A
morte por atacado
Por
Alessandra Leles Rocha
Mediante uma contemporaneidade
que insiste em apresentar os fatos a partir de meros recortes, cada vez mais as
pessoas perdem a noção de que a vida é um fluxo dinâmico processual e não, o
resultado de uma geração espontânea.
De modo que as análises, de tudo
o que acontece no cotidiano, acabam enviesadas e sem a devida profundidade. O que,
por consequência, estabelece uma impossibilidade de resolução efetiva dos
problemas, criando um ciclo de paliativos que amplificam os prejuízos de
maneira bastante consistente.
É justamente isso o que está
impregnado nas entrelinhas da chacina que ocorreu, ontem, na comunidade do
Jacarezinho, na zona norte, do Rio de Janeiro, em que foram mortas 25 pessoas. A
banalização da violência cria uma barreira que impede a sociedade de olhar além
da tragicidade factual, limitando as discussões como se pudessem traduzir
apenas a visibilidade de alguns pontos. Ora, mas não é só a violência pela violência.
É muito mais.
Tem ficado cada vez mais
escancarada a resistência, de uma parte dos brasileiros, em relação as reflexões
em torno das desigualdades, como se quisessem manter esse assunto sob o imenso
tapete da história. Mas, não dá. Porque são elas, as desigualdades, que
definiram os caminhos do país e persistem reverberando toda a sua dificuldade
de superação de conflitos a fim de consolidar, efetivamente, o seu desenvolvimento
dentro e fora de suas fronteiras.
É aí que a história começa. A existência
das desigualdades sociais, portanto, representa a chancela dos governos quanto
à dicotomia regalias/privilégios e desassistência. O desinteresse
institucional, o qual levou ao surgimento das favelas, atualmente denominadas
comunidades, talvez, permanecesse na sua gênese natural se não tivesse sido confrontado
pelo surgimento dos poderes paralelos.
Diante dessa conjuntura, o Estado
é instigado a tomar providências, ou seja, assumir o seu papel institucional,
conforme determina a Constituição. Mas, como ele não tem nenhuma pretensão de
realizar uma gestão pública inclusiva e capaz de mitigar as desigualdades, os
recursos e estratégias empregadas, no combate as ações dos poderes paralelos,
são insuficientes e mal planejadas.
De certo modo, enquanto os
poderes paralelos estão intervindo nas comunidades é como se o Estado não
precisasse chamar para si quaisquer responsabilidades. Assim, vez por outra, o
governo faz incursões no local para fornecer algum tipo de resposta institucional,
que possa criar a sensação de que o Estado não abandonou por completo aquela
parcela da população e está zelando pela segurança daqueles que não vivem nas
comunidades.
Porém, quanto mais o tempo passa
sem a intervenção governamental nesse processo, mais ele se agrava e cronifica as
práxis perversas que tendem a consumir os direitos humanos e fundamentais dos
desassistidos. Sendo assim, onde o Estado se omite e negligencia as demandas
sociais, ele expande o flanco para a inserção e atuação de organismos capazes
de atuar como um poder paralelo.
Isso significa que a população passa
a ser oprimida e controlada por duas frentes de poder, ou seja, uma
institucionalizada e outra legitimada pela inação governamental; sendo que, ambas
as frentes, tendem a disputar entre si um determinado território. O que faz com
que a população fique constantemente sob a ameaça do fogo cruzado desses
conflitos.
Sendo assim, a cada chacina que
acontece os poderes trocam acusações e responsabilidades entre si. Isso explica,
também, porque esses crimes ganham repercussão, até internacional; mas, não têm
uma apuração criteriosa dentro dos parâmetros da lei, como deveria ser.
No fim, as chacinas acabam
sepultadas na memória das famílias, amigos, conhecidos e desconhecidos que
tomaram ciência do ocorrido. O que não deixa de apontar como as desigualdades e
as violências têm um potencial infinito de reproduzir a morte de um ser humano
infinitas vezes.
Por isso é tão importante romper
com a superficialização dos fatos. Parar de ler as informações pelas manchetes
e começar a se inteirar, mais profundamente, a respeito. A continuar como está,
a chacina do Jacarezinho não vai ser a última; haverá sempre outra e outra ... Afinal,
as desigualdades no país galopam apressadas. O empobrecimento e o achatamento
das classes sociais estão empurrando legiões inteiras para as comunidades,
expondo, portanto, mais e mais pessoas aos confrontos.
Se por um lado o poder
institucionalizado vê nessa realidade a desobrigação de fazer por essas
pessoas, minimizando seus gastos com aqueles que considera desimportantes socialmente;
por outro, ele perde na arrecadação de impostos, na oferta de mão de obra, no
aquecimento do consumo, ... Prejuízos
que, de algum modo, também, irão repercutir sobre os poderes paralelos.
Pensemos sobre tudo isso, então,
antes de nos atrevermos a apontar e nos indignar com as guerras e conflitos
alheios. Sem nos darmos conta, nossa desumanidade não perde em nada para o que
acontece além de nossas fronteiras. A morte, a crueldade, a indigência, aqui é
no atacado. Se você, ainda, não entendeu, de maneiras distintas estamos ficando
sem ar ... Não podemos respirar. Não podemos ... Não ...