quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

PAZ É AMOR!


PAZ É AMOR!

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Se tem uma ideia em franca propagação que me intriga muito é “armar o cidadão”. Estão fazendo de tudo para facilitar que qualquer um tenha acesso a inúmeras armas e munições. Mas, de quaisquer lados que eu tento pensar a respeito a proposta se esvazia.

Analisando sob a ótica da violência, não é o fato de dispor ou não de armamento a sua razão de ser. Na verdade, esse é um assunto extremamente complexo que perpassa por inúmeras variáveis e conjunturas sociais; sobretudo, das desigualdades. São as desigualdades que abrem as portas para que a violência se instale e promova todo o infortúnio de problemas. Porque ter uma arma não paga as contas no fim do mês, não cura doenças, não abre vagas de trabalho, não disponibiliza vagas em hospitais, enfim...

As desigualdades de certa forma sinalizam para as práticas da violência as oportunidades enviesadas, e cheias de más intenções, de solução para os problemas sociais. É aí que entra a violência como forma de reparação da insuficiência e da ineficiência da gestão pública. No entanto, o resultado disso é que o cidadão acaba sendo punido diversas vezes sem que jamais alcance um novo paradigma para coexistência social. Como se vivesse em eterno fogo cruzado entre as mazelas da desigualdade e a resposta oriunda das práticas da violência.

Por mais que se afirme existirem orientações de uso e restrição para o porte e utilização de armas, no contexto social vigente, elas acabam extrapolando esses tais limites para alcançarem rapidamente as mãos de pessoas despreparadas e perigosas. Eles já estão à margem da legalidade e da justiça, portanto, não é nenhum obstáculo desafiar o sistema, burlar as regras, para conseguir obter as armas que garantirão seus interesses funcionando plenamente.

O simples fato do poder aquisitivo ser um componente para possuir uma arma, posto que os custos envolvidos são altos, já sinaliza para esse segmento da sociedade um alvo potencial para sua ação criminosa; haja vista a quantidade de assaltos e arrastões em condomínios verticais e horizontais de luxo. Mas, eles também conseguem se armar via contrabando. O que significa que a criminalidade brasileira já mostrou para quem quiser ver o quanto é organizada e não teme fazer do seu embate com a justiça um desafio constante.

De modo que estamos sendo colocados cada dia mais na posição de reféns do medo. Não há valentia que resista ao espírito despojado daquele que diz “não ter nada a perder”. Nessa guerra, meus caros, alguém vai morrer. Provavelmente aquele que foi pego de surpresa, que não tem prática em conflito, que está em posição de desvantagem. E aí fica a pergunta, adiantou ter uma arma?

Quantas famílias já foram destroçadas pela violência de uma arma de fogo. Brincadeiras que acabaram na tragicidade de uma morte precoce. Feminicídio. Desequilíbrios mentais que desencadearam massacres coletivos. Suicídios. ... Milhões de assassinatos que não podem ser reparados nem revertidos. Cicatrizes eternas que não há como serem curadas. Pilhas de investigações e de processos judiciais que se avolumam e se arrastam pelos tribunais do país.

Afinal de contas, armar a sociedade não é fazer justiça. É tão estranho pensar que um país que não dispõe na sua legislação a pena capital favoreça abertamente as armas, vulnerabilizando a existência do cidadão e promovendo o inchaço demasiado de um sistema prisional já colapsado. Questão, por sinal importante, no que diz respeito a retroalimentação da violência; na medida em que, as prisões nacionais, em sua grande maioria, são incapazes de promover a recuperação cidadã de seus apenados.

Há 40 anos, completados ontem, John Lennon foi assassinado quando saía do Edifício Dakota, em Nova Iorque, por um fã. Justamente ele que um dia afirmou: “Vivemos num mundo onde temos que nos esconder para fazer amor, enquanto a violência é praticada em plena luz do dia”. Nos EUA a legislação sobre armas deriva das suas tradições históricas e, portanto, tornou-se ineficiente para a realidade contemporânea do país. Por isso, pessoas são mortas a tiros com uma facilidade estupenda. Vidas são ceifadas; assim como, talentos, ideias, sonhos, amores, ...

Armar o cidadão é, portanto, intrigante. Segundo manifesta o Dalai Lama, “Violência não é um sinal de força, a violência é um sinal de desespero e fraqueza”. Talvez, mais do que isso, uma incapacidade dialógica e de coexistência humana profunda. Há um visível desconforto em reconhecer a legitimidade da presença do outro, de modo que tudo se transforma em pretexto, em disputa, em agressividade, ... em violência. E assim, as bolhas sociais vão se digladiando, se hostilizando, se rivalizando, ... se exterminando. Até que um dia a sociedade consiga enxergar que “Toda reforma imposta pela violência não corrigirá em nada o mal: o bem não necessita da violência” (Liev Tolstói – escritor russo). Paz é amor!