sábado, 8 de maio de 2021

Os pesos e as medidas da violência humana


Os pesos e as medidas da violência humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dada a gravidade do que representou a chacina na comunidade do Jacarezinho, zona norte, do Rio de Janeiro, as discussões e reflexões prosseguem ativas na sociedade brasileira. No entanto, como já escrevi anteriormente, é preciso transcender a violência em si e buscar as entrelinhas dessa barbárie para que transformações possam de fato ocorrer. Daí a importância de entender a dinâmica que se estabelece em relação ao papel da polícia, em casos como este.

O direito à segurança é um direito constitucional e as polícias são a representação do Estado nessa tarefa. Eles estão na incumbência da ação prática de controle e manutenção da ordem. O que, quase ninguém, se pergunta é se essas pessoas estão efetivamente preparadas para o exercício dessa função. Se elas dispõem de todo o aparato necessário para a boa realização do seu trabalho. E o que se sabe, há tempos nesse país, é que não são e, nem tampouco, estão.

As justificativas sempre se pautam em uma carência crônica de recursos financeiros, em razão dos constantes cortes de verbas para o setor; como, se a segurança não fosse, portanto, um direito prioritário da população.

Acontece que as justificativas não estancam os problemas. A começar pela fragilidade e inconsistência nos protocolos e na condução da formação continuada desses profissionais.

Os servidores públicos que atuam na área de segurança, sobretudo os que estão na linha de frente, são lançados as arenas de conflitos urbanos em condições de profunda precariedade que se iniciam no próprio processo de formação policial.

O que favorece a uma visível flexibilização das condutas operacionais que acabam criando uma brutalização na prestação da segurança pública, o que, de algum modo, trazem à memória dos tempos dos capitães do mato e dos feitores que trabalhavam nas propriedades rurais do Brasil Colônia, vigiando e punindo os escravos. Com a diferença de que estes não corriam tantos riscos como correm os policiais do século XXI, na medida em que o acesso as armas de fogo, por exemplo, são tão comuns aos criminosos.

Além disso, o nível de tensões sociais geradas pelas violências contemporâneas transforma o cenário cotidiano em verdadeiras praças de guerra, cujo arsenal dos bandidos é, na maioria das vezes, superior ao da polícia, causando, portanto, um estrago bem maior. Isso só é possível, porque eles constituíram ao longo dos séculos um poder paralelo organizado e muito bem financiado. 

Então, enquanto faltam armas, munições, coletes à prova de bala, uniformes apropriados, etc.etc.etc. aos policiais, aos criminosos não falta nada. Sem contar que eles conhecem melhor do que ninguém a geografia do lugar. A ausência de urbanização nas comunidades favorece plenamente à criminalidade, que se apropriou da área e vive in loco as mudanças contínuas que acontecem lá. A aparente desorganização geográfica é um trunfo para eles.

De modo que os policiais ao trabalharem com o mínimo do mínimo necessário, sempre, chegam para as incursões em posição de total desvantagem, vulneráveis. Pois é, a polícia serve para proteger a sociedade e ao Estado; mas, quem protege a polícia?   

E por mais que a decisão de se tornarem policiais tenha sido uma escolha voluntária e, até mesmo, em muitos casos, altruísta, não é possível apagar ou desconstruir a verdade dos fatos depois de se deparar com eles todos os dias. A vida sob esse nível de pressão é insustentável. Sem contar que muitos policiais residem próximos ou dentro das próprias comunidades e precisam fazer malabarismos para não serem identificados pelas facções criminosas e mortos fora de combate.

Querendo ou não, a reverberação desses acontecimentos vai desestabilizando o emocional e o psicológico desses profissionais. Ora, eles são humanos. Sentem medo, raiva, indignação, ...  Basta uma fagulha de violência mais exacerbada no seu inconsciente para a “tempestade perfeita” ser formada e ele explodir a sua fúria beligerante. Nesse contexto, eles caem na armadilha ideológica do “matar ou morrer”, sem que haja, na verdade, qualquer glória nesse sentido. Afinal, por trás de qualquer história, de qualquer desvio, de qualquer erro, há um ser humano em ambos os lados.

É muito estranho perceber como a sociedade aceita e naturaliza a violência, começando por estereotipar “mocinhos” e “bandidos”, despojando-os completamente de sua humanidade. A violência não é obra do acaso. A criminalidade não é obra do acaso. Elas surgem porque há espaços abertos pelas desigualdades para prosperarem. E não é só uma questão de os abrir; mas, de reafirmá-los a cada instante por meio de uma inação, de um desinteresse total em alterar o curso da história do país.

Então, de repente, quando a situação explode e se torna insustentável, a sociedade clama e exige que medidas sejam tomadas sem, necessariamente, propor mitigar ou, mesmo, por fim as fraturas sociais seculares. De modo que o ciclo começa tudo de novo e o país não sai do lugar, enquanto sociedade. No fundo, é como escreveu George Bernard Shaw, “Quando um homem deseja matar um tigre, chama isso desporto; quando um tigre deseja matar um homem, este chama a isso de ferocidade”.