Reflexões
sobre aprender para ser
Por
Alessandra Leles Rocha
Quem já leu o livro
Extraordinário (Wonder), ou assistiu
ao filme 1homônimo, se defronta com um assunto
bastante comentado nos últimos anos, no Brasil, que é o “homeschooling”, ou seja, o ensino doméstico ou domiciliar.
Na história, a personagem Auggie
Pullman é um garoto que nasce com a Síndrome de Treacher Collins, uma doença genética caracterizada por deformações
craniofaciais e, por essa razão, a família o mantém estudando em casa até o Ensino
Fundamental I (Elementary School), a fim de evitar situações de bullying que pudessem afetá-lo.
Então, quando a família decide
matriculá-lo em uma escola regular todos os conflitos e dilemas desse processo
são apresentados ao público, o que abre uma possibilidade interessantíssima de
reflexão. De entender como o modelo de educação pode
afetar a vida de diversas formas e gerar desdobramentos, inclusive, impensados.
No caso da personagem existiam
razões bastante consistentes para que os pais optassem temporariamente pelo homeschooling. A mãe se encarregou de
ser a professora durante esse período. Criou-se, portanto, uma estrutura para o
desenvolvimento das aulas que permitisse uma transposição para o ensino na
escola sem maiores impactos acadêmicos.
No entanto, do ponto de vista
relacional com o mundo, Auggie havia se mantido em sua própria “bolha” de convivência, com pessoas
capazes de aceitá-lo exatamente como ele era, de modo que não estava preparado para
enfrentar as hostilidades que residem na convivência social extrafamiliar.
A partir dessas considerações é possível
dimensionar, então, as camadas de complexidade que residem na proposta do homeschooling. A primeira delas daria
conta de uma impossibilidade de acesso a qualquer aluno. Nem todos os pais se
sentem aptos e/ou disponíveis para lecionar aos filhos. Contratar alguém pode
representar um custo elevado, que muitas vezes não pode ser contemplado pelo
orçamento familiar. Tudo isso significa que o homeschooling tende a reafirmar uma desigualdade educacional.
Segundo, porque são necessários
investimentos para contemplar tanto a estrutura quanto os materiais necessários
para o desenvolvimento das aulas. É preciso que o aluno tenha um espaço de
ensino-aprendizagem descaracterizado do espaço residencial, para que ele possa construir
um sentido de responsabilidade, sem distrações, para construir seus
conhecimentos. O momento da aula tem que ser para a aula. O mobiliário tem que
ser adequado para essa finalidade. Ele deve contar com os materiais pedagógicos
apropriados para a realização das atividades. Enfim...
Terceiro, porque essa é uma forma
de individualização exacerbada de ensino. Todo o plano didático-pedagógico é
centrado na figura de um aluno específico. De modo que todas as dúvidas, todos
s seus questionamentos, são prontamente respondidos e resolvidos porque ele não
precisa aguardar pela satisfação das demandas de outros alunos. A não ser, é claro,
quando são gêmeos ou há irmãos de outras séries estudando conjuntamente em homeschooling.
Mesmo assim, neste caso, dada a
intimidade familiar existente, há um prejuízo relacional no sentido de que o
aluno não aprende a se posicionar frente a alguém totalmente estranho.
O que significa uma
impossibilidade de aprender a lidar com conflitos, com interesses diversos,
opiniões divergentes, a partir de pontos de vista que foram construídos com
base em crenças, valores e princípios de famílias diferentes.
E ninguém passa o resto da vida
dentro de sua própria “bolha”. Em algum
momento as pessoas são catapultadas para o mundo e o não estar preparado, na
medida da experienciação da dinâmica da vida, pode ser mais do que desafiador,
pode ser letal.
A inexperiência pode impactar o indivíduo
em níveis tão difíceis de mensurar que podem acabar constituindo gatilhos para
diversas doenças mentais, como Depressão, Bulimia, Anorexia, Transtorno
Obsessivo Compulsivo (TOC). Que se acentuadas podem sim, levar a quadros suicidas.
Por isso, creditar no homