sábado, 8 de maio de 2021

Os pesos e as medidas da violência humana


Os pesos e as medidas da violência humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dada a gravidade do que representou a chacina na comunidade do Jacarezinho, zona norte, do Rio de Janeiro, as discussões e reflexões prosseguem ativas na sociedade brasileira. No entanto, como já escrevi anteriormente, é preciso transcender a violência em si e buscar as entrelinhas dessa barbárie para que transformações possam de fato ocorrer. Daí a importância de entender a dinâmica que se estabelece em relação ao papel da polícia, em casos como este.

O direito à segurança é um direito constitucional e as polícias são a representação do Estado nessa tarefa. Eles estão na incumbência da ação prática de controle e manutenção da ordem. O que, quase ninguém, se pergunta é se essas pessoas estão efetivamente preparadas para o exercício dessa função. Se elas dispõem de todo o aparato necessário para a boa realização do seu trabalho. E o que se sabe, há tempos nesse país, é que não são e, nem tampouco, estão.

As justificativas sempre se pautam em uma carência crônica de recursos financeiros, em razão dos constantes cortes de verbas para o setor; como, se a segurança não fosse, portanto, um direito prioritário da população.

Acontece que as justificativas não estancam os problemas. A começar pela fragilidade e inconsistência nos protocolos e na condução da formação continuada desses profissionais.

Os servidores públicos que atuam na área de segurança, sobretudo os que estão na linha de frente, são lançados as arenas de conflitos urbanos em condições de profunda precariedade que se iniciam no próprio processo de formação policial.

O que favorece a uma visível flexibilização das condutas operacionais que acabam criando uma brutalização na prestação da segurança pública, o que, de algum modo, trazem à memória dos tempos dos capitães do mato e dos feitores que trabalhavam nas propriedades rurais do Brasil Colônia, vigiando e punindo os escravos. Com a diferença de que estes não corriam tantos riscos como correm os policiais do século XXI, na medida em que o acesso as armas de fogo, por exemplo, são tão comuns aos criminosos.

Além disso, o nível de tensões sociais geradas pelas violências contemporâneas transforma o cenário cotidiano em verdadeiras praças de guerra, cujo arsenal dos bandidos é, na maioria das vezes, superior ao da polícia, causando, portanto, um estrago bem maior. Isso só é possível, porque eles constituíram ao longo dos séculos um poder paralelo organizado e muito bem financiado. 

Então, enquanto faltam armas, munições, coletes à prova de bala, uniformes apropriados, etc.etc.etc. aos policiais, aos criminosos não falta nada. Sem contar que eles conhecem melhor do que ninguém a geografia do lugar. A ausência de urbanização nas comunidades favorece plenamente à criminalidade, que se apropriou da área e vive in loco as mudanças contínuas que acontecem lá. A aparente desorganização geográfica é um trunfo para eles.

De modo que os policiais ao trabalharem com o mínimo do mínimo necessário, sempre, chegam para as incursões em posição de total desvantagem, vulneráveis. Pois é, a polícia serve para proteger a sociedade e ao Estado; mas, quem protege a polícia?   

E por mais que a decisão de se tornarem policiais tenha sido uma escolha voluntária e, até mesmo, em muitos casos, altruísta, não é possível apagar ou desconstruir a verdade dos fatos depois de se deparar com eles todos os dias. A vida sob esse nível de pressão é insustentável. Sem contar que muitos policiais residem próximos ou dentro das próprias comunidades e precisam fazer malabarismos para não serem identificados pelas facções criminosas e mortos fora de combate.

Querendo ou não, a reverberação desses acontecimentos vai desestabilizando o emocional e o psicológico desses profissionais. Ora, eles são humanos. Sentem medo, raiva, indignação, ...  Basta uma fagulha de violência mais exacerbada no seu inconsciente para a “tempestade perfeita” ser formada e ele explodir a sua fúria beligerante. Nesse contexto, eles caem na armadilha ideológica do “matar ou morrer”, sem que haja, na verdade, qualquer glória nesse sentido. Afinal, por trás de qualquer história, de qualquer desvio, de qualquer erro, há um ser humano em ambos os lados.

É muito estranho perceber como a sociedade aceita e naturaliza a violência, começando por estereotipar “mocinhos” e “bandidos”, despojando-os completamente de sua humanidade. A violência não é obra do acaso. A criminalidade não é obra do acaso. Elas surgem porque há espaços abertos pelas desigualdades para prosperarem. E não é só uma questão de os abrir; mas, de reafirmá-los a cada instante por meio de uma inação, de um desinteresse total em alterar o curso da história do país.

Então, de repente, quando a situação explode e se torna insustentável, a sociedade clama e exige que medidas sejam tomadas sem, necessariamente, propor mitigar ou, mesmo, por fim as fraturas sociais seculares. De modo que o ciclo começa tudo de novo e o país não sai do lugar, enquanto sociedade. No fundo, é como escreveu George Bernard Shaw, “Quando um homem deseja matar um tigre, chama isso desporto; quando um tigre deseja matar um homem, este chama a isso de ferocidade”.


sexta-feira, 7 de maio de 2021

A morte por atacado


A morte por atacado

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Mediante uma contemporaneidade que insiste em apresentar os fatos a partir de meros recortes, cada vez mais as pessoas perdem a noção de que a vida é um fluxo dinâmico processual e não, o resultado de uma geração espontânea.

De modo que as análises, de tudo o que acontece no cotidiano, acabam enviesadas e sem a devida profundidade. O que, por consequência, estabelece uma impossibilidade de resolução efetiva dos problemas, criando um ciclo de paliativos que amplificam os prejuízos de maneira bastante consistente.

É justamente isso o que está impregnado nas entrelinhas da chacina que ocorreu, ontem, na comunidade do Jacarezinho, na zona norte, do Rio de Janeiro, em que foram mortas 25 pessoas. A banalização da violência cria uma barreira que impede a sociedade de olhar além da tragicidade factual, limitando as discussões como se pudessem traduzir apenas a visibilidade de alguns pontos. Ora, mas não é só a violência pela violência. É muito mais.   

Tem ficado cada vez mais escancarada a resistência, de uma parte dos brasileiros, em relação as reflexões em torno das desigualdades, como se quisessem manter esse assunto sob o imenso tapete da história. Mas, não dá. Porque são elas, as desigualdades, que definiram os caminhos do país e persistem reverberando toda a sua dificuldade de superação de conflitos a fim de consolidar, efetivamente, o seu desenvolvimento dentro e fora de suas fronteiras.

É aí que a história começa. A existência das desigualdades sociais, portanto, representa a chancela dos governos quanto à dicotomia regalias/privilégios e desassistência. O desinteresse institucional, o qual levou ao surgimento das favelas, atualmente denominadas comunidades, talvez, permanecesse na sua gênese natural se não tivesse sido confrontado pelo surgimento dos poderes paralelos.

Diante dessa conjuntura, o Estado é instigado a tomar providências, ou seja, assumir o seu papel institucional, conforme determina a Constituição. Mas, como ele não tem nenhuma pretensão de realizar uma gestão pública inclusiva e capaz de mitigar as desigualdades, os recursos e estratégias empregadas, no combate as ações dos poderes paralelos, são insuficientes e mal planejadas.

De certo modo, enquanto os poderes paralelos estão intervindo nas comunidades é como se o Estado não precisasse chamar para si quaisquer responsabilidades. Assim, vez por outra, o governo faz incursões no local para fornecer algum tipo de resposta institucional, que possa criar a sensação de que o Estado não abandonou por completo aquela parcela da população e está zelando pela segurança daqueles que não vivem nas comunidades.

Porém, quanto mais o tempo passa sem a intervenção governamental nesse processo, mais ele se agrava e cronifica as práxis perversas que tendem a consumir os direitos humanos e fundamentais dos desassistidos. Sendo assim, onde o Estado se omite e negligencia as demandas sociais, ele expande o flanco para a inserção e atuação de organismos capazes de atuar como um poder paralelo.

Isso significa que a população passa a ser oprimida e controlada por duas frentes de poder, ou seja, uma institucionalizada e outra legitimada pela inação governamental; sendo que, ambas as frentes, tendem a disputar entre si um determinado território. O que faz com que a população fique constantemente sob a ameaça do fogo cruzado desses conflitos.

Sendo assim, a cada chacina que acontece os poderes trocam acusações e responsabilidades entre si. Isso explica, também, porque esses crimes ganham repercussão, até internacional; mas, não têm uma apuração criteriosa dentro dos parâmetros da lei, como deveria ser.

No fim, as chacinas acabam sepultadas na memória das famílias, amigos, conhecidos e desconhecidos que tomaram ciência do ocorrido. O que não deixa de apontar como as desigualdades e as violências têm um potencial infinito de reproduzir a morte de um ser humano infinitas vezes.

Por isso é tão importante romper com a superficialização dos fatos. Parar de ler as informações pelas manchetes e começar a se inteirar, mais profundamente, a respeito. A continuar como está, a chacina do Jacarezinho não vai ser a última; haverá sempre outra e outra ... Afinal, as desigualdades no país galopam apressadas. O empobrecimento e o achatamento das classes sociais estão empurrando legiões inteiras para as comunidades, expondo, portanto, mais e mais pessoas aos confrontos.

Se por um lado o poder institucionalizado vê nessa realidade a desobrigação de fazer por essas pessoas, minimizando seus gastos com aqueles que considera desimportantes socialmente; por outro, ele perde na arrecadação de impostos, na oferta de mão de obra, no aquecimento do consumo, ...  Prejuízos que, de algum modo, também, irão repercutir sobre os poderes paralelos.

Pensemos sobre tudo isso, então, antes de nos atrevermos a apontar e nos indignar com as guerras e conflitos alheios. Sem nos darmos conta, nossa desumanidade não perde em nada para o que acontece além de nossas fronteiras. A morte, a crueldade, a indigência, aqui é no atacado. Se você, ainda, não entendeu, de maneiras distintas estamos ficando sem ar ... Não podemos respirar. Não podemos ... Não ...


quinta-feira, 6 de maio de 2021

Não basta somente uma catarse verbalizada


Não basta somente uma catarse verbalizada

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os dois últimos dias me fizeram debruçar sobre a janela da melancolia. O contínuo das perdas é mesmo asfixiante! A frieza dos números não é capaz de trivializar a importância de cada vida, anônima ou famosa; por isso, sentimos, sofremos, nos angustiamos. Até que, de repente, começamos a perceber que não reside no Sars-COV-2 a urgência de contenção e banimento; mas, em um velho hábito brasileiro que é, na verdade, o cerne de nossas mazelas. O universo paralelo.

É só olhar com um pouquinho de atenção para o país, tomando como exemplo a Pandemia da COVID-19, para nos darmos conta que estamos andando em círculos e chegando a lugar nenhum. A doença avança de um lado, seus desdobramentos para outros e nós bradamos ou silenciamos nossa indignação estupefata, como um mantra, ao longo dos dias. Mas nada, absolutamente nada, de concreto, altera o panorama em sua forma e/ou conteúdo.

Por que é assim? Há milhões de respostas plausíveis para dar conta de responder com lucidez a esse fenômeno. No entanto, começo a acreditar com mais convicção de que esteja na habilidade histórico secular brasileira, de driblar as regras do jogo, os caminhos para consolidar seus universos paralelos e garantir o trânsito da vida e de seus interesses, a partir dos seus quereres e vontades.

Ouvindo os primeiros depoimentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), essa semana, essa práxis ficou muita clara e, me fez até recordar, dos tempos em que se falava da existência de um 3º Poder ou Poder Paralelo, na cidade do Rio de Janeiro. Ele era manifesto pelas facções contraventoras e criminosas que direcionavam de maneira subliminar a governança da cidade, segundo seus interesses.

No caso da CPI, esse paralelismo emergiu para dar sustentabilidade as narrativas negocionistas do governo, no contexto da condução gestora da Pandemia. De modo que a sociedade ficou exposta não só a um mundo real e outro virtual; mas, também, a um mundo paralelo, cujo objetivo é manipular os fatos em favor de alguns e em detrimento de outros. Quando um governo decide se balizar por esse mecanismo, ele não está em busca de informações e referências, sobre determinado assunto, já consolidadas e aceitas no contexto coletivo.

Isso significa manter a qualquer custo quaisquer opiniões. O que nos leva a pensar nesse paralelismo como um mecanismo de “policy switch”, ou seja, um giro político. O que nesse contexto significou adotar uma plataforma ideológica que contraria, constantemente, a Constituição e demais arcabouços legais vigentes no país.

Assim, ele descumpre, acintosamente, o seu compromisso constitucional ao buscar um aparato que sustente a sua própria narrativa discursiva, mesmo que em risco de total perda de credibilidade e de eventuais consequências nefastas. É por isso que os dias se sucedem reafirmando a inércia.

Só que ela não é indolor e nem tampouco inativa; na medida em que o fazer e o não fazer são escolhas e trazem suas próprias consequências. A sociedade está sendo submetida a uma exibição constante da tragicidade social, enquanto se resigna a chorar as suas dores e tristezas em uma indignação profundamente contida.

Talvez, mais uma manifestação rançosamente histórica que é a passividade vitimista em esperar por alguém, que tome a dianteira e resolva miraculosamente a situação. Entretanto, enquanto se espera, a situação progride a passos largos nas suas insustentabilidades.

Cada vez mais, vejo muita gente se arvorar como defensor da vida; mas, na prática a convicção não é linear. Então, eu fico me perguntando qual seria essa vida?  Porque na psicologia, na medicina, na religião, na educação e em tantos outros campos do conhecimento, não há distinção, ela é simplesmente entendida como um bem muito valioso e inalienável. O que se subtende que todas as vidas importam.

Portanto, ela não deveria estar, jamais, sob ameaça de ninguém ou de nenhuma situação. Mas está. Rendida pelo medo, pela obviedade do imprevisível, a sociedade conta os giros do relógio como contas de um rosário de sobrevivência. Afinal, ela precisa se apegar em algo para não pagar com a vida o custo desse teatro de horror.   

Sabemos, muito bem, que nos proteger é necessário. Nos cuidar é necessário. Pensar as medidas de prevenção, no sentido coletivo, é necessário. Tomar a vacina corretamente é necessário. Mas, só isso não irá romper o cerco da morte que está se acirrando. Como não basta, somente, uma catarse verbalizada.

Enquanto fazemos tudo isso, as pessoas continuam adoecendo e morrendo. Por mais difícil que seja admitir, estamos diante de uma encruzilhada, à beira de um precipício. Assim, apesar de nos considerarmos aptos e competentes, a conjuntura nos obriga a rever os conceitos, alterar os planos, porque a ineficiência e a insuficiência foram comprovadas, da pior forma, no trato de toda essa situação. O mundo paralelo, na sua ficção delirante, como era de se esperar, fracassou.  

terça-feira, 4 de maio de 2021

Serão anjos ou demônios?!


Serão anjos ou demônios?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é de surpreender que as atuais conjunturas conduzam as pessoas a ficarem com os nervos à flor da pele. Além da Pandemia, a “cereja do bolo” no momento, há milhares de outras questões incomodando e perturbando a paz de muita gente. Mas, apesar disso, é fundamental recobrar o foco e a lucidez e não se deixar consumir pelas avaliações rasas e inoportunas.

E posso dizer, sem errar, que isso aconteceu amiúde no dia de hoje. O primeiro dia de depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada pelo Senado Federal, para apurar os fatos sobre a Pandemia da COVID-19, no país, e, durante todo o dia, cidadãos acompanhavam o depoimento do 1º Ministro da Saúde, nesta gestão, enquanto outros se digladiavam nas arenas tecnológicas do mundo contemporâneo.

Dentro desse contexto, o que mais chamou a atenção foi perceber as distorções presentes nas manifestações virtuais. Os comentários, em geral, davam conta de um desconhecimento razoável sobre política, sobre as CPIs e sobre o país em que vivemos.

Ora, o propósito de uma CPI é investigar e, diante disso, buscam-se as pessoas que melhor possam trazer informações a respeito do objeto da investigação. Pessoas que conhecem o assunto ou que estiveram diretamente ligados a ele, como é o caso do Ministro.

Posso muito bem compreender o nível de indignação e inconformismo que arrebata milhões de brasileiros. Os motivos são muitos e robustos. O problema é que algumas pessoas estavam destilando sua ira, a partir da desqualificação do Ministro, pelo fato de ele ter aceito fazer parte do governo atual.

Então, muita calma nessa hora! Não é isso que está em discussão na CPI e ninguém melhor do que aqueles que estiveram no centro desse poder político para fornecer informações substanciosas e capazes de traduzir, detalhadamente, o que vem acontecendo, nesses mais de 12 meses, à população.

Em se tratando da política nacional, a história parece clara em afirmar que os interesses caminham sempre léguas adiante do compromisso representativo da República. E no caso de cargos por indicação, como os Ministérios, é óbvio que exista certa afinação ideológico-partidária com o governo vigente. Ninguém é chamado somente pela expertise nesse ou naquele assunto. Governos se sustentam por apoios e precisam de pessoas que trabalhem na defesa de seus interesses.

E por mais absurdo que possa parecer, em pleno século XXI, há muita gente que acredite, mesmo, que aceitar certos convites políticos pode significar um caminho para colocar em prática ações importantes, transformadoras para o país. Entretanto, quando descobrem a “surpresa dentro do ovo” sentem-se frustradas, ou enganadas, ou incapazes de seguir adiante na empreitada.

