terça-feira, 12 de julho de 2022

Assim disse o líder...


Assim disse o líder...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Estampam as manchetes do dia a notícia de que “Testemunhas dizem a comitê que Trump planejou marcha que terminou com invasão ao Capitólio” 1. Mas, por que falar sobre isso, quando boa parte do Brasil se sente sob o impacto das recentes manifestações de violência ocorridas dentro do próprio território? Simplesmente, porque precisamos refletir além do que vemos.

Longe de ser uma práxis exclusiva da contemporaneidade, há tempos que episódios de aliciamento coletivo, por parte de figuras com extremo poder de liderança, promovem tragédias na sociedade. O caso de Jonestown2, em 1978, por exemplo, tornou-se um dos mais emblemáticos. Centenas de seguidores da seita conhecida como “Templo do Povo” tomaram veneno a mando do reverendo Jim Jones.

Apesar de dotado de capacidade intelectual e cognitiva, o ser humano sofre influência direta das emoções e dos sentimentos. Desse modo, alguns estão mais propensos a viver as alterações de equilíbrio entre a razão e a sensibilidade, mostrando-se mais aptos a inabilidade ou a incompetência para lidar com frustrações, negações, rejeições e/ou impossibilidades, as quais estão naturalmente presentes no cotidiano de todos os mortais.

Acontece que a dinâmica construtiva da chamada Sociedade de Consumo lançou os indivíduos a uma exposição exacerbada dessas condições, através do estímulo contínuo e intenso de aquisição de bens, produtos e serviços, independentemente da conjuntura social de cada um. Nesse “bombardeamento” midiático há uma homogeneização social que não traduz exatamente a realidade. Nem todos podem. Nem todos querem. Mas, não importa, porque o sistema diz que é para todos.  

Então, essa roda-viva frenética acaba conduzindo as pessoas a um fastio sem fim. A necessidade de consumir mais, de ter mais, de mostrar mais, faz com que se crie um vazio existencial profundo, na medida em que nada consegue preenchê-lo. A vida começa a acontecer na espera de algo melhor que esteja sempre por vir.  E é com base nesse vazio, nesse desalento, nessa falta de perspectiva, que certas figuras de liderança descobrem um caminho para encantar e persuadir, por meio de uma hábil manipulação da linguagem, da retórica.

É como se essas lideranças fossem a resposta certa e esperada por aqueles seguidores, um verdadeiro oásis no deserto de suas desesperanças, desilusões, descrenças. Eles passam a enxergar, portanto, uma luz no fim do túnel das suas frustrações, negações, rejeições e/ou impossibilidades. O que é uma relação de poder, de controle, de vigilância, passa a ser entendida e recebida como uma relação de acolhimento, de apoio, de suporte psicoemocional. Cada palavra é recebida como uma dádiva, uma orientação firme, segura, capaz de trazer todas as certezas que irão derrotar o mar de incertezas vigentes.

Mas, como já era de se esperar, chega-se a hora de cobrar o preço desse “altruísmo”. E a forma de retribuir a tudo isso se dá pela mais completa obediência e subserviência, atendendo às demandas manifestas pelo líder. Pela retórica sugestionável, ele induz e convence seus seguidores a agir segundo a sua vontade e seus interesses. Afinal de contas, todos os argumentos empregados atuam nevralgicamente na sensibilização daquelas frustrações, negações, rejeições e/ou impossibilidade.

Portanto, essas lideranças não se valem de metáforas, ou de figuras de linguagem, nos seus discursos e narrativas, porque elas podem incorrer no risco de uma interpretação equivocada que as impeça de atingir seus objetivos de persuasão. Elas têm que ser diretas, francas, objetivas, sem meias palavras. O que vai determinar o grau de coerência discursiva entre os seguidores é justamente o grau de encantamento, de persuasão, de manipulação retórica, a que eles foram submetidos. É esse o ponto que irá determinar a extensão das tragédias.

Ora, porque os indivíduos não são apenas o reflexo daquilo que acontece na sua psique. O que acontece no mundo, no cotidiano, de bom ou de ruim, é catalisado e processado de maneira cumulativa, de modo que os resultados dessa combinação não podem ser facilmente estimados ou dimensionados. São muitas as variáveis interferindo continuamente nessa dinâmica e, por consequência, nos seus resultados, os quais com o passar do tempo acabam incorporados no inconsciente.    

E as ideias exaustivamente reafirmadas pelas lideranças aos seus seguidores proporciona a construção de um inconsciente coletivo visivelmente desvirtuado da realidade. É como se houvesse uma ruptura da autonomia intelectual e cognitiva desses indivíduos para uma outorga voluntária dela ao líder. Eles, então, abdicam da sua identidade, da sua personalidade, da sua cidadania, para serem a representação da sua liderança, em quaisquer que sejam as circunstâncias que se façam necessárias, inclusive matar ou morrer.

Isso explica porque, com mais frequência do que, talvez, gostaríamos, temos nos deparado exatamente com o que descreveu George Orwell, “De modo geral, porém, os bichos gostavam daquelas celebrações. Achavam confortador ser lembrados de que, afinal, não tinham patrões e todo o trabalho que enfrentavam era em seu próprio benefício. E assim, às custas das cantorias, dos desfiles, do estrondo da espingarda e do drapejar da bandeira, conseguiram esquecer de que estavam de barriga vazia, pelo menos a maior parte do tempo” (A Revolução dos Bichos, 1945).