Os
pesos e as medidas da violência humana
Por
Alessandra Leles Rocha
Dada a gravidade do que representou
a chacina na comunidade do Jacarezinho, zona norte, do Rio de Janeiro, as
discussões e reflexões prosseguem ativas na sociedade brasileira. No entanto,
como já escrevi anteriormente, é preciso transcender a violência em si e buscar
as entrelinhas dessa barbárie para que transformações possam de fato ocorrer. Daí
a importância de entender a dinâmica que se estabelece em relação ao papel da
polícia, em casos como este.
O direito à segurança é um
direito constitucional e as polícias são a representação do Estado nessa
tarefa. Eles estão na incumbência da ação prática de controle e manutenção da
ordem. O que, quase ninguém, se pergunta é se essas pessoas estão efetivamente
preparadas para o exercício dessa função. Se elas dispõem de todo o aparato
necessário para a boa realização do seu trabalho. E o que se sabe, há tempos
nesse país, é que não são e, nem tampouco, estão.
As justificativas sempre se
pautam em uma carência crônica de recursos financeiros, em razão dos constantes
cortes de verbas para o setor; como, se a segurança não fosse, portanto, um
direito prioritário da população.
Acontece que as justificativas
não estancam os problemas. A começar pela fragilidade e inconsistência nos
protocolos e na condução da formação continuada desses profissionais.
Os servidores públicos que atuam
na área de segurança, sobretudo os que estão na linha de frente, são lançados
as arenas de conflitos urbanos em condições de profunda precariedade que se
iniciam no próprio processo de formação policial.
O que favorece a uma visível flexibilização
das condutas operacionais que acabam criando uma brutalização na prestação da
segurança pública, o que, de algum modo, trazem à memória dos tempos dos capitães
do mato e dos feitores que trabalhavam nas propriedades rurais do Brasil Colônia,
vigiando e punindo os escravos. Com a diferença de que estes não corriam tantos
riscos como correm os policiais do século XXI, na medida em que o acesso as
armas de fogo, por exemplo, são tão comuns aos criminosos.
Além disso, o nível de tensões
sociais geradas pelas violências contemporâneas transforma o cenário cotidiano
em verdadeiras praças de guerra, cujo arsenal dos bandidos é, na maioria das
vezes, superior ao da polícia, causando, portanto, um estrago bem maior. Isso só
é possível, porque eles constituíram ao longo dos séculos um poder paralelo
organizado e muito bem financiado.
Então, enquanto faltam armas,
munições, coletes à prova de bala, uniformes apropriados, etc.etc.etc. aos
policiais, aos criminosos não falta nada. Sem contar que eles conhecem melhor
do que ninguém a geografia do lugar. A ausência de urbanização nas comunidades favorece
plenamente à criminalidade, que se apropriou da área e vive in loco as mudanças contínuas que acontecem
lá. A aparente desorganização geográfica é um trunfo para eles.
De modo que os policiais ao trabalharem
com o mínimo do mínimo necessário, sempre, chegam para as incursões em posição
de total desvantagem, vulneráveis. Pois é, a polícia serve para proteger a
sociedade e ao Estado; mas, quem protege a polícia?
E por mais que a decisão de se
tornarem policiais tenha sido uma escolha voluntária e, até mesmo, em muitos
casos, altruísta, não é possível apagar ou desconstruir a verdade dos fatos
depois de se deparar com eles todos os dias. A vida sob esse nível de pressão é
insustentável. Sem contar que muitos policiais residem próximos ou dentro das próprias
comunidades e precisam fazer malabarismos para não serem identificados pelas
facções criminosas e mortos fora de combate.
Querendo ou não, a reverberação
desses acontecimentos vai desestabilizando o emocional e o psicológico desses profissionais.
Ora, eles são humanos. Sentem medo, raiva, indignação, ... Basta uma fagulha de violência mais exacerbada
no seu inconsciente para a “tempestade
perfeita” ser formada e ele explodir a sua fúria beligerante. Nesse contexto,
eles caem na armadilha ideológica do “matar
ou morrer”, sem que haja, na verdade, qualquer glória nesse sentido. Afinal,
por trás de qualquer história, de qualquer desvio, de qualquer erro, há um ser
humano em ambos os lados.
É muito estranho perceber como a
sociedade aceita e naturaliza a violência, começando por estereotipar “mocinhos” e “bandidos”, despojando-os completamente de sua humanidade. A violência
não é obra do acaso. A criminalidade não é obra do acaso. Elas surgem porque há
espaços abertos pelas desigualdades para prosperarem. E não é só uma questão de
os abrir; mas, de reafirmá-los a cada instante por meio de uma inação, de um
desinteresse total em alterar o curso da história do país.
Então, de repente, quando a
situação explode e se torna insustentável, a sociedade clama e exige que
medidas sejam tomadas sem, necessariamente, propor mitigar ou, mesmo, por fim
as fraturas sociais seculares. De modo que o ciclo começa tudo de novo e o país
não sai do lugar, enquanto sociedade. No fundo, é como escreveu George Bernard
Shaw, “Quando um homem deseja matar um
tigre, chama isso desporto; quando um tigre deseja matar um homem, este chama a
isso de ferocidade”.