Foi exatamente isso o que aconteceu. Os dois primeiros ministros que ocuparam a cadeira da Saúde, nesta gestão federal, mostraram que essa tal “afinidade” foi insuficiente para fazê-los prosperar no ofício ministerial.

De repente, se depararam com uma situação que transcendeu essas raias para se tornar uma obediência cega e insensata que lhes custaria o preço da própria identidade e dignidade. Aí, o limite apareceu.

A verdade é que qualquer ser humano está sujeito a cair em uma esparrela dessas. Pode não ser no serviço público; mas, no setor privado, também, acontece. A questão crucial é que, a partir do momento em que a pessoa esteve naquela posição é dela as perspectivas que podem elucidar os fatos a respeito da dinâmica daquele setor.

E é exatamente isso o que a CPI espera obter, porque não se faz uma investigação parlamentar apenas baseada em notícias oriundas dos veículos de comunicação e informarão ou de conversas de corredor.

Portanto, ninguém que vai sentar naquelas cadeiras do Senado, nas próximas semanas, está sendo convidado para receber um par de asas e auréola; muito pelo contrário. Ninguém ali está barganhando; talvez, um pouco de publicidade e visibilidade. Porque, no fundo, todo mundo é um bocadinho vaidoso. Mas, nada comparado aos mecanismos fisiologistas que persistem na história política nacional.

Ali, na CPI da COVID-19, eles não só têm um compromisso jurídico com a verdade; mas, com a opinião pública. Que no caso, em particular, tem como elemento motivador a indigesta consciência de que mais de 400 mil pessoas morreram pela Pandemia e outras milhares podem ter o mesmo fim, se as práxis nefastas empregadas, até o momento, não forem contidas. Então, respira e não pira, tá?! 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

De volta ao Brasil Colônia?!


De volta ao Brasil Colônia?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pelo menos é o que parece traduzir a notícia, de que entidades de produtores rurais, em todo o país, organizam para o próximo dia 15 de maio atos de apoio ao governo federal e ao fim das medidas de isolamento social adotadas por governadores e prefeitos; bem como, contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Cientes de seu papel importante e secular no equilíbrio da balança comercial brasileira, não é de se estranhar tal comportamento.  

A questão é que estamos no século XXI e o Brasil, assim como o resto do mundo, sobrevive a partir da satisfação de outras necessidades que ultrapassam os limites do agronegócio. Sendo assim, a impressão que se tem é de que estão demasiadamente absortos em si mesmos, ao ponto de não conseguirem perceber as implicações de seus posicionamentos político ideológicos para o desenvolvimento do país como um todo.

A certeza de navegar em mares de aparente calmaria levaram o Titanic a afundar. Então, como diz o provérbio, “ao ver a barba do vizinho pegando fogo deve-se colocar a sua de molho”. Ora, o país já convive com o êxodo das multinacionais, em face da instabilidade política, jurídica e do chamado “Custo Brasil”, o qual representa um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que geram obstáculos concretos e negativos ao ambiente de negócios e comprometem a competitividade dos produtos no mercado global e os investimentos estrangeiros em seu território.  

Sem contar, o quanto o governo se mostrou negligente e despreparado para enfrentar as consequências da Pandemia e dar o suporte necessário, o qual seus importantes parceiros comerciais internacionais demandariam no momento. Então, só para citar algumas dessas multinacionais, o Brasil se despediu da Sony, depois de 48 anos na Zona Franca de Manaus. A Ford, a Audi e a Mercedes, no campo da indústria automobilística. E outras, de segmentos variados, como a Nike, Fnac, Walmart, Nikon, Brasil Kirin, Häagen-dasz, Glovo, RR Donnelley, Lush Cosméticos, Kiehl’s e Eli Lilly.

O que significa que essas perdas contribuíram para elevar o número do desemprego no país, que já era bastante expressivo. Os últimos dados divulgados em 30 de abril, dão conta de que entre desempregados e desalentados o país alcança a triste cifra de aproximadamente 20 milhões de seres humanos. E por consequência desse movimento há, também, o acirramento da condição de pobreza.

Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o número de pobres que era de 9,5 milhões de pessoas em agosto de 2020, agora ultrapassa a fronteira dos 27 milhões em fevereiro de 2021. De modo que a chamada “classe média”, que em 2011 representava 54% da população, depois reduziu para 51% em 2020, agora é de 47% em 2021, o mesmo percentual da classe baixa.

