Assim
disse o líder...
Por
Alessandra Leles Rocha
Estampam as manchetes do dia a
notícia de que “Testemunhas dizem a
comitê que Trump planejou marcha que terminou com invasão ao Capitólio” 1. Mas, por que falar sobre isso,
quando boa parte do Brasil se sente sob o impacto das recentes manifestações de
violência ocorridas dentro do próprio território? Simplesmente, porque precisamos
refletir além do que vemos.
Longe de ser uma práxis exclusiva
da contemporaneidade, há tempos que episódios de aliciamento coletivo, por
parte de figuras com extremo poder de liderança, promovem tragédias na
sociedade. O caso de Jonestown2, em
1978, por exemplo, tornou-se um dos mais emblemáticos. Centenas de seguidores
da seita conhecida como “Templo do Povo”
tomaram veneno a mando do reverendo Jim Jones.
Apesar de dotado de capacidade
intelectual e cognitiva, o ser humano sofre influência direta das emoções e dos
sentimentos. Desse modo, alguns estão mais propensos a viver as alterações de equilíbrio
entre a razão e a sensibilidade, mostrando-se mais aptos a inabilidade ou a incompetência
para lidar com frustrações, negações, rejeições e/ou impossibilidades, as quais
estão naturalmente presentes no cotidiano de todos os mortais.
Acontece que a dinâmica construtiva
da chamada Sociedade de Consumo lançou os indivíduos a uma exposição exacerbada
dessas condições, através do estímulo contínuo e intenso de aquisição de bens,
produtos e serviços, independentemente da conjuntura social de cada um. Nesse “bombardeamento” midiático há uma
homogeneização social que não traduz exatamente a realidade. Nem todos podem. Nem
todos querem. Mas, não importa, porque o sistema diz que é para todos.
Então, essa roda-viva frenética acaba
conduzindo as pessoas a um fastio sem fim. A necessidade de consumir mais, de
ter mais, de mostrar mais, faz com que se crie um vazio existencial profundo,
na medida em que nada consegue preenchê-lo. A vida começa a acontecer na espera
de algo melhor que esteja sempre por vir. E é com base nesse vazio, nesse desalento,
nessa falta de perspectiva, que certas figuras de liderança descobrem um
caminho para encantar e persuadir, por meio de uma hábil manipulação da
linguagem, da retórica.
É como se essas lideranças fossem
a resposta certa e esperada por aqueles seguidores, um verdadeiro oásis no deserto
de suas desesperanças, desilusões, descrenças. Eles passam a enxergar,
portanto, uma luz no fim do túnel das suas frustrações, negações, rejeições
e/ou impossibilidades. O que é uma relação de poder, de controle, de vigilância,
passa a ser entendida e recebida como uma relação de acolhimento, de apoio, de
suporte psicoemocional. Cada palavra é recebida como uma dádiva, uma orientação
firme, segura, capaz de trazer todas as certezas que irão derrotar o mar de
incertezas vigentes.
Mas, como já era de se esperar,
chega-se a hora de cobrar o preço desse “altruísmo”.
E a forma de retribuir a tudo isso se dá pela mais completa obediência e subserviência,
atendendo às demandas manifestas pelo líder. Pela retórica sugestionável, ele
induz e convence seus seguidores a agir segundo a sua vontade e seus
interesses. Afinal de contas, todos os argumentos empregados atuam
nevralgicamente na sensibilização daquelas frustrações, negações, rejeições
e/ou impossibilidade.
Portanto, essas lideranças não se
valem de metáforas, ou de figuras de linguagem, nos seus discursos e
narrativas, porque elas podem incorrer no risco de uma interpretação equivocada
que as impeça de atingir seus objetivos de persuasão. Elas têm que ser diretas,
francas, objetivas, sem meias palavras. O que vai determinar o grau de coerência
discursiva entre os seguidores é justamente o grau de encantamento, de persuasão,
de manipulação retórica, a que eles foram submetidos. É esse o ponto que irá
determinar a extensão das tragédias.
Ora, porque os indivíduos não são
apenas o reflexo daquilo que acontece na sua psique. O que acontece no mundo,
no cotidiano, de bom ou de ruim, é catalisado e processado de maneira
cumulativa, de modo que os resultados dessa combinação não podem ser facilmente
estimados ou dimensionados. São muitas as variáveis interferindo continuamente nessa
dinâmica e, por consequência, nos seus resultados, os quais com o passar do
tempo acabam incorporados no inconsciente.
E as ideias exaustivamente
reafirmadas pelas lideranças aos seus seguidores proporciona a construção de um
inconsciente coletivo visivelmente desvirtuado da realidade. É como se houvesse
uma ruptura da autonomia intelectual e cognitiva desses indivíduos para uma
outorga voluntária dela ao líder. Eles, então, abdicam da sua identidade, da
sua personalidade, da sua cidadania, para serem a representação da sua
liderança, em quaisquer que sejam as circunstâncias que se façam necessárias,
inclusive matar ou morrer.
Isso explica porque, com mais frequência
do que, talvez, gostaríamos, temos nos deparado exatamente com o que descreveu
George Orwell, “De modo geral, porém, os
bichos gostavam daquelas celebrações. Achavam confortador ser lembrados de que,
afinal, não tinham patrões e todo o trabalho que enfrentavam era em seu próprio
benefício. E assim, às custas das cantorias, dos desfiles, do estrondo da
espingarda e do drapejar da bandeira, conseguiram esquecer de que estavam de
barriga vazia, pelo menos a maior parte do tempo” (A Revolução dos Bichos,
1945).