A
opressão criminosa das linguagens
Por Alessandra Leles Rocha
Ainda impactada
pela notícia mais abjeta do dia, o estupro de uma gestante, durante uma cesárea,
pelo anestesista 1,
decidi escrever a partir de um viés que pouco se percebe nesse tipo de caso.
Apesar de
haver leis que possibilitem o acompanhamento da gestante no momento do parto,
que obriguem hospitais e serviços de saúde a dar publicidade desse direito aos
cidadãos, tudo isso me parece insuficiente e ineficaz, quando esbarra na
opressão silenciosa das linguagens armazenadas no inconsciente coletivo
nacional.
Para muitos,
por aí, pode parecer bobagem; mas, a herança colonial brasileira diz muito
sobre a constituição das relações sociais a partir das linguagens. O discurso
que se afirma decorre das classes dominantes, daqueles que detêm nas mãos algum
tipo de poder e de influência social. Portanto, partem de suas palavras os
limites de acessibilidade aos direitos pela grande massa da população.
Sim. O poder
inibe, constrange, silencia, amedronta. De modo que ele é quem faz a perda do
lugar de fala do cidadão. Seus direitos, suas demandas, suas carências, seus
sonhos, seus projetos, são barbaramente desconsiderados, negligenciados, apagados,
sob alegações de desimportância, de inconsistência, de inoportunidade.
Então,
basta que algum representante de um estrato social mais privilegiado se
manifeste, para que suas palavras e narrativas sejam reconhecidas como a
verdade a ser seguida. Porque olhando, secularmente, para trás, o acesso às
regalias e privilégios que possibilitariam a aquisição do conhecimento, da
sabedoria, da informação, estavam restritos a uma bolha eurocêntrica.
Foi a
partir desse cenário que os poderosos e os pseudopoderosos nacionais passaram a
exercer a sua dominação sobre as camadas menos privilegiadas e favorecidas. Caracterizados
de acordo, com sua bela aparência, porte, desenvoltura, alegorias e adereços,
eles completam a figuração com as habilidades linguísticas pertinentes aos títulos
que ostentam possuir e que puderam adquirir com certa facilidade, graças ao
poder aquisitivo de suas famílias.
Isso, de
certa forma, cria uma blindagem para as suas relações sociais, especialmente,
no tocante ao grande público. Eles fazem questão de provar, por a mais b, que a
razão sempre está com eles, através de condutas que praticamente inibem,
inferiorizam e humilham o outro. Colocando-o em uma posição de resignação e subserviência.
Acontece que,
nesse caso citado no início dessa reflexão, a desumanidade, a perversidade, a
monstruosidade, se torna ainda maior porque esse “outro” está numa posição de extrema vulnerabilidade, fragilidade, está
sob cuidados em um hospital. E não importa se a situação é um parto ou uma
cirurgia de peito aberto. São muitas as dúvidas, os medos, as ansiedades, que permearão
aquela experiência.
Por isso,
o corpo clínico e de enfermagem precisa estar apto para acolher, para apoiar,
para envolver o paciente em um manto de respeito, de dignidade e de afeto,
abstraindo por completo quaisquer vestígios de opressão criminosa das
linguagens. Mas, não foi isso que se viu através da atitude do anestesista.
Ele tentou
se sobrepor sobre os colegas, sobre a paciente, valendo-se da sua posição social
enquanto médico. Por sorte, se isso é possível dizer, o corpo de enfermagem
estava cioso das suas responsabilidades, do seu compromisso ético-profissional,
e se colocou na direção de agir contra a prática destoante.
Mas, que
não se enganem as pessoas, esse é só um exemplo. Triste. Absurdo. Condenável. Mas,
um exemplo. Um pouco de reparo no cotidiano da vida contemporânea brasileira para
ver desabar em enxurrada os episódios de opressão criminosa das linguagens. Aliás,
quando se noticiam os casos de violência, nas suas mais diversas formas e conteúdos,
ali estão imersas essas opressões.
Os discursos,
as falas, as narrativas, na verdade, nem tentam mais esconder essa forma degradante
de agir. A marca no inconsciente coletivo dessas pessoas é tão profunda e tão
constantemente reafirmada, que elas realmente acreditam em um status de
superioridade, de distinção, de poder sobre os outros.
Daí elas
fazerem questão de atuar na construção de obstáculos que possam favorecer a
apropriação do lugar de fala pelas camadas minoritárias da população. Como dizia
Paulo Freire, “O sistema não teme o pobre
que passa fome, teme o pobre que sabe pensar”.
Talvez,
esse seja o momento de refletir de maneira mais contundente sobre a forma como
temos ajudado a legitimar e a institucionalizar esse trato social tão assimétrico,
tão díspare. Será que temos mesmo que chamar um médico, ou um advogado, ou um
político, de Doutor? Será que alguém, nesse mundo, tem nas mãos as chaves da
certeza sobre tudo? Será que eles deixam de ser gente, como nós, somente por
causa da roupa que escolhem vestir?
Precisamos fortalecer a nossa cidadania. Precisamos saber mais sobre os nossos direitos e deveres. Precisamos saber mais até onde vão os nossos limites e fronteiras dentro da sociedade. Só assim, vamos nos constituir mais fortes e preparados para impedir que as investidas cruéis das opressões criminosas nos cheguem pelas línguas ferinas e pelas ações inomináveis de uns e outros.