Tudo
se transforma...
Por
Alessandra Leles Rocha
Assistindo ao
documentário LIXO EXTRAORDINÁRIO , de 2010, não pude deixar de pensar a
respeito de como a humanidade compactua com as perversidades sociais, a fim de
satisfazer o âmago do seu próprio individualismo.
Diante de todos os
avanços da ciência e da tecnologia, inclusive apresentando ao mundo uma dúzia de
possibilidades de vacina para a prevenção do COVID-19, desenvolvidas em menos
de um ano de pesquisa, não percebo esforços significativos e na mesma
velocidade para lidar com as desigualdades que expõem milhares de seres humanos
a condições degradantes e insalubres diariamente.
Creio que a população
brasileira, na sua imensa maioria, não reflete por um minuto sequer a respeito
do próprio lixo que produz. Já entrou no rol dos atos mecânicos e cotidianos da
sociedade o descarte dos resíduos produzidos. O que acontece depois fica sem
pergunta, vagando em um mar de esquecimento profundo.
Uma pena, porque para
algum lugar ele é destinado e, portanto, na geografia das cidades é necessário
dispensar uma área para esse fim. Tarefa complexa na medida da compatibilização
com tantas outras demandas espaciais que os municípios apresentam ano a ano. Não
pode ser área de preservação permanente, não pode estar próximo demais do
perímetro urbano habitado, não pode ter cursos d’água, enfim... de modo que a
escolha se torna sempre difícil e limitada.
Considerando que a
produção de resíduos não é uma questão do crescimento da população por si só,
mas de suas demandas de interesse e consumo, esses espaços precisam de tempos
em tempos serem substituídos por outros, reiniciando o árduo processo de
seleção. Inclusive, é importante salientar que essa vida útil dos aterros é
diretamente impactada, também, pelo fato de uma política pública que não fomenta
repensar, reduzir, recusar, reutilizar e reciclar os materiais. A sociedade simplesmente descarta; coloca em
um saco plástico qualquer os seus resíduos e fim de papo.
Isso significa que
não há uma verdadeira atenção aos desperdícios. As relações de consumo
produzidas pelos seres humanos são, em geral, inadvertidas e irresponsáveis;
como se bastasse apenas ter que considerar a disponibilidade de dinheiro ou não
para adquirir isso ou aquilo. Se há ou não uma necessidade real daquela compra,
ou se os recursos naturais estão sendo exauridos desnecessariamente, ou se aquele
produto não precisaria de tantas embalagens, ou se não há possibilidade de
consumo dentro do prazo de validade, ... nada disso é levado em consideração. Tudo
se resume em comprar e depois descartar.
Uma visão um tanto
quanto insensível; mas, que tende a ser pior quando se alcança a perspectiva
humana que reside no microcosmo do lixo. Por trás dos grandes caminhões que
coletam toneladas e mais toneladas diariamente pelas cidades e as despejam nos
aterros, há uma legião gigantesca de seres humanos que promovem a seleção e a
venda de tudo o que é reciclável nessas montanhas de lixo.
Suprindo, de certa
forma, a ineficiência e insuficiência das políticas públicas, os catadores são
uma classe de trabalhadores oriundos da desigualdade. A margem das
oportunidades sociais, eles são uma parcela de gente sumariamente descartada e
invisibilizada, que sobrevive aos perigos e desafios da vida nos lixões. Eles
criam em meio a total precariedade a sua própria rede de assistência social;
embora, a realidade não lhes permita desfrutar de uma expectativa de vida
normal. No entanto, a sua dignidade humana é tão forte e plena, que constrange
quando comparada a tantos que só fazem produzir lixo por aí.
A questão é que ao
não perceber essas pessoas, a sociedade primeiro aceita e admite que elas
habitem e trabalhem em condições absolutamente insalubres. Expostas a doenças
diversas ao mesmo tempo em que há uma real desassistência médico-hospitalar
para tratá-las. Vulneráveis diante da carência de um sistema de segurança
alimentar e nutricional. Banidas da acessibilidade educacional, cultural,
habitacional e de saneamento básico. De repente, é como se tivessem sido
transformadas em mero produto do lixo, perdendo sua identidade, sua cidadania.
Depois, a sociedade não
contribui de maneira efetiva para que os materiais recicláveis cheguem aos
catadores de maneira limpa e não prensada pelos caminhões de coleta
tradicional. Que tenham galpões próprios e com infraestrutura adequada para a
triagem e venda dos produtos. Não se importa que essas pessoas sejam tratadas
com tanta indiferença e negligência, nem tampouco possam morrer por isso. Basta
imaginar nessa pandemia, quando a higienização das mãos e o uso de máscaras mostrou-se
tão fundamental na prevenção, como foram lançadas a tragicidade essas pessoas.
E quanto mais eu
reflito sobre tudo isso mais tenho a terrível impressão de que o mundo é mesmo
divido entre os que são importantes e os que não são; como se houvesse uma
precificação para a vida humana. No entanto, essa abstenção de consciência e
bom senso não muda o fato de todas as vidas importarem. Na dinâmica do
cotidiano cada um dá a sua contribuição para o desenvolvimento seja apontando
soluções, criando novidades, colocando a mão na massa para valer. Se alguém
para, a roda da vida para.
Por isso, o que o
documentário conseguiu extrair em três anos de vivência no local onde foi
filmado, o Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, RJ, de 2007 a 2009, é que a
perversidade não está nesse microcosmo do lixo, mas na relação do resto da
sociedade com ele. Está na necessidade da desconstrução das narrativas
incorporadas ao inconsciente coletivo de ambos os lados, o caminho para o
resgate da dignidade humana e da cidadania, a fim de promover um
desenvolvimento social equilibrado e produtivo.
Sem imaginar o que
encontraria pela frente, me vi extasiada diante do processo que a arte de Vik Muniz
desencadeou, dando visibilidade as
potencialidades humanas adormecidas pela rudeza das desigualdades. Afinal, havia
sonhos, conhecimentos, esperanças, amores, tristezas, lutas, ... soterrados por
montanhas de lixo despejadas diariamente. O que ele fez foi revolver, catar,
separar e resgatar o que havia de melhor naquelas pessoas. Enquanto lhes trouxe
a consciência sobre seu próprio valor, ensinou ao restante do mundo um caminho
para pensar sobre o significado de tudo isso, sobre o papel da humanidade na
construção de um mundo melhor, mais justo, mais solidário.
Já dizia Antoine
Lavoisier, químico do século XVIII, “Na
natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Olhando para o
documentário e sobre o momento presente que a humanidade atravessa, isso fica
muito claro. Por mais que as forças de resistência sejam muitas, a lição maior é
de que “nada é impossível de mudar. Desconfiai
do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece
habitual. ...não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de
desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de
humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível
de mudar” (Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemão).