domingo, 29 de maio de 2022

Escassez de mão de obra. Desemprego. Etarismo. Saúde Mental. Tudo junto e misturado!


Escassez de mão de obra. Desemprego. Etarismo. Saúde Mental. Tudo junto e misturado!

 

Por Alessandra Leles Rocha  

 

Preocupação global, a saúde mental está imersa em questões triviais do cotidiano, as quais a maioria da população nem se dá conta. Foi assistindo a várias matérias recentes sobre as gigantescas filas dos “feirões de vagas de emprego”, Brasil afora, e pondo reparo às entrevistas, que pude captar a sutileza das entrelinhas perversas, pela manifestação de diversos preconceitos e discriminações, incluindo o etarismo.

A discriminação contra indivíduos com base em estereótipos associados à idade, sempre esteve presente na sociedade brasileira. Sobretudo, em relação às mulheres. Acontece que o peso dessa análise vai muito além da exaltação do envelhecimento em si. Trata-se de evidenciar a passagem do tempo como uma condição degradante e marginalizante para a realização de qualquer trabalho fora do contexto doméstico.

É como se a força de trabalho estivesse resumida à força física, ao vigor, à destreza lógica, tão frequentemente atribuídos à juventude. Como se a morte estivesse anunciada na idade presente no documento pessoal, ou seja, o idoso já vive na expectativa de não ter amanhã, ao contrário do jovem. Como se a aparência juvenil pudesse agregar mais valor a bens, produtos e serviços. ...

No entanto, considerando que o mundo caminha para um envelhecimento populacional consistente nas próximas décadas e que, em paralelo a esse processo, tem havido um empobrecimento das nações, o modo de olhar e entender a situação precisa ser outro. Particularmente, nos países classificados como “em desenvolvimento”, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)1. Algo que inclui o Brasil.

Diante da inexistência de políticas públicas formuladas e estruturadas para atender a esse cenário social, cada vez mais a presença de idosos nas filas de emprego se amplia e dá a dimensão da fragilidade socioeconômica que envolve suas vidas. Então, não bastassem os impactos psicoemocionais inerentes ao processo de envelhecimento, o etarismo surge como mais um desafio para manterem sua saúde mental equilibrada a fim de alcançar o seu objetivo de sobrevivência.

A disputa no mercado de trabalho é sim, cada vez mais feroz. São milhões de pessoas em busca de um emprego, ou de uma recolocação dentro do status formal. Todos ali precisam e dependem daquela oportunidade para assegurar a dignidade do seu cotidiano. É o pão de cada dia que está em jogo. É o aluguel. É a luz. É a água. É a vida...

No entanto, sob a alegação numérica das conjunturas, eis que o etarismo aparece como critério de exclusão na maioria dos casos, desencadeando um fenômeno de destruição da autoestima e do aparecimento de um profundo desalento entre as parcelas mais vividas da população. É nesse ponto que ele se torna o estopim para o comprometimento da saúde física e mental dessa parcela humana.   

O etarismo adoece a população idosa, na medida em que a faz se sentir desqualificada, inapropriada, incapaz, ultrapassada, feia, ... E esse adoecimento mental, moral, fomenta um ciclo vicioso que degrada lentamente o indivíduo, pela somatização das suas tristezas, dos seus infortúnios, das suas mazelas, e pela potencialização de eventuais comorbidades preexistentes. Quanto mais o indivíduo é preterido socialmente, mais a sua qualidade de saúde é comprometida.

Sem contar, que tomados por tanta depreciação, eles acabam rendidos aos assistencialismos e aos oportunismos de plantão. Às vezes, lançados as mais atrozes condições de precarização laboral. Sim, muitos acabam aceitando propostas degradantes em nome de um mínimo de sobrevivência. Às vezes, submetidos às indignidades que compõem o leque de “auxílios” governamentais, notoriamente conhecidos pela insuficiência, frente ao que estabelece a própria Constituição Federal de 1988.

Pois é, nos atemos muito às doenças; mas, esquecemos de refletir sobre as causas. Muito pouca gente se pergunta o que estaria por trás de tanta depressão, no mundo? De tanto suicídio? De tanta frustração? De tanto desalento? E esse não se perguntar, abre as fronteiras, inclusive do mercado de trabalho, para o fluxo contínuo de agentes fomentadores dessas situações, como é o caso dos preconceitos e das discriminações.

Etarismo. Gordofobia. Misoginia e Sexismo. Homo e Transfobia. Xenofobia. Aporofobia. Racismo. Eles são sim, armas de destruição humana. Aliás, as violências começam pelas palavras. Porque o modo como são ditas, recebidas e processadas é sempre imprevisível. De repente, elas acessam um gatilho de memórias e lembranças profundas que fazem emergir uma série de desdobramentos devastadores, em fração de segundos.

É sério! Se ninguém conhece a si mesmo, o que dirá a respeito do outro! Os impactos que causamos nas pessoas, sejam bons ou ruins, precisam de reflexão, de consciência. E no caso dos preconceitos, o que se tem é uma aplicação rasa e inconsistente de crenças, valores e sentimentos, os quais, na maioria das vezes, sequer foram analisados ou ponderados de maneira particular. Fluem de achismos, de casuísmos, frutos de um senso comum deturpado.

O importante; sobretudo, na conjuntura atual, é perceber como esse comportamento tem afetado e prejudicado milhões de pessoas, no cerne da sua sobrevivência. O quanto a humanidade está ampliando os desafios relativos à convivência e coexistência social desnecessariamente. Inclusive, colocando em xeque se, de fato, há realmente uma inexistência, tão expressiva, de mão de obra qualificada à disposição. Talvez, seja bom refletir a respeito com todo o respeito que essa questão merece!  

sábado, 28 de maio de 2022

UNIVERSIDADES FEDERAIS. As entrelinhas de uma pauta tão importante.


UNIVERSIDADES FEDERAIS. As entrelinhas de uma pauta tão importante.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

E aí, vai continuar considerando tudo obra do acaso ou vai enxergar a vida como ela realmente é? Não há nada de coincidência, no fato de que essa semana duas notícias causaram uma repercussão enorme na área de Educação do país.

A primeira diz respeito à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) número 206, a qual propõe cobrar mensalidades nas universidades públicas 1. A segunda, segue a mesma linha do absurdo, e anuncia que o “Governo bloqueia 14,5% da verba para custeio e investimento de universidades federais” 2. Portanto, só não entende o que está acontecendo quem não quer.

Então, vamos traçar uma reflexão passo a passo. Começando pelo fato de que as Universidades públicas são um gigantesco “tendão de Aquiles” que desconforta terrivelmente os simpatizantes dos diferentes matizes da direita brasileira.

Principalmente, depois que políticas públicas envolvendo, por exemplo, a criação de cotas e a ampliação do acesso da população através da abertura de novos campi e da criação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) permitiram a construção de uma pluralidade social dentro dessas instituições.

O que significa que as Universidades públicas se tornaram representantes de um movimento de mobilidade e ascensão social. Aliás, a fim de não me alongar em explicações óbvias a esse respeito, sugiro àqueles que ainda encontram alguma dificuldade em compreender, que assistam ao filme “Que horas ela volta? ” (2015) 3, dirigido por Anna Muylaert. De maneira cirúrgica e contundente, essa obra disseca esse “desconforto social” presente nas elites nacionais.

Mas, quem disse que para por aí? Não. As investidas contra o ensino universitário público explicitam de maneira irrefutável o desejo que pulsa nas veias da direita brasileira; sobretudo, da sua elite, em desfavorecer a grande massa da população de quaisquer possibilidades de desenvolvimento humano.

Não sejamos tolos ou ingênuos ao ponto de acreditar que as notícias acima têm como propósito “beneficiar as elites”. Porque isso é uma grande falácia narrativa! Ora, as elites não precisam das universidades públicas, ou de quaisquer políticas públicas. Quando querem uma educação de qualidade eles colocam seus filhos nas melhores instituições do país ou do mundo. Simples assim!

É para os 94% restantes da população 4 que as políticas públicas são importantes. É para esses cidadãos que as oportunidades fazem total diferença. E o que há de mais perverso e cruel nessas investidas é a tentativa desvairada de comparar realidades incomparáveis. Vamos e convenhamos, há um abismo real entre o Brasil e qualquer país desenvolvido. Basta verificar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 5 ou o índice Gini 6, para retomar a consciência a esse respeito.

Para quem não se deu conta ainda, “a dívida estudantil é a segunda principal causa de endividamento para as famílias nos EUA” 7. Então, imagina no Brasil? Contrariando uma resistência furiosa de muita gente por aí, o mundo contemporâneo está em um processo de franco empobrecimento em razão das conjunturas que se estabeleceram nas últimas décadas.

De modo que cada vez menos pessoas têm recebido salários compatíveis e satisfatórios às suas demandas fundamentais, sem contar os elevados índices de desemprego. A precarização laboral agrega ao endividamento um peso cada vez mais emblemático. Na recente pesquisa mensal da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), de abril deste ano, o país “registrou um recorde de 77,7% das famílias brasileiras, que afirmaram fechar o mês com dívidas a vencer em três em cada dez contas” 8.

Então, a discussão em torno da cobrança de mensalidades nas universidades públicas já acontece pautada sobre o notório conhecimento a respeito da realidade de endividamento nacional. O ponto de análise a se fazer, portanto, é que ela está diretamente atrelada as razões para os cortes de orçamento. É muito simples. Precarizar e sucatear o ensino e a pesquisa no país é um modo de pressionar para privatização das universidades e instituições de ensino federais.

Por mais tosco e repugnante que possa ser, a elite brasileira não quer perder a oportunidade de se diferenciar do resto da população por meio da desigualdade de acesso a bens, produtos e riquezas. Como já disse anteriormente, para ela tanto fez como tanto faz a inexistência das políticas públicas. Não importa a perda de royalties das pesquisas, dos avanços científicos e tecnológicos, do salto qualitativo e quantitativo da Educação nacional. Ela tem dinheiro. Ela tem poder. Ela tem acesso. Ela dita as regras.

Contudo, não se esqueça. Embora seja chocante admitir, o Brasil do século XXI é o Brasil do século XVI. O Brasil da “Casa Grande e Senzala”. O Brasil elitista, racista, escravocrata, aporofóbico, preconceituoso e violento até o último grau. O Brasil do imobilismo social. O Brasil que grita, xinga e bate na mesa dentro dos seus limites territoriais; mas, fala calmo e suave, na mais vexatória subserviência, quando está no contexto das grandes potências mundiais. Afinal, uma vez Colônia sempre Colônia!  



sexta-feira, 27 de maio de 2022

VIOLÊNCIAS. Eis os retratos dos nossos pecados inconfessáveis.


