sexta-feira, 7 de maio de 2021

A morte por atacado


A morte por atacado

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Mediante uma contemporaneidade que insiste em apresentar os fatos a partir de meros recortes, cada vez mais as pessoas perdem a noção de que a vida é um fluxo dinâmico processual e não, o resultado de uma geração espontânea.

De modo que as análises, de tudo o que acontece no cotidiano, acabam enviesadas e sem a devida profundidade. O que, por consequência, estabelece uma impossibilidade de resolução efetiva dos problemas, criando um ciclo de paliativos que amplificam os prejuízos de maneira bastante consistente.

É justamente isso o que está impregnado nas entrelinhas da chacina que ocorreu, ontem, na comunidade do Jacarezinho, na zona norte, do Rio de Janeiro, em que foram mortas 25 pessoas. A banalização da violência cria uma barreira que impede a sociedade de olhar além da tragicidade factual, limitando as discussões como se pudessem traduzir apenas a visibilidade de alguns pontos. Ora, mas não é só a violência pela violência. É muito mais.   

Tem ficado cada vez mais escancarada a resistência, de uma parte dos brasileiros, em relação as reflexões em torno das desigualdades, como se quisessem manter esse assunto sob o imenso tapete da história. Mas, não dá. Porque são elas, as desigualdades, que definiram os caminhos do país e persistem reverberando toda a sua dificuldade de superação de conflitos a fim de consolidar, efetivamente, o seu desenvolvimento dentro e fora de suas fronteiras.

É aí que a história começa. A existência das desigualdades sociais, portanto, representa a chancela dos governos quanto à dicotomia regalias/privilégios e desassistência. O desinteresse institucional, o qual levou ao surgimento das favelas, atualmente denominadas comunidades, talvez, permanecesse na sua gênese natural se não tivesse sido confrontado pelo surgimento dos poderes paralelos.

Diante dessa conjuntura, o Estado é instigado a tomar providências, ou seja, assumir o seu papel institucional, conforme determina a Constituição. Mas, como ele não tem nenhuma pretensão de realizar uma gestão pública inclusiva e capaz de mitigar as desigualdades, os recursos e estratégias empregadas, no combate as ações dos poderes paralelos, são insuficientes e mal planejadas.

De certo modo, enquanto os poderes paralelos estão intervindo nas comunidades é como se o Estado não precisasse chamar para si quaisquer responsabilidades. Assim, vez por outra, o governo faz incursões no local para fornecer algum tipo de resposta institucional, que possa criar a sensação de que o Estado não abandonou por completo aquela parcela da população e está zelando pela segurança daqueles que não vivem nas comunidades.

Porém, quanto mais o tempo passa sem a intervenção governamental nesse processo, mais ele se agrava e cronifica as práxis perversas que tendem a consumir os direitos humanos e fundamentais dos desassistidos. Sendo assim, onde o Estado se omite e negligencia as demandas sociais, ele expande o flanco para a inserção e atuação de organismos capazes de atuar como um poder paralelo.

Isso significa que a população passa a ser oprimida e controlada por duas frentes de poder, ou seja, uma institucionalizada e outra legitimada pela inação governamental; sendo que, ambas as frentes, tendem a disputar entre si um determinado território. O que faz com que a população fique constantemente sob a ameaça do fogo cruzado desses conflitos.

Sendo assim, a cada chacina que acontece os poderes trocam acusações e responsabilidades entre si. Isso explica, também, porque esses crimes ganham repercussão, até internacional; mas, não têm uma apuração criteriosa dentro dos parâmetros da lei, como deveria ser.

No fim, as chacinas acabam sepultadas na memória das famílias, amigos, conhecidos e desconhecidos que tomaram ciência do ocorrido. O que não deixa de apontar como as desigualdades e as violências têm um potencial infinito de reproduzir a morte de um ser humano infinitas vezes.

Por isso é tão importante romper com a superficialização dos fatos. Parar de ler as informações pelas manchetes e começar a se inteirar, mais profundamente, a respeito. A continuar como está, a chacina do Jacarezinho não vai ser a última; haverá sempre outra e outra ... Afinal, as desigualdades no país galopam apressadas. O empobrecimento e o achatamento das classes sociais estão empurrando legiões inteiras para as comunidades, expondo, portanto, mais e mais pessoas aos confrontos.

Se por um lado o poder institucionalizado vê nessa realidade a desobrigação de fazer por essas pessoas, minimizando seus gastos com aqueles que considera desimportantes socialmente; por outro, ele perde na arrecadação de impostos, na oferta de mão de obra, no aquecimento do consumo, ...  Prejuízos que, de algum modo, também, irão repercutir sobre os poderes paralelos.

Pensemos sobre tudo isso, então, antes de nos atrevermos a apontar e nos indignar com as guerras e conflitos alheios. Sem nos darmos conta, nossa desumanidade não perde em nada para o que acontece além de nossas fronteiras. A morte, a crueldade, a indigência, aqui é no atacado. Se você, ainda, não entendeu, de maneiras distintas estamos ficando sem ar ... Não podemos respirar. Não podemos ... Não ...