O
frio, a desigualdade e a inação...
Por
Alessandra Leles Rocha
Mudanças climáticas em curso, não
é de se espantar, então, que as baixíssimas temperaturas tenham chegado ao
Brasil antes do próprio inverno. Mas, independentemente do que registraram os termômetros
nos últimos dias, lidar com a queda de temperatura sempre foi um desafio para o
brasileiro.
Ora, não é pelo fato de o país
ser celebrado como “tropical e abençoado
por Deus” que tudo está resolvido na seara climática. Não, não é bem assim!
Certas regiões e localidades nacionais sempre foram alvo das extremas
temperaturas, ultrapassando a escala negativa com certa facilidade. As serras gaúchas
e catarinenses, Campos do Jordão, Monte Verde, e tantas outras, são comumente
frequentadas por turistas por conta, exatamente, dessa disponibilidade às
baixas temperaturas.
No entanto, o que intriga é o
fato de que todo outono/inverno brasileiro chega sempre envolto pelas lamúrias
e reclamações a respeito do frio. Sei que há os que gostam; mas, há, também, os
que odeiam pelas mais diferentes razões. De modo que, apesar da corrida pelo
reforço ao vestuário apropriado mostrar a disposição daqueles que pretendem minimizar
ao máximo os efeitos do rigor térmico, isso diz pouco sobre a questão em si.
Vamos e convenhamos que as colchas,
os cobertores, os edredons, as blusas, os casacos, as meias, as luvas, as pantufas
e afins ganham destaque nas vitrines e na predileção dos cidadãos; mas, são
instrumentos insuficientes para apaziguar e contornar efetivamente o
desconforto térmico experimentado. De certo modo, eles são o nosso paliativo
para os dias frios, assim como, a sopa, o caldo, o chocolate quente, o vinho
quente, as fondues, e tantos outros alimentos ricos em energia para nos
aquecer.
Acontece que do ponto de vista arquitetônico
habitacional, nossas edificações não são pensadas para nos garantir a proteção
e o conforto térmico necessários; especialmente, diante de mudanças climáticas
tão extremas. A grande verdade que envolve essa questão é que subtraindo uma
ínfima parcela capaz de viver em um lugar pensado e planejado para o seu
bem-estar, pois dispõe de recursos suficientes para custear essa ideia, a
imensa maioria da população vive onde pode. Sem regalias. Sem privilégios.
Aliás, cada dia mais o contingente
de pessoas sem-teto no país se amplia pela força devastadora do desemprego, que
os empurra para a miséria, para a fome, para o desalento das favelas, das
ocupações, das ruas, das praças, das esquinas, para viverem sob o manto
remendado do desalento social 1.
Veja o que escreveu o veículo de
comunicação Deutsche Welle (DW), “De
acordo com pesquisas acadêmicas recentes e informações do Movimento Nacional da
População de Rua (MNPR), as mulheres, e consequentemente crianças, passaram a
ser um contingente bastante expressivo dessa população. O único dado oficial
mais recente, mas que ainda trata de uma projeção, foi divulgado em março de
2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): 221.869 brasileiros
viviam nas ruas naquele ano, o equivalente a cerca de 0,1% da população total
do país. Para o MNPR, cerca de meio milhão de brasileiros podem estar morando
nas ruas hoje, especialmente por falta de condições financeiras para pagar
moradia” 2.
Portanto, se as pessoas estão
sendo vulnerabilizadas pelas questões climáticas, a raiz desse problema terrível
está na maneira, displicente e negacionista, com a qual uma significativa
parcela da população brasileira lida com as questões da desigualdade. Nos permitimos
transitar pelos espaços urbanos e urbanizados assistindo a milhares de seres
humanos tentando sobreviver dentro de caixas de papelão, ou de barracas improvisadas
com materiais recicláveis, ou sobre o próprio chão frio e duro, como se isso
fosse normal, natural, trivial do nosso cotidiano.
E não é só nos dias frios que
isso deveria nos causar qualquer desconforto ou constrangimento. Deveria ser
sempre. Nenhum ser humano deveria jamais, em nenhum tempo, ser exposto a
tamanha indignidade e sofrimento. Ali, naquela situação, o frio pode sim matar
pela hipotermia. Mas, ele também agrava as doenças adquiridas no contexto das
ruas, tais como a pneumonia, a tuberculose, a leptospirose, a hepatite, a AIDS,
as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) em geral e a desnutrição, em
virtude da aceleração do processo de declínio da imunidade orgânica pelo
excesso de carências e insuficiências presentes no seu cotidiano.
Mas, se até agora não conseguimos
ao menos pensar nos prejuízos que o modelo habitacional errático vigente no país,
nos causa em situações como essa, de uma baixa extrema de temperatura, imagina,
então, conseguir expandir esse olhar para aqueles que nem ao menos dispõem de
uma habitação? Isso significa que sequer paramos para pensar nos problemas que
estão bem diante do nosso nariz, para nos mantermos imersos em nossos casulos
de alienação e não precisarmos de despender energias tomando uma atitude,
agindo como se deve.
Vejam bem, nem o frio nos demove
desse absurdo social! De modo que entra ano e sai ano e continuamos repetindo a
sina das campanhas do agasalho, dos sopões, dos cafés reforçados, que são
medidas assistenciais necessárias; mas, imediatistas. Quando, de fato, deveríamos
estar cobrando das autoridades competentes uma solução rápida para esses
problemas, o que significa “Tornar as
cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e
sustentáveis”, segundo propõe a 11ª meta dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) 3.
Já temos muitos desafios importantes e cronificados no Brasil para serem enfrentados. Não precisamos fazer do clima um inimigo nacional. Nem em tempos de frio. Nem de calor. Nem de sol. Nem de chuva. ... O que precisamos é parar de reclamar dos acontecimentos e nos posicionarmos de maneira enfática e consistente para resolvê-los ou, ao menos, mitigá-los. Se um sapato lhe aperta os calos você o retira, não é assim? Exercitar a cidadania é isso, é não se permitir arrastar os sofrimentos cotidianos sem tomar quaisquer atitudes a respeito. A inação os aprofunda, os cronifica, os faz parecer cada vez mais insolúveis. E como escreveu José Saramago, “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”.