VIOLÊNCIAS. Eis os retratos dos nossos pecados inconfessáveis.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É lamentável ver parte da população se colocar na posição de torcida organizada no trato de assuntos extremamente complexos e importantes. Violência vai muito além de certo e errado, bom e mau. De modo que a Justiça só se materializa efetivamente nesses casos, quando munida da solidez de profundas análises reflexivas e de princípios bem constituídos.

As violências se repetem, se sucedem; mas, estão longe de ser obra do acaso. A grande questão é que a contemporaneidade parece ter trazido tudo para a facilidade dos recortes ao invés dos fatos propriamente ditos. O último ato da violência é sempre o desfecho de um processo meticulosamente engendrado para culminar dessa maneira. Portanto, a violência não é repentina.

Então, quando as pessoas se arvoram do direito de execrar o criminoso, elas não têm o direito integral de fazê-lo, apenas, em parte. Ora, muito da violência que se exibe por aí tem sim uma parcela importante de contribuição da própria sociedade. Vejamos que a violência é um desalinho da segurança e a segurança é uma questão de Estado, o que significa que os cidadãos ainda que de maneira indireta exercem a composição do Estado através do voto.

E como temos percebido com facilidade que nos tempos contemporâneos os indivíduos exigem cada vez mais seus direitos e cumprem cada vez menos as suas obrigações, o exercício fiscalizador inerente ao votar acaba passando longe do seu cumprimento. Nem mesmo, naquilo que diz respeito a situações tão fundamentais à vida cotidiana, como é o caso da segurança.

As pessoas lamuriam sobre a insegurança no dia a dia; mas, desconversam a respeito da sua pouca ação no sentido de cobrar de seus representantes eleitos políticas que sejam eficientes e suficientes para devolver a paz, a ordem, o equilíbrio social. São nesses momentos, que fica mais fácil bravejar sobre as espumas dos acontecimentos ao invés de olhar profundamente sobre os caminhos que fizeram as coisas chegarem ao ponto que chegaram.

Pois é, a grande maioria dos candidatos fala pelos cotovelos, lançam ideias desconectas ao vento, e em pleno século XXI, no Brasil, há quem considere tudo isso normal. Só que não. Ser candidato é fácil, quero ver administrar satisfatoriamente um país com tantos desafios seculares e atuais a serem debelados! Afinal, os problemas não estão em caixinhas separadas e etiquetadas. Todos dialogam com todos.

Segurança, por exemplo, dialoga com economia, com justiça, com educação, com trabalho, com saúde. E o não fazer da classe política, eleita a partir dos votos, tantas vezes depositados displicentemente nas urnas, é que derrama o caldo. Como na história infantil de João e Maria 1, que foram orientados a marcar o caminho de volta para casa a fim de não se perderem na floresta, nossos votos deveriam também nos remeter a um flashback de como os problemas que nos afligem se constituíram.  

Não vejo ninguém se interessar pelo começo da história, ou seja, quando, como e onde as sementes da violência foram lançadas no país. Quem as regou com afinco e dedicação? Quem deu um incentivo a mais para que elas prosperassem? Quem trabalhou às avessas para as violências permanecerem exatamente no seu devido lugar? ... Fazendo, mesmo, emergir a ideia de que as violências acontecem nos “de repentes” da vida, quando sabemos muito bem que isso não é verdade.

E aí, que para encurtar a narrativa, esconder as (ir) responsabilidades, é que muita gente destila o veneno estritamente sobre os ditos “criminosos”, ovacionando irrefletidamente sobre as ações das equipes de segurança pública. Não se preocupam com as baixas humanas alheias ao confronto, com a possibilidade das balas perdidas, com a falta de critérios para a realização das incursões, enfim...  Mas, o que é pior, ninguém se questiona de que, entra ano e sai ano, as violências não cessam.

Mata-se muito. Mata-se a esmo. Mata-se como solução prática e rápida. No entanto, as violências não saem de cena. O que significa que essa legitimação da insegurança, como ferramenta de garantia da segurança conforme os padrões vigentes no país, é uma grande falácia. Tanto da parte de quem está no comando e execução das ações, quanto daqueles que as defendem e as aplaudem.

Portanto, vidas não estão sendo preservadas. Nem dos “bandidos”. Nem dos inocentes. Nem de policiais e agentes de segurança. Nem da população a quilômetros de distância, dado o potencial de alcance das armas utilizadas nas incursões. Enfim ... Nessa guerra urbana contemporânea nenhuma vida fica a salvo.

É. A verdade dói! A verdade escancara o descompromisso e a presença de um rastro de anticidadania que impede o desenvolvimento e o progresso do país. Que cria novos cenários para promessas eleitoreiras, de pleito em pleito, como no velho modelo da “indústria da seca”. E assim, vamos assistindo ao surgimento da “indústria do desemprego”, da “indústria da fome”, “da indústria da violência”, e por aí vai.  

Não é o ato de votar que te torna cidadão. A cidadania compreende o exercício dos direitos e obrigações civis, políticas e sociais, com o único propósito de consolidar uma sociedade mais justa e equilibrada. Lembre-se do que escreveu Baltasar Gracián, prosador espanhol do século XVII, “Alguns raciocinam sempre ao contrário, dando muita atenção ao que é pouco importante e pouca atenção ao que é muito importante” (Oráculo Manual e Arte de Prudência); afinal de contas, cidadania é coisa séria!



1 João e Maria (1812) – Conto de fadas – Irmãos Grimm. 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

No fim das contas é ódio em estado bruto!


No fim das contas é ódio em estado bruto!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não. Não é tão diferente assim! A operação policial que vitimou mais de 25 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro1, e o ataque a uma escola no Texas, EUA 2, no mesmo dia, tratam da violência armada que assombra o mundo.

Vamos e convenhamos que há tempos as armas perderam o sentido de uma eventual proteção para protagonizar o ódio que pulsa na sociedade contemporânea.

Queiram ou não admitir, a paranoia coletiva que enxerga inimigos por todos os lados, que cria teorias da conspiração absurdas 3 em torno da convivência e da coexistência humana plural, é que tem conduzido o extermínio da própria espécie humana.

Pois é, de um jeito ou de outro, aqui ou ali, essa violência que age a favor da dizimação, desse ou daquele grupo social, traz consigo o ranço colonial de outros tempos.

Aqui no Brasil, por exemplo, as incursões policiais não me permitem deixar de estabelecer uma conexão com os capitães-do-mato, serviçais de fazendas e feitorias imbuídos de capturar e punir os escravos fugidos e evitar a formação dos quilombos.

Alguns poucos eram brancos, a maioria eram negros libertos que haviam ganho a confiança de seus senhores e elevados a tal condição de trabalho.  

Mas, tal qual na época colonial, o índice de sucesso das empreitadas acabava sendo menor do que a expectativa. De modo que as perdas humanas sempre deram conta do fracasso social, na medida da total inabilidade e incompetência para compreender que a vigilância e a punição não traduzem quaisquer sinais de solução de problemas e conflitos. São artifícios que tendem apenas a mascarar e manter o fomento das crises sociais.

Já nos EUA, além da legitimação e legalização do uso de armas pela população, desde o seu período colonial, há na história norte-americana uma resistência nata, dentro do conservadorismo presente na sua identidade nacional, quanto às minorias.

Daí o bullying ser tão amplamente difundido e praticado desde a infância. É como se eles vissem nas diferenças uma ameaça iminente à manutenção do sucesso e da prosperidade da sua nação, para o qual foram designados por Deus, pois consideram as minorias como grupos de indivíduos inferiores e menos capazes.

Porém, o que antes parecia restrito ao bullying ganhou proporções de intolerância e violência ainda maiores. Os chamados “lobos solitários” começaram a investir contra determinados grupos sociais e promover ataques avassaladores.

Embora, dentro desses episódios existam atos responsivos ligados às minorias étnico-religiosas de origem estrangeira, vem sendo cada vez mais presente o comportamento atribuído como “terrorismo doméstico”, ou seja, crimes praticados por cidadãos genuinamente norte-americanos.

Em suma, o que se percebe é uma necessidade altamente exacerbada de eliminar o que parece desconfortar, ou desalinhar a ordem social preestabelecida historicamente, ou simplesmente apontar uma incapacidade de resolução racional e dialógica para questões cotidianas. A violência armada tem um potencial de êxito muito grande, o que traz a sensação de eficácia imediata.

Além disso, ela cria uma atmosfera de medo e tensão que retrai a participação e a presença dos alvos vulnerabilizados, em determinados lugares. É como se essas pessoas fossem lançadas subliminarmente a uma margem de invisibilização a partir do medo.

Acontece que a violência armada não é uma resposta de segurança. Muito pelo contrário. Haja vista, por exemplo, a dizimação colonialista dos espanhóis na América Latina. Os povos originários não tiveram a menor possibilidade de defesa.

E isso se dá pelo fato de que o ser humano não abre possibilidade para desconstruir essa “homogeneização social” que habita o seu inconsciente. É tudo ou nada. E para resolver poupando tempo e dinheiro, ele usa e abusa do arsenal bélico que dispõe.

Então, fica evidenciado que o oportunismo que habita a sociedade iria se valer desse culto ao medo. Afinal, não é um medo comum, qualquer. É o medo de perder a hegemonia, o poder, as regalias, os privilégios, os controles.

Foi com base nisso que se criou a indústria armamentista, para resguardar esses interesses e possibilitar resolver os impasses de uma maneira mais rápida e prática. O que explica as razões dessa indústria ganhar bilhões produzindo e comercializando artefatos que não têm por outra finalidade matar.

Ora, há pessoas e governos interessados exatamente nisso. A sociedade, pelo menos em parte, é conivente com a violência armada. Em seus cálculos sociais, não se computa o fato de que a possibilidade de controle desse extermínio não existe e pode ultrapassar as fronteiras e atingir fora do alvo. A violência armada não é uma violência controlada ou controlável. Ela é imprevisivelmente letal.

No fundo, seja em que lugar do planeta for, ela é sim, o marco do fracasso social humano. A indiferença, o descaso, a negligência, tudo isso aponta para uma verdade que aceita que pessoas sejam mortas por motivo torpe, cruel, sem direito a defesa.

