terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A vida no mundo dos “pobres meninos ricos”...


A vida no mundo dos “pobres meninos ricos”...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Nem só de realidade extrema e complexa vive a Pandemia. Para muitos, ela tem sido o pretexto perfeito para justificar as ineficiências, as insuficiências e as negligências que se arrastam há séculos no país. Então, foi bastante oportuna a divulgação do resultado do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), no dia de hoje, para desconstruir as narrativas enviesadas e trazer luz e reflexão sobre as mazelas que se arrastam entre nós.

Talvez jamais conseguiremos extirpar as desigualdades do país. Mas, não tentar ao menos mitiga-las é de uma ignorância e inconsequência absurdas. E esse tem sido um dos pilares de sustentação do modelo de governança idealizado pelos atuais gestores públicos, no qual há uma visível desconsideração quanto a se aplicar uma visão holística para as demandas do país.

Lamento, mas não adianta fazer pirraça. O Brasil é pobre. 82% da população se distribui entre as classes C (16%), D (20%) e E (46%). Não que isso seja um retrato do século XXI; mas, algo que persiste secularmente desde o iniciar da história nacional. Desigualdade sempre foi palavra de ordem por aqui, então... Não cabe uma idealização em torno de medidas que só se encaixem ao atendimento dos 18% da população centrados nas classes A e B.

Trazer aos patamares estratosféricos o enriquecimento de uns em detrimento da pobreza extrema e da precarização existencial de milhares, não é nem nunca foi solução. O mundo pós Revolução Industrial vêm percebendo, a olhos vistos, o esfacelamento da sociedade por conta da insustentabilidade das práticas político-econômicas aplicadas. O que de certo modo já leva alguns bilionários, como Bill Gates, a investirem em projetos mundiais de combate as disparidades de distribuição de riqueza.

O mundo desigual não favorece ao comércio e nem a produção. A própria Pandemia mostrou como as restrições de emprego e renda concentraram a aplicação dos recursos disponíveis pela população mais pobre para a compra de alimentos e pagamentos de serviços básicos – água, luz, telefone. Isso significa que a desigualdade social limita a circulação de riquezas e produtos, na medida em que mais da metade da população perde o acesso a diversidade daquilo que é produzido e comercializado no país.   

Em se tratando da análise do IDH, por exemplo, o Brasil retrocedeu 5 posições, ocupando agora a 84ª entre os 189 países avaliados. Como a estatística utilizada se baseia nos dados em relação a expectativa de vida ao nascer, a educação e ao Produto Interno Bruto (PIB) per capita, sabemos que a matemática não errou. Basta olhar ao redor, por atenção aos noticiários, e tudo se confirma com facilidade.

Se por um lado os avanços científicos e tecnológicos trouxeram melhorias para a saúde e bem-estar da população, promovendo uma ampliação, ainda que pequena, na expectativa de vida dos cidadãos; por outro, esse processo não é homogêneo e linear. O cotidiano nos médios e grandes aglomerados urbanos exerce função inibidora nessa expectativa e aponta prejuízos importantes, especialmente para quem vive nas periferias. Estresse, obesidade, hipertensão, distúrbios do sono, ansiedade, ... são algumas das consequências da vida sob a dinâmica do elevado desenvolvimento urbano.

Afinal, são longas distâncias a serem percorridas diariamente em condições inadequadas de transporte e deslocamento. É a precariedade habitacional. É a violência exacerbada sob diferentes formas. É a insuficiência da remuneração para a garantir uma sobrevivência digna. É toda a obstaculização aos direitos humanos fundamentais.

No campo da educação os caminhos, também, não são promissores. Se o analfabetismo apresenta alguma redução, isso se torna pouco relevante se a discussão a respeito se envereda para o letramento. Não basta conhecer os signos, os símbolos, as letras, formar palavras e frases, realizar operações matemáticas básicas; porque, isso é só alfabetização. Possibilitar que as pessoas saibam ler, interpretar, extrair conclusões, manifestar ideias e opiniões, expandir o conhecimento; esse é o resultado do letramento. E o que vemos por aí, são muitos analfabetos funcionais, ou seja, gente alfabetizada, mas não letrada.

E dentre as justificativas para isso, está a constante flutuação das taxas de escolarização. A necessidade de sobrevivência, as impossibilidades de acessibilidade ao ambiente escolar, a violência, são alguns exemplos dos fatores que fazem com que milhares de cidadãos não consigam completar, com o mínimo de qualidade, os ciclos fundamentais e médios da escolarização nacional.

O resultado disso, então, repercute negativamente em um padrão de vida decente, ou seja, em um Produto Interno Bruto per capita (PPC) inadequado a sua dignidade cidadã. Esses indivíduos ficam presos a uma teia de desigualdade que não lhes permite ascender dentro da sociedade; sobretudo, por conta de uma educação muito frágil e precária. De modo que esse grande contingente é comprimido nas vielas da informalidade, para sobreviver. Eles são os operários das multitarefas; aprendem os ofícios segundo as necessidades do momento, ganham muito pouco e não dispõem de uma rede de assistência e proteção social.

Portanto, enquanto a política econômica do governo insistir em se distanciar da realidade social do país e desenvolver um modelo genuinamente excludente e seletivo, o desenvolvimento e o progresso irão patinar, patinar, sem sair do lugar. Porque não basta atender aos interesses minoritários, as regalias de pequenos grupos, quem gira a grande engrenagem econômica do país são aqueles que estão sendo deixados as margens, punidos milhares de vezes por serem quem são. Pobres diabos. Desalentados. Desafortunados. Injustiçados. Porque a vida deles no mundo dos “pobres meninos ricos” espelha o que diz a canção, “... Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém / Aqui embaixo, as leis são diferentes...” 1.