No
fim das contas é ódio em estado bruto!
Por
Alessandra Leles Rocha
Não. Não é tão diferente assim! A
operação policial que vitimou mais de 25 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de
Janeiro1, e o ataque a uma escola no Texas, EUA 2, no mesmo dia, tratam da violência armada
que assombra o mundo.
Vamos e convenhamos que há tempos
as armas perderam o sentido de uma eventual proteção para protagonizar o ódio
que pulsa na sociedade contemporânea.
Queiram ou não admitir, a paranoia
coletiva que enxerga inimigos por todos os lados, que cria teorias da
conspiração absurdas 3 em torno
da convivência e da coexistência humana plural, é que tem conduzido o extermínio
da própria espécie humana.
Pois é, de um jeito ou de outro,
aqui ou ali, essa violência que age a favor da dizimação, desse ou daquele grupo
social, traz consigo o ranço colonial de outros tempos.
Aqui no Brasil, por exemplo, as incursões
policiais não me permitem deixar de estabelecer uma conexão com os capitães-do-mato,
serviçais de fazendas e feitorias imbuídos de capturar e punir os escravos
fugidos e evitar a formação dos quilombos.
Alguns poucos eram brancos, a
maioria eram negros libertos que haviam ganho a confiança de seus senhores e
elevados a tal condição de trabalho.
Mas, tal qual na época colonial,
o índice de sucesso das empreitadas acabava sendo menor do que a expectativa. De
modo que as perdas humanas sempre deram conta do fracasso social, na medida da
total inabilidade e incompetência para compreender que a vigilância e a punição
não traduzem quaisquer sinais de solução de problemas e conflitos. São artifícios
que tendem apenas a mascarar e manter o fomento das crises sociais.
Já nos EUA, além da legitimação e
legalização do uso de armas pela população, desde o seu período colonial, há na
história norte-americana uma resistência nata, dentro do conservadorismo presente
na sua identidade nacional, quanto às minorias.
Daí o bullying ser tão amplamente difundido e praticado desde a infância.
É como se eles vissem nas diferenças uma ameaça iminente à manutenção do
sucesso e da prosperidade da sua nação, para o qual foram designados por Deus, pois
consideram as minorias como grupos de indivíduos inferiores e menos capazes.
Porém, o que antes parecia restrito
ao bullying ganhou proporções de intolerância
e violência ainda maiores. Os chamados “lobos
solitários” começaram a investir contra determinados grupos sociais e
promover ataques avassaladores.
Embora, dentro desses episódios existam
atos responsivos ligados às minorias étnico-religiosas de origem estrangeira, vem
sendo cada vez mais presente o comportamento atribuído como “terrorismo doméstico”, ou seja, crimes praticados
por cidadãos genuinamente norte-americanos.
Em suma, o que se percebe é uma
necessidade altamente exacerbada de eliminar o que parece desconfortar, ou
desalinhar a ordem social preestabelecida historicamente, ou simplesmente
apontar uma incapacidade de resolução racional e dialógica para questões
cotidianas. A violência armada tem um potencial de êxito muito grande, o que
traz a sensação de eficácia imediata.
Além disso, ela cria uma
atmosfera de medo e tensão que retrai a participação e a presença dos alvos
vulnerabilizados, em determinados lugares. É como se essas pessoas fossem lançadas
subliminarmente a uma margem de invisibilização a partir do medo.
Acontece que a violência armada
não é uma resposta de segurança. Muito pelo contrário. Haja vista, por exemplo,
a dizimação colonialista dos espanhóis na América Latina. Os povos originários
não tiveram a menor possibilidade de defesa.
E isso se dá pelo fato de que o ser
humano não abre possibilidade para desconstruir essa “homogeneização social” que habita o seu inconsciente. É tudo ou nada.
E para resolver poupando tempo e dinheiro, ele usa e abusa do arsenal bélico que
dispõe.
Então, fica evidenciado que o
oportunismo que habita a sociedade iria se valer desse culto ao medo. Afinal, não
é um medo comum, qualquer. É o medo de perder a hegemonia, o poder, as
regalias, os privilégios, os controles.
Foi com base nisso que se criou a
indústria armamentista, para resguardar esses interesses e possibilitar
resolver os impasses de uma maneira mais rápida e prática. O que explica as
razões dessa indústria ganhar bilhões produzindo e comercializando artefatos
que não têm por outra finalidade matar.
Ora, há pessoas e governos
interessados exatamente nisso. A sociedade, pelo menos em parte, é conivente com
a violência armada. Em seus cálculos sociais, não se computa o fato de que a
possibilidade de controle desse extermínio não existe e pode ultrapassar as
fronteiras e atingir fora do alvo. A violência armada não é uma violência controlada
ou controlável. Ela é imprevisivelmente letal.
No fundo, seja em que lugar do
planeta for, ela é sim, o marco do fracasso social humano. A indiferença, o
descaso, a negligência, tudo isso aponta para uma verdade que aceita que
pessoas sejam mortas por motivo torpe, cruel, sem direito a defesa.
O pior é que uma imensa maioria
da população não faz sequer uma reflexão, uma análise crítica, uma ponderação a
respeito. Banaliza. Normaliza. Trivializa. Aplaude. E não enxerga que ao fazer
isso, está se referindo também à sua própria vida.
Quando você desconsidera o outro,
menospreza o outro, rejeita o outro, automaticamente você abre espaço para que
ele se manifeste da mesma forma em relação a você. Como escreveu Angie Thomas,
com base na referência da música “T-H-U-G-L-I-F-E”,
do rapper norte-americano Tupac, é simplesmente “O ódio que você semeia” 4.
E esse ódio tende a estabelecer um
ciclo sem fim, porque ele vai se cristalizando no inconsciente coletivo das
populações e impossibilitando a construção de uma relação isenta de estereótipos,
de rótulos, de seletivismos, de revanchismos.
Por isso, a violência armada
demarca o nosso fracasso, na medida em que ele escancara a nossa carência de
habilidade e de competência para tecer um coletivo humano capaz de “assegurar o exercício dos direitos sociais
e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista
e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna
e internacional, com a solução pacifica das controvérsias”, como registra de
maneira tão apropriada a própria Constituição brasileira de 1988.
Portanto, não há diferença entre
o que aconteceu há dois dias, no Brasil e nos EUA. Sabe por quê? Porque vidas
foram perdidas. Famílias foram destroçadas. A orfandade social foi estampada. A
sociedade foi diminuída e desqualificada. O ódio ficou suspenso no ar. ... Afinal,
o diálogo foi interrompido e silenciado, mais uma vez, pelo eco retumbante da ignorância
e da estupidez humana.
1 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/24/moradores-relatam-tiroteio-na-vila-cruzeiro-na-penha.ghtml
2 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/05/25/personalidades-mundiais-se-posicionam-apos-ataque-a-escola-no-texas.ghtml
3 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/05/racista-teoria-da-substituicao-inspirou-massacres-como-o-de-buffalo.shtml
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160110_eua_segregacao_fn
4 O ódio que
você semeia (The Hate U Give) – https://www.record.com.br/produto/o-odio-que-voce-semeia/
O ódio que você semeia / trailer oficial (2018) legendado HD - https://www.youtube.com/watch?v=csp9jnPhYAY