O pior é que uma imensa maioria da população não faz sequer uma reflexão, uma análise crítica, uma ponderação a respeito. Banaliza. Normaliza. Trivializa. Aplaude. E não enxerga que ao fazer isso, está se referindo também à sua própria vida.

Quando você desconsidera o outro, menospreza o outro, rejeita o outro, automaticamente você abre espaço para que ele se manifeste da mesma forma em relação a você. Como escreveu Angie Thomas, com base na referência da música “T-H-U-G-L-I-F-E”, do rapper norte-americano Tupac, é simplesmente “O ódio que você semeia” 4.

E esse ódio tende a estabelecer um ciclo sem fim, porque ele vai se cristalizando no inconsciente coletivo das populações e impossibilitando a construção de uma relação isenta de estereótipos, de rótulos, de seletivismos, de revanchismos.

Por isso, a violência armada demarca o nosso fracasso, na medida em que ele escancara a nossa carência de habilidade e de competência para tecer um coletivo humano capaz de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das controvérsias”, como registra de maneira tão apropriada a própria Constituição brasileira de 1988.

Portanto, não há diferença entre o que aconteceu há dois dias, no Brasil e nos EUA. Sabe por quê? Porque vidas foram perdidas. Famílias foram destroçadas. A orfandade social foi estampada. A sociedade foi diminuída e desqualificada. O ódio ficou suspenso no ar. ... Afinal, o diálogo foi interrompido e silenciado, mais uma vez, pelo eco retumbante da ignorância e da estupidez humana.  



4 O ódio que você semeia (The Hate U Give) –  https://www.record.com.br/produto/o-odio-que-voce-semeia/

O ódio que você semeia / trailer oficial (2018) legendado HD - https://www.youtube.com/watch?v=csp9jnPhYAY 

terça-feira, 24 de maio de 2022

Medo???


Medo???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Então, é assim, o medo como estratégia de controle social?! Embora não tenham sumido do mapa, as Fake News tiveram sim um arrefecimento considerável. O frisson de outrora perdeu um pouco do gás, depois que uma onda de contestação e enfrentamento desse tipo de notícias ganhou protagonismo. Foram muitos os veículos de checagem desenvolvendo um trabalho sério, sistemático e atuante, a fim de desconstruir as velhas narrativas que giravam ao redor de uma pseudoignorância social impregnada de más intenções.

Porém, isso não significa que o medo deixou de nos rondar. Não. Só que agora ele chega vestido com cara de notícia recém-saída do forno trazida por veículos de informação e comunicação conhecidos. Notícias que causam, ou pelo menos têm a intenção de causar calafrios, tendo em vista que abordam assuntos já tão sensíveis e indigestos à própria realidade nacional, como, por exemplo, o fim da gratuidade no Sistema Único de Saúde (SUS) e nas Universidade Federais e uma “desideologização” do ensino 1.

Acontece que o medo desconforta. E justamente por isso, reduz a capacidade de parar e refletir de maneira isenta e serena a respeito de qualquer assunto. Ora, mas basta uma passada de olhos pela realidade brasileira para computar a quantidade de pequenos “caos” deflagrados por todos os cantos. O momento nacional é péssimo em todos os sentidos.

Primeiro, por conta própria, dada a flagrante ausência de habilidade e competência do governo para manter o país nos trilhos do desenvolvimento e do progresso. Segundo, porque o Brasil, ainda, faz parte do globo terrestre e, por essa razão, sofre direta e/ou indiretamente os impactos reverberados pelas crises que acontecem em outros cantos. Terceiro, porque somatizamos mazelas históricas seculares ao fluxo contínuo e recente de outras tantas.

Isso significa que a população já está amedrontada pelo dia de amanhã. Será que vai ter emprego? Será que vai ter comida no prato? Será que vai ter como encher o tanque do automóvel? Será que vai ter dinheiro para o remédio? Será que a pandemia nunca mais vai passar? Será ...? Será ...? Será ...? Perguntas que tiram o sono, tiram a paz, tiram o sossego, tiram a dignidade das pessoas, porque as lançam em um redemoinho de incertezas aterrorizador e intenso. Que traçam uma realidade inóspita sem prazo para acabar.

Então, quando a turma da extrema direita nacional acha graça em colocar mais pilha na grande massa da população, é realmente algo sem noção! Apologia de estratégias para levar o Brasil a situações que mergulhem de cabeça no aprofundamento da bancarrota nacional, é mesmo surreal. Destruir a dignidade humana das parcelas mais frágeis e vulneráveis do país, que diante da situação atual beiram mais de 70% da população, não sustenta e nem melhora o conjunto de regalias e privilégios dessa gente que vive em outro planeta, ou melhor, em outro século.

De modo que esse tipo de “terrorismo discursivo” não diz nada para coisa nenhuma. Dizer que vão fazer isso ou aquilo, que vão transformar o país na materialização de uma idealização desvairada, é um ataque direto aos próprios interesses dessa gente. Porque se eles acreditam que dilapidando e usurpando os recursos nacionais, até a última gota, vai ser suficiente para a sua sanha, não vai não! Pessoas de espírito absolutista, como essas, não se contentam com pouco, querem mais, e mais, e mais... Mas, de onde só se retira e não se repõe, rapidamente se depara com a escassez. E eles não querem um país pobre, miserável, árido de recursos.

