Não
basta somente uma catarse verbalizada
Por
Alessandra Leles Rocha
Os dois últimos dias me fizeram
debruçar sobre a janela da melancolia. O contínuo das perdas é mesmo
asfixiante! A frieza dos números não é capaz de trivializar a importância de
cada vida, anônima ou famosa; por isso, sentimos, sofremos, nos angustiamos. Até
que, de repente, começamos a perceber que não reside no Sars-COV-2 a urgência
de contenção e banimento; mas, em um velho hábito brasileiro que é, na verdade,
o cerne de nossas mazelas. O universo paralelo.
É só olhar com um pouquinho de
atenção para o país, tomando como exemplo a Pandemia da COVID-19, para nos
darmos conta que estamos andando em círculos e chegando a lugar nenhum. A
doença avança de um lado, seus desdobramentos para outros e nós bradamos ou
silenciamos nossa indignação estupefata, como um mantra, ao longo dos dias. Mas
nada, absolutamente nada, de concreto, altera o panorama em sua forma e/ou
conteúdo.
Por que é assim? Há milhões de
respostas plausíveis para dar conta de responder com lucidez a esse fenômeno.
No entanto, começo a acreditar com mais convicção de que esteja na habilidade
histórico secular brasileira, de driblar as regras do jogo, os caminhos para
consolidar seus universos paralelos e garantir o trânsito da vida e de seus
interesses, a partir dos seus quereres e vontades.
Ouvindo os primeiros depoimentos
da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), essa semana, essa práxis ficou
muita clara e, me fez até recordar, dos tempos em que se falava da existência
de um 3º Poder ou Poder Paralelo, na cidade do Rio de Janeiro. Ele era
manifesto pelas facções contraventoras e criminosas que direcionavam de maneira
subliminar a governança da cidade, segundo seus interesses.
No caso da CPI, esse paralelismo
emergiu para dar sustentabilidade as narrativas negocionistas do governo, no
contexto da condução gestora da Pandemia. De modo que a sociedade ficou exposta
não só a um mundo real e outro virtual; mas, também, a um mundo paralelo, cujo
objetivo é manipular os fatos em favor de alguns e em detrimento de outros. Quando
um governo decide se balizar por esse mecanismo, ele não está em busca de
informações e referências, sobre determinado assunto, já consolidadas e aceitas
no contexto coletivo.
Isso significa manter a qualquer
custo quaisquer opiniões. O que nos leva a pensar nesse paralelismo como um
mecanismo de “policy switch”, ou
seja, um giro político. O que nesse contexto significou adotar uma plataforma ideológica
que contraria, constantemente, a Constituição e demais arcabouços legais vigentes
no país.
Assim, ele descumpre,
acintosamente, o seu compromisso constitucional ao buscar um aparato que
sustente a sua própria narrativa discursiva, mesmo que em risco de total perda
de credibilidade e de eventuais consequências nefastas. É por isso que os dias
se sucedem reafirmando a inércia.
Só que ela não é indolor e nem
tampouco inativa; na medida em que o fazer e o não fazer são escolhas e trazem
suas próprias consequências. A sociedade está sendo submetida a uma exibição
constante da tragicidade social, enquanto se resigna a chorar as suas dores e
tristezas em uma indignação profundamente contida.
Talvez, mais uma manifestação
rançosamente histórica que é a passividade vitimista em esperar por alguém, que
tome a dianteira e resolva miraculosamente a situação. Entretanto, enquanto se
espera, a situação progride a passos largos nas suas insustentabilidades.
Cada vez mais, vejo muita gente se
arvorar como defensor da vida; mas, na prática a convicção não é linear. Então,
eu fico me perguntando qual seria essa vida? Porque na psicologia, na medicina, na
religião, na educação e em tantos outros campos do conhecimento, não há distinção,
ela é simplesmente entendida como um bem muito valioso e inalienável. O que se
subtende que todas as vidas importam.
Portanto, ela não deveria estar,
jamais, sob ameaça de ninguém ou de nenhuma situação. Mas está. Rendida pelo
medo, pela obviedade do imprevisível, a sociedade conta os giros do relógio
como contas de um rosário de sobrevivência. Afinal, ela precisa se apegar em
algo para não pagar com a vida o custo desse teatro de horror.
Sabemos, muito bem, que nos
proteger é necessário. Nos cuidar é necessário. Pensar as medidas de prevenção,
no sentido coletivo, é necessário. Tomar a vacina corretamente é necessário. Mas,
só isso não irá romper o cerco da morte que está se acirrando. Como não basta,
somente, uma catarse verbalizada.
Enquanto fazemos tudo isso, as pessoas continuam adoecendo e morrendo. Por mais difícil que seja admitir, estamos diante de uma encruzilhada, à beira de um precipício. Assim, apesar de nos considerarmos aptos e competentes, a conjuntura nos obriga a rever os conceitos, alterar os planos, porque a ineficiência e a insuficiência foram comprovadas, da pior forma, no trato de toda essa situação. O mundo paralelo, na sua ficção delirante, como era de se esperar, fracassou.