E esses são números que impactam diretamente o agronegócio, porque nem só de exportação vivem eles. Quando os mercados se fecham lá fora, por excesso de oferta, melhores condições de comércio, sazonalidade climática etc., ou eles negociam aqui dentro ou perdem seus investimentos bilionários.

Acontece que, diante do quadro atual, a perda do poder aquisitivo pela população impõe uma nova dinâmica de prioridade de produtos. O orçamento das famílias inicia um movimento malabarista para garantir o essencial ou, pelo menos, a cesta básica. Afinal, não se pode esquecer que a elite brasileira só representa 6% da pirâmide social.  

De modo que, não me parece possível, o setor do agronegócio ser capaz de resolver sozinho essas questões; nem tampouco, encontrar motivos razoáveis para, diante delas, ainda, ser capaz de apoiar o governo e propor insurgir contra o STF e quaisquer medidas que possam salvar a vida de milhões de cidadãos brasileiros.

Isso me parece muita presunção ou apego exacerbado sobre um tempo em que o apogeu do país estava pautado no setor primário, ou seja, na extração de matérias-primas naturais e minerais. Entretanto, aquele Brasil da “Casa Grande e Senzala” original ficou nas páginas da história; muito embora, os desdobramentos e consequências sociais nefastas desse período reverberem por outras formas e conteúdos contextualizados a contemporaneidade.

Portanto, só posso dizer que é triste, muito triste, saber que em plena Pandemia e frente a tantos desafios socioeconômicos a serem enfrentados, o Brasil se permita fragmentar, polarizar, ideologizar, para, no fim das contas, negociar em mercado de escambo com vidas humanas. Vidas, cujas gerações seculares, permitiram que o país caminhasse sobre as vias urbanizadas e industrializadas sopradas pelos ventos da Modernidade e que fizeram com que ele usufruísse, ainda que a sombra dos grandes, as novidades do mundo.  

Mas isso, infelizmente, parece ser mesmo Brasil! Quando encontramos em sua história, em pleno século XIX, palavras como estas, do jornalista e escritor Euclides da Cunha, “Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! [...] É asfixiante! A atmosfera moral é magnifica para batráquios. Mas apaga o homem. [...]” 1. Porque elas nos dão a devida dimensão de como este é um país desvirtuado da lógica, do bom senso e do respeito pela ação malévola da cobiça e da vaidade.       


domingo, 2 de maio de 2021

Uma silenciosa narrativa estridente...


Uma silenciosa narrativa estridente...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mais de 400 mil mortos não é um número inexpressivo, para que alguém possa voluntariamente desconsiderá-lo ou menosprezá-lo. No entanto, é exatamente isso o que está acontecendo no Brasil. A Pandemia do Sars-COV-2 escancarou um fenômeno comportamental assustador, a indiferença. Em nome da satisfação pessoal de seus interesses e desejos, pessoas estão se posicionando contra a vida.

Ainda que o ser humano possa fazer escolhas, há questões que não cabem, do ponto de vista ético e moral, mais do que uma opção. E viver é uma delas, porque nada existe ou faz sentido, nos campos subjetivos e materiais, a não ser que a pessoa esteja viva. A crença de que bens e propriedades deveriam ser enterrados com seus donos mostrou-se ineficaz há tempos.

Entretanto, o que se observa entre alguns membros da população é uma contestação radical ao óbvio. Querem, a todo custo, fazer prevalecer os seus pontos de vista, sob argumentos inconsistentes e profundamente questionáveis. E para isso se valem de estratégias que visam polarizar e desagregar a coletividade, a fim de torná-la vulnerável as suas investidas de poder e controle.

A proposta das Fake News, por exemplo, é desacreditar a verdade dos fatos. Na medida em que fomentam trilhas de especulação e desconfiança entre a população, elas passam a transitar em círculos e deixam de pensar e refletir, mais profundamente, a respeito do que acontece ao seu redor. De modo que elas tendem a se deixar levar por um consenso majoritário de manifestações rasas que visa manipular as consciências e construir diques de obediência insana contra a verdade.

Da mesma maneira, os discursos de ódio e de medo buscam exercer influências capazes de fragilizar a robustez das opiniões individuais. São narrativas que colocam uns contra os outros a partir de ideias banais, somente para entretê-los e não os deixar recobrar a consciência sobre o que é realmente importante. Eles criam uma teia de alienação contínua tão bem tramada que culmina em uma imobilização paralisante.