Portanto, diz a lógica do bom senso para se ter prudência e não jogar contra os interesses daqueles que sustentam o topo da pirâmide social brasileira. O seu infortúnio, a sua infelicidade, o seu desespero, não são nada producentes para a sobrevivência do país. E não sou eu quem diz, basta lembrar o que foi a Revolução Francesa, no século XVIII. A monarquia nunca acreditou que o povo poderia chegar ao limite que chegou, que poderiam insurgir contra o topo da pirâmide. E não é que eles provaram o contrário!!! Subestimar os “inimigos” ou “adversários” é um erro crasso.

Ninguém nunca mediu o limite da tolerância brasileira. E mesmo se tivesse medido, está na configuração das conjunturas o balizamento desse limite. Quanto piores elas se tornam, mais se abre possibilidade de ele diminuir. Sem contar que, no momento atual, muita gente que se achava seguro na sua bolha de estabilidade viu a vida puxar-lhe o tapete sem a menor cerimônia.

Pois é, muita gente que comia chuchu e arrotava caviar, agora vende o almoço para comprar a janta, e olhe lá! De modo que, certamente, não são pessoas distribuindo alegria e contentamento, resignação e passividade. Como dizia Martin Luther King, “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio”.

Lamento, mas cultivar o medo é, além de inútil, absurdamente irresponsável. O saudoso sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, afirmava que “O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade”. Ele estava corretíssimo! Um pouco de reparo no próprio ciclo das Revoluções Industriais para perceber que elas só chegaram até aqui, porque apesar de muita resistência, de muita intransigência, de conflitos gravíssimos, direitos a priori negados aos cidadãos trabalhadores tiveram que ser legalizados e institucionalizados, para minimizar os prejuízos e os retrocessos.

Por isso, eu adoro essa frase da cientista Marie Curie, “Nada na vida é para ser temido, apenas sim para ser entendido”. Que bom que as notícias estejam nos veículos de informação e comunicação. Que bom que as verdades e as tolices estejam pelos nossos caminhos. Porque, dessa forma, tomamos nas mãos a nossa responsabilidade de exercitar a cidadania. De ler com atenção cada linha. De extrair com personalidade e propriedade cada entrelinha. De analisar, segundo a nossa própria cabeça, cada ideia ali presente. Porque é dessa maneira que o entendimento, o conhecimento, pessoal e intransferível, é aceso dentro de nós. Afinal, como escreveu Louisa May Alcott, “Não tenho medo de tempestades, pois estou aprendendo a navegar meu barco”.

domingo, 22 de maio de 2022

Vírus. Cada vez mais próximos das pandemias...


Vírus. Cada vez mais próximos das pandemias...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É espantoso perceber como, cada vez mais, o (a) brasileiro (a) se rende a uma seletivização arbitrária e estúpida dos acontecimentos da vida, a tal ponto que aquilo o que realmente importa acaba ficando de lado, à margem das prioridades.

Dizia o Prêmio Nobel de Fisiologia (ou Medicina) de 1958, Joshua Lederberg, que “A única maior ameaça ao contínuo domínio do homem no planeta é o vírus” 1. Mas, parece que a humanidade não levou muito a sério esse alerta! Talvez, porque o tamanho dos vírus os torne insignificantes demais para os seres humanos. Talvez, porque haja uma exacerbada confiança no desenvolvimento científico e tecnológico no campo da saúde. Talvez, por puro desconhecimento sobre o assunto. ... Não importam as razões.

O que importa é que a negligência e o descaso humano estão colocando a nossa espécie cada vez mais vulnerabilizada em relação aos vírus. Não apenas em relação aqueles, os quais já adquirimos algum nível de conhecimento a respeito; mas, em relação aqueles que emergem como a mais intrigante surpresa.

Acontece que há um engano profundo em pensar que a discussão sobre os vírus orbita somente o campo da vida e da morte. Na verdade, ela vai muito além. Aliás, a pandemia do Sars-Cov-2 e suas variantes, ainda em curso, nos deu uma perspectiva interessantíssima a esse respeito. Esse, até então, desconhecido agente viral, fez o mundo literalmente parar e se reorganizar para uma adaptação a novos modos, comportamentos, crenças e valores.

Diante dos estragos avassaladores promovidos pelo Sars-Cov-2 (e suas variantes), a raça humana foi obrigada a rever seus conceitos e paradigmas. As suas vontades, os seus quereres, os seus poderes e pseudopoderes, tudo ficou em último plano. A batuta da vida estava nas mãos de um agente invisível e cuja imprevisibilidade não se poderia dimensionar.

Pois é, queiram ou não admitir, a destruição viral começa pela destruição das certezas e convicções, as quais o ser humano acredita ter e as exibe com certa autoridade por aí. Os vírus nos colocam de joelhos! Diante deles os nossos corpos, por mais bem adaptados, nutridos e fortes, podem não reagir e responder a contento das expectativas hipotéticas.  

Doenças virais são sim, um flerte direto com a morte. Algumas mais. Outras menos. Mas a possibilidade de isso vir a se concretizar é real. Porque os sintomas evoluem dentro de um nível de especificidade corpórea imprevisível, o que pode se arrastar pelo tempo e influenciar uma situação de emergência e contaminação biológica coletiva. A gripe, por exemplo, causada por uma certa cepa viral exige um esforço biológico diferente daquele que seria por outra. Daí a sobrevivência diante dela ser uma loteria.

