quinta-feira, 14 de julho de 2022

Nós e nossas Bastilhas...


Nós e nossas Bastilhas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A França celebra, hoje, um de seus mais importantes feriados nacionais, o Dia da Federação ou Dia da Bastilha. A tomada da referida prisão, em 1789, pela população de Paris, marca o estopim da Revolução Francesa e torna-se o pontapé inicial para a consolidação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que séculos depois estaria implícita no ideário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.  

Isso explica porque é tão relevante, para qualquer cidadão do mundo, refletir a respeito. Apesar dos movimentos contemporâneos de dissociação das ideias e das informações, isso não altera em nada o curso da história. Por isso, eu considero tão relevante trazer as reflexões como quem puxa um fio do novelo histórico, a fim de reafirmar cada vez mais as conexões que existem entre o ontem e o hoje.

No caso da Revolução Francesa, não está necessariamente no fato do banimento e execução dos monarcas o seu grande apogeu. Nem tampouco, na estrutura da movimentação popular para colocar em prática a referida Revolução. Ela foi o que foi porque, de fato, imprimiu uma verdade conjuntural dentro da sociedade europeia e, de certo modo global, através das colônias, que colocou em xeque as relações de poder.

Até ali, tudo parecia fluir dentro da normalidade estabelecida pelas Monarquias; sobretudo, no que diz respeito ao imobilismo dos estratos sociais da época e as condições a que eram submetidos em razão das decisões monárquicas. De modo que o Absolutismo dava a impressão de que a ordem estava sob o controle do poder real e que nada, nem ninguém, poderia transgredir essa máxima.

Acontece que eles foram traídos por seu próprio excesso de certezas e confiança demasiada. Tudo na vida tem limites. E nem todos podem ser flexibilizados mediante os desejos, os interesses e as necessidades de uns e outros. Aliás, os efeitos adversos acumulados ao longo do tempo podem se transformar em artefatos belicosos de proporções inimaginadas.

As adversidades restringem, sobremaneira, as possibilidades de cultivo da resignação, da paciência, da credulidade, da esperança. De modo que foi exatamente isso o que aconteceu. As flagrantes desigualdades sociais catalisaram a fúria popular.  

O que veio depois disso no cenário francês foram tempos terrivelmente difíceis. As relações sociais foram submetidas a níveis de tensionamento importantes até que conseguissem alcançar um equilíbrio satisfatório para colocar a República nos trilhos do desenvolvimento e do progresso esperados.

Mas, ainda que se possa extrair análises e reflexões importantes nesse contexto, não é esse o ponto que nos seja mais relevante, com vistas a atual realidade contemporânea. Enquanto a França vivia a ebulição da sua revolução, o restante da Europa monárquica assistia estarrecida aquela surpreendente insurreição popular e percebia que suas certezas e convicções absolutistas haviam se transformado em pó.

As massas populares não estavam sob controle, como eles acreditavam. A França tornava-se um “case” de sucesso para o povo e isso poderia inflamar outras massas além de suas fronteiras. Foi, então, que emergiu a necessidade de se criar mecanismos para retomada do poder monárquico e recolocar tudo dentro do devido lugar no ideário absolutista.

As reivindicações populares não deixavam dúvidas sobre as demandas que urgiam. Por isso, não foi difícil, e muito menos coincidência, que pouco tempo depois da Revolução Francesa, pelas mãos da Inglaterra chegava ao mundo a Revolução Industrial. Nada mais oportuno para conter eventuais arroubos da população do que entretê-los a partir de uma nova ordem social.

Os desafios da vida urbanizada, a radical transformação dos meios de produção, as novas relações de trabalho, ... tudo isso e muito mais fariam essa emergente classe trabalhadora se distanciar das oportunidades de ingressar em quaisquer movimentos revolucionários. Mal sabiam que estavam sendo aprisionados em uma Bastilha sem grades!

Durou pouco o sonho das camadas populares de terem seus direitos humanos e cidadãos acessíveis e resguardados! A decapitação dos monarcas não pôs fim ao martírio das desigualdades socioeconômicas.

Muito pelo contrário! Dela surgiu uma burguesia ainda mais voraz pela espoliação do povo. Que instituiu teorias, regras e sistemas capazes de recrudescer cada vez mais a impossibilidade de uma sobrevivência digna, por parte dos estratos inferiores da pirâmide social.

Portanto, as raízes da precarização trabalhista, da extinção de direitos sociais, do empobrecimento populacional, da insegurança alimentar e nutricional, são antigas. O passar do tempo só fez regá-las e apará-las para que pudessem seguir seu curso. A Queda da Bastilha nos permite, então, entender a dinâmica dos jogos de poder por uma perspectiva bem menos romantizada e muito mais pragmática.

Embora as massas populares sejam maioria, a tensão das forças é maior em razão do poder capital que está nas mãos de uma minoritária classe dominante. O que faz desse embate uma luta complexa e desafiadora, com muitas idas e vindas; pois, acaba sendo uma relação interespecífica e desarmônica.

Entretanto, ela será sempre inevitável, na medida em que as massas não podem se permitir invisibilizar. A invisibilização representa o silenciamento e traz de volta aquela velha “normalidade” que um dia foi instituída pelas monarquias.

Não é à toa que George Orwell escreveu em seu livro 1984, “Num mundo no qual todos trabalhassem pouco, tivessem o alimento necessário, vivessem numa casa com banheiro e refrigerador e possuíssem carro ou até avião, a forma mais óbvia e talvez mais importante de desigualdade já teria desaparecido. Desde o momento em que se tornasse geral, a riqueza perderia seu caráter distintivo.  Claro, era possível imaginar uma sociedade na qual a riqueza, no sentido de bens e luxos pessoais, fosse distribuída equitativamente, enquanto o poder permanecia nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Na prática, porém, uma sociedade desse tipo não poderia permanecer estável por muito tempo. Porque se lazer e segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande massa de seres humanos que costuma ser embrutecida pela pobreza se alfabetizaria e aprenderia a pensar por si; e depois que isso acontece, mais cedo ou mais tarde essa massa se daria conta de que a minoria privilegiada não tinha função nenhuma e acabaria com ela. A longo termo, uma sociedade hierárquica só era possível num mundo de pobreza e ignorância”.

Por essa razão, a história mostrou, e continua mostrando, que cada vez que seres humanos são invisibilizados, enquanto milhares de pessoas morrem algumas centenas ficam bilionárias. Afinal de contas, a invisibilização social deixa de existir, apenas, na perspectiva daqueles que estão no topo da pirâmide e se comprazem na satisfação abjeta de consolidar as mais diversas formas de desigualdade no mundo. Daí a necessidade de olhar pelos espelhos da Bastilha todas as Bastilhas que nos aprisionam objetiva e subjetivamente todos os dias.