E sem perceber, a sociedade está no meio de uma guerra pesada, cuja única arma é a linguagem. Palavras transformadas em ideias para constituir discursos e narrativas com propósitos fundamentalmente destrutivos. O objetivo desse processo é desconstruir as práxis já consolidadas para edificar outras, ou seja, aquelas capazes de atender aos interesses dos novos aspirantes ao poder.  

Quem assistiu ao filme “V de Vingança” (V for Vendetta), de 2006, deve se lembrar da frase, “Por baixo dessa máscara há mais do que carne. Atrás dessa máscara há uma ideia. E ideias são à prova de bala”. Um olhar mais atento sobre a história do mundo para entender que é realmente assim. Para o bem ou para o mal as linguagens é que ditam os rumos da sociedade. Criam ilusões. Criam desavenças. Criam desequilíbrios. Criam grilhões e obstáculos, gerações após gerações. Nas entrelinhas de todos os grandes conflitos, antes que qualquer bomba fosse lançada ou território invadido, lá estavam as linguagens configurando os sentidos humanos.

E o porquê de isso acontecer, num mundo em que a verborragia parece tão naturalizada e intensa, é o fato de que as pessoas falam muito; mas, se abdicam tanto de pensar, sobre o que estão dizendo, como de ouvir e decodificar, o que lhes chega aos ouvidos. Como explica o Dalai Lama, Monge Budista e líder espiritual tibetano, “A arte de escutar é como uma luz que dissipa a escuridão da ignorância. Se você é capaz de manter sua mente constantemente rica através da arte de escutar, não tem o que temer. Esse tipo de riqueza jamais lhe será tomado. Essa é a maior das riquezas”.

Sem contar a leitura, que também é outra carência visível na sociedade contemporânea. As pessoas têm tido cada vez mais preguiça de realizar uma leitura atenta e aprofundada do que lhes chega pelos veículos de comunicação e informação. Justificam tal comportamento pela força da vida acelerada, dos excessos de compromissos e tarefas; mas, no fundo, é só preguiça e negligência com o pensar. Um jeito mais fácil de abdicar das responsabilidades intrínsecas ao cotidiano. Afinal, o saber lhes impõe o fazer, o agir, a respeito.

Assim, “enquanto atos forem usados no lugar do diálogo, palavras sempre terão seu poder”; afinal de contas, tudo o que está acontecendo é porque você “pensa isso mesmo, ou é assim que eles querem que você pense? ” (V de Vingança). Será, que é realmente necessário haver sempre um distanciamento abissal a um denominador comum que possa equilibrar as demandas e os sonhos coletivos?

Talvez, não. Basta decidir entender que sob tais ditames, a vida que conhecemos é só uma vida ameaçada, de diversas formas, por diferentes instrumentos de afronta e violência. Hoje são mais de 400 mil perdidas apenas em decorrência da Pandemia, amanhã poderão ser 500, 600, ... 1 milhão, se o diálogo da lucidez e do respeito não se estabelecer. Porque para a vida só resta um lado, o da sobrevivência.


sábado, 1 de maio de 2021

Reflexões sobre aprender para ser


Reflexões sobre aprender para ser

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Quem já leu o livro Extraordinário (Wonder), ou assistiu ao filme 1homônimo, se defronta com um assunto bastante comentado nos últimos anos, no Brasil, que é o “homeschooling”, ou seja, o ensino doméstico ou domiciliar.

Na história, a personagem Auggie Pullman é um garoto que nasce com a Síndrome de Treacher Collins, uma doença genética caracterizada por deformações craniofaciais e, por essa razão, a família o mantém estudando em casa até o Ensino Fundamental I (Elementary School), a fim de evitar situações de bullying que pudessem afetá-lo.

Então, quando a família decide matriculá-lo em uma escola regular todos os conflitos e dilemas desse processo são apresentados ao público, o que abre uma possibilidade interessantíssima de reflexão. De entender como o modelo de educação pode afetar a vida de diversas formas e gerar desdobramentos, inclusive, impensados.      

No caso da personagem existiam razões bastante consistentes para que os pais optassem temporariamente pelo homeschooling. A mãe se encarregou de ser a professora durante esse período. Criou-se, portanto, uma estrutura para o desenvolvimento das aulas que permitisse uma transposição para o ensino na escola sem maiores impactos acadêmicos.