É claro que o avanço científico e tecnológico no campo das ciências médicas é uma maravilha! Mas, isso não quer dizer que as soluções possam surgir da noite para o dia, em quantidade suficiente para atender a todas as demandas, simultaneamente, ao redor do planeta e em custos acessíveis a toda a população. Por mais empenho e esforço que seja gasto nesse sentido. De modo que até que isso aconteça, a vida humana está em franca posição de fragilidade, de risco iminente.

Por isso, chama bastante atenção, o fato de as pessoas não especularem mais acerca do porquê os vírus estarem incidindo com tanta fúria sobre a humanidade, nesse recorte mais recente da contemporaneidade. Sim, muitas grandes epidemias estão registradas no curso da história. Acontece que, de algumas décadas para cá, estamos imersos em uma ocorrência simultânea de viroses. Febre Amarela. Dengue. Zika, Chikungunya. H1N1. H3N2. Sars-Cov-2. Sarampo. ... Todas com um rastro de variantes para tornar, ainda mais, complexa a situação.

Seria, então, obra do acaso? Coincidência? Não. O adoecimento populacional, em uma grande maioria das patologias, se dá simplesmente pelo estreitamento das conjunturas sociais que nos aproximam dos agentes patológicos. Portanto, é impossível dissociar ou negar as ações antrópicas como agentes promotores dos mais simples aos mais complexos infortúnios de saúde.

No caso das viroses em que os reservatórios virais se concentram em espécies animais, insetos, e, às vezes, no próprio solo, ar e água, quando o ser humano interfere no equilíbrio ecossistêmico da Natureza, ele automaticamente promove uma aproximação com esses agentes infectocontagiosos. Situações como queimadas, desmatamento, poluição, urbanização, contribuem sim, para o surgimento e/ou recrudescimento das viroses.

Nesse sentido, não se pode esquecer do aparecimento de um movimento antivacinas para doenças as quais a ciência e a tecnologia já conseguiram produzir imunizantes. Isso, também, se refere a uma ação antrópica. Tratam-se de pessoas imbuídas em desqualificar o desenvolvimento científico e tecnológico, a partir do questionamento infundado quanto à segurança e à eficácia das vacinas, colocando em risco a sobrevivência humana.

Entretanto, esse embate está se acirrando. Se de um lado as ações antrópicas se disseminam despreocupadamente por todo o planeta, de outro as viroses vão se sobrepondo na realidade cotidiana e construído cinturões de alerta e preocupação.

Em relação ao Brasil, por exemplo, houve um aumento de 113,7% nos casos de Dengue, no primeiro quadrimestre desse ano 2. No entanto, o surto de hepatite aguda infantil, que já registra casos em cerca de 20 países 3, também é investigado no território nacional 4.  Então, só aqui, em território nacional, já temos COVID-19, Dengue, Sarampo e, quem sabe, hepatite aguda infantil.

Assim, não bastasse esse cenário preocupante, eis que um vírus semelhante ao causador da Varíola em seres humanos decidiu aparecer no cenário mundial, justamente nesse momento. Do gênero Orthopoxvirus, o vírus da varíola dos macacos 5 já tem 80 casos confirmados em 12 países – Reino Unido, Espanha, Portugal, Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália, Suécia, EUA, Canadá e Austrália 6.

Embora, haja informações de que ele tenha um comportamento menos devastador que o da Varíola (humana), o qual matou mais de 300 milhões de pessoas, somente no século XX, não dá para relaxar! Vírus são mutantes. Vírus obedecem às suas necessidades de preservação. Daí a existência de cepas mais ou menos contagiosas, com efeitos mais ou menos severos, com mais ou menos risco de letalidade.

Então, fiquemos a conferir o que nos reserva esse emaranhado do imponderável, do insólito. É hora de baixar a bola das certezas absolutas, das convicções inabaláveis, das negligências gratuitas, dos escárnios inapropriados. O mundo está girando à velocidade de uma centrífuga laboratorial. Separando cada componente desse gigantesco celeiro de joios e trigos de maneira precisa.

Então, cuidado! Muito cuidado com seus julgamentos baseados por espumas, por aparências, por superficialidades. O tempo presente pede atenção, pede reflexão, pede profundidade, pois os piores inimigos estão fora do nosso raio de visão; mas, estão circulando entre nós. E será que estamos aptos para quantas pandemias mais? Lembre-se, nenhum vírus da ignorância, da estupidez ou da mediocridade é páreo para os adenovírus, os retrovírus e os arbovírus.



1 The single biggest threat to man’s continued dominance on the planet is the vírus. Joshua Lederberg, Ph.D. – Nobel laureate.

sábado, 21 de maio de 2022

O frio, a desigualdade e a inação...


O frio, a desigualdade e a inação...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mudanças climáticas em curso, não é de se espantar, então, que as baixíssimas temperaturas tenham chegado ao Brasil antes do próprio inverno. Mas, independentemente do que registraram os termômetros nos últimos dias, lidar com a queda de temperatura sempre foi um desafio para o brasileiro.

Ora, não é pelo fato de o país ser celebrado como “tropical e abençoado por Deus” que tudo está resolvido na seara climática. Não, não é bem assim! Certas regiões e localidades nacionais sempre foram alvo das extremas temperaturas, ultrapassando a escala negativa com certa facilidade. As serras gaúchas e catarinenses, Campos do Jordão, Monte Verde, e tantas outras, são comumente frequentadas por turistas por conta, exatamente, dessa disponibilidade às baixas temperaturas.

No entanto, o que intriga é o fato de que todo outono/inverno brasileiro chega sempre envolto pelas lamúrias e reclamações a respeito do frio. Sei que há os que gostam; mas, há, também, os que odeiam pelas mais diferentes razões. De modo que, apesar da corrida pelo reforço ao vestuário apropriado mostrar a disposição daqueles que pretendem minimizar ao máximo os efeitos do rigor térmico, isso diz pouco sobre a questão em si.

Vamos e convenhamos que as colchas, os cobertores, os edredons, as blusas, os casacos, as meias, as luvas, as pantufas e afins ganham destaque nas vitrines e na predileção dos cidadãos; mas, são instrumentos insuficientes para apaziguar e contornar efetivamente o desconforto térmico experimentado. De certo modo, eles são o nosso paliativo para os dias frios, assim como, a sopa, o caldo, o chocolate quente, o vinho quente, as fondues, e tantos outros alimentos ricos em energia para nos aquecer.

Acontece que do ponto de vista arquitetônico habitacional, nossas edificações não são pensadas para nos garantir a proteção e o conforto térmico necessários; especialmente, diante de mudanças climáticas tão extremas. A grande verdade que envolve essa questão é que subtraindo uma ínfima parcela capaz de viver em um lugar pensado e planejado para o seu bem-estar, pois dispõe de recursos suficientes para custear essa ideia, a imensa maioria da população vive onde pode. Sem regalias. Sem privilégios.

Aliás, cada dia mais o contingente de pessoas sem-teto no país se amplia pela força devastadora do desemprego, que os empurra para a miséria, para a fome, para o desalento das favelas, das ocupações, das ruas, das praças, das esquinas, para viverem sob o manto remendado do desalento social 1.

Veja o que escreveu o veículo de comunicação Deutsche Welle (DW), “De acordo com pesquisas acadêmicas recentes e informações do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), as mulheres, e consequentemente crianças, passaram a ser um contingente bastante expressivo dessa população. O único dado oficial mais recente, mas que ainda trata de uma projeção, foi divulgado em março de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): 221.869 brasileiros viviam nas ruas naquele ano, o equivalente a cerca de 0,1% da população total do país. Para o MNPR, cerca de meio milhão de brasileiros podem estar morando nas ruas hoje, especialmente por falta de condições financeiras para pagar moradia” 2.

Portanto, se as pessoas estão sendo vulnerabilizadas pelas questões climáticas, a raiz desse problema terrível está na maneira, displicente e negacionista, com a qual uma significativa parcela da população brasileira lida com as questões da desigualdade. Nos permitimos transitar pelos espaços urbanos e urbanizados assistindo a milhares de seres humanos tentando sobreviver dentro de caixas de papelão, ou de barracas improvisadas com materiais recicláveis, ou sobre o próprio chão frio e duro, como se isso fosse normal, natural, trivial do nosso cotidiano.

E não é só nos dias frios que isso deveria nos causar qualquer desconforto ou constrangimento. Deveria ser sempre. Nenhum ser humano deveria jamais, em nenhum tempo, ser exposto a tamanha indignidade e sofrimento. Ali, naquela situação, o frio pode sim matar pela hipotermia. Mas, ele também agrava as doenças adquiridas no contexto das ruas, tais como a pneumonia, a tuberculose, a leptospirose, a hepatite, a AIDS, as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) em geral e a desnutrição, em virtude da aceleração do processo de declínio da imunidade orgânica pelo excesso de carências e insuficiências presentes no seu cotidiano.

Mas, se até agora não conseguimos ao menos pensar nos prejuízos que o modelo habitacional errático vigente no país, nos causa em situações como essa, de uma baixa extrema de temperatura, imagina, então, conseguir expandir esse olhar para aqueles que nem ao menos dispõem de uma habitação? Isso significa que sequer paramos para pensar nos problemas que estão bem diante do nosso nariz, para nos mantermos imersos em nossos casulos de alienação e não precisarmos de despender energias tomando uma atitude, agindo como se deve.

Vejam bem, nem o frio nos demove desse absurdo social! De modo que entra ano e sai ano e continuamos repetindo a sina das campanhas do agasalho, dos sopões, dos cafés reforçados, que são medidas assistenciais necessárias; mas, imediatistas. Quando, de fato, deveríamos estar cobrando das autoridades competentes uma solução rápida para esses problemas, o que significa “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, segundo propõe a 11ª meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) 3.

Já temos muitos desafios importantes e cronificados no Brasil para serem enfrentados. Não precisamos fazer do clima um inimigo nacional. Nem em tempos de frio. Nem de calor. Nem de sol. Nem de chuva. ... O que precisamos é parar de reclamar dos acontecimentos e nos posicionarmos de maneira enfática e consistente para resolvê-los ou, ao menos, mitigá-los. Se um sapato lhe aperta os calos você o retira, não é assim? Exercitar a cidadania é isso, é não se permitir arrastar os sofrimentos cotidianos sem tomar quaisquer atitudes a respeito. A inação os aprofunda, os cronifica, os faz parecer cada vez mais insolúveis. E como escreveu José Saramago, “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”.