E com o passar do tempo, muitos
deles descobriram que apontar seus concorrentes como bodes expiatórios da
indignação popular poderia ser uma estratégia útil aos seus planos de permanência
na vida pública.
Transferir suas inabilidades, incompetências,
inaptidões, a terceiros, tornou-se, então, uma cortina de fumaça para
blindá-los da fúria da opinião pública.
Sem contar, que esse mecanismo
possibilitava requentar as promessas que haviam feito e não foram cumpridas. Ora,
foi assim que se deu corpo à Industria da Seca, no Nordeste, ou já se esqueceram?
Portanto, as expressões de violência,
que tomam de assalto muitos brasileiros na contemporaneidade, estão a serviço
dessa alienação ignorante.
Trata-se de um imenso simplismo
acreditar que o que vemos diante dos olhos seja mera polarização política. Não.
O objetivo é colocar dois grupos distintos de bodes expiatórios, o eleitorado e
os principais adversários, para se confrontarem.
É isso mesmo. O eleitorado é um
bode expiatório na medida em que foram publicamente apontados como culpados
pelos problemas. Sobre eles recaíram argumentos do tipo “comem demais”, “desperdiçam demais”, “viajam demais”, “não sabem poupar”,
“não gostam de trabalhar”, ...
E quanto aos adversários, sobre
eles recai a culpa de heranças malditas, muitas delas que nem ao menos
passaram, de fato, por suas mãos.
Com base nesse tipo de análise,
são colocados a se digladiarem, enquanto quem tem as rédeas do poder nas mãos não
precisa despender energia para apresentar quaisquer propostas de soluções para
os imbróglios do país; sobretudo, os atuais.
A cortina de fumaça se ergue,
então, alta e espessa em meio ao espetáculo dantesco que se encena.
É triste pensar que os bodes, no
Brasil, traduzam um outro surrealismo que nada tem a ver com aquele retratado
na obra La Mariée (A noiva) de Marc Chagall 1!
Nossos bodes não têm quaisquer intenções de renovar pela arte os valores morais,
políticos, científicos e/ou ideológicos.
Muito pelo contrário! Eles são o desvirtuamento completo disso, na exacerbação do arraigamento histórico colonial. Eles não traduzem o profundo dos sonhos, do inconsciente, da delicadeza, como fazia Chagall; mas, a celebração de um surto de brutalidade, de ódio irrefletido e asfixiante, que se imprime na retina de olhos bem abertos. Nossos bodes recitam apenas o Réquiem.