No entanto, do ponto de vista relacional com o mundo, Auggie havia se mantido em sua própria “bolha” de convivência, com pessoas capazes de aceitá-lo exatamente como ele era, de modo que não estava preparado para enfrentar as hostilidades que residem na convivência social extrafamiliar.

A partir dessas considerações é possível dimensionar, então, as camadas de complexidade que residem na proposta do homeschooling. A primeira delas daria conta de uma impossibilidade de acesso a qualquer aluno. Nem todos os pais se sentem aptos e/ou disponíveis para lecionar aos filhos. Contratar alguém pode representar um custo elevado, que muitas vezes não pode ser contemplado pelo orçamento familiar. Tudo isso significa que o homeschooling tende a reafirmar uma desigualdade educacional.  

Segundo, porque são necessários investimentos para contemplar tanto a estrutura quanto os materiais necessários para o desenvolvimento das aulas. É preciso que o aluno tenha um espaço de ensino-aprendizagem descaracterizado do espaço residencial, para que ele possa construir um sentido de responsabilidade, sem distrações, para construir seus conhecimentos. O momento da aula tem que ser para a aula. O mobiliário tem que ser adequado para essa finalidade. Ele deve contar com os materiais pedagógicos apropriados para a realização das atividades. Enfim...    

Terceiro, porque essa é uma forma de individualização exacerbada de ensino. Todo o plano didático-pedagógico é centrado na figura de um aluno específico. De modo que todas as dúvidas, todos s seus questionamentos, são prontamente respondidos e resolvidos porque ele não precisa aguardar pela satisfação das demandas de outros alunos. A não ser, é claro, quando são gêmeos ou há irmãos de outras séries estudando conjuntamente em homeschooling.

Mesmo assim, neste caso, dada a intimidade familiar existente, há um prejuízo relacional no sentido de que o aluno não aprende a se posicionar frente a alguém totalmente estranho.

O que significa uma impossibilidade de aprender a lidar com conflitos, com interesses diversos, opiniões divergentes, a partir de pontos de vista que foram construídos com base em crenças, valores e princípios de famílias diferentes.

E ninguém passa o resto da vida dentro de sua própria “bolha”. Em algum momento as pessoas são catapultadas para o mundo e o não estar preparado, na medida da experienciação da dinâmica da vida, pode ser mais do que desafiador, pode ser letal.

A inexperiência pode impactar o indivíduo em níveis tão difíceis de mensurar que podem acabar constituindo gatilhos para diversas doenças mentais, como Depressão, Bulimia, Anorexia, Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Que se acentuadas podem sim, levar a quadros suicidas.

Por isso, creditar no homeschooling a solução para todos os problemas e desafios que possam existir na educação convencional vigente, parece um tanto quanto equivocado. Mais do que nunca, é preciso pensar em modelos de educação que permitam ao ser humano consolidar um de seus pilares de sustentação psicoemocional mais importante, que é a alteridade.

Isso significa desenvolver a capacidade de reconhecer a existência de alguém diferente de mim, possibilitando me colocar no lugar desse outro no contexto das infinitas configurações de relações sociais, sempre com consideração, identificação e diálogo. A alteridade ensina, portanto, que não é necessário concordar sempre; mas, é fundamental aceitar as diferenças.

Quando a sociedade começa a buscar subterfúgios para moldar a vida dentro de certas perspectivas que extrapolam a individualidade para se tornarem extremamente individualistas, um sinal de alerta precisa ser aceso. A educação é uma extensão do mundo; mas, não é por isso que se precisa transformá-la em uma arena de conflitos, de ameaças, de violências diversas, como acontece na exacerbação contínua das práticas de bullying escolar.

Por isso, “O saber que não vem da experiência não é realmente saber” (Lev Vygotsky – psicólogo). O modelo de Educação e a proposta de ensino-aprendizagem, sejam eles quais forem, devem estar fundamentados na busca por transcender as possibilidades humanas e sociais do aluno.

Como escreveu Rubem Alves, “Para isso existem escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido”.

Porque, no fim das contas, “Pessoas que sabem soluções já dadas são mendigos permanentes. Pessoas que aprendem a inventar soluções novas são aquelas que abrem portas até então fechadas e descobrem novas trilhas. A questão não é saber uma solução já dada, mas ser capaz de aprender maneiras novas de sobreviver” (Rubem Alves – teólogo, pedagogo, poeta e filósofo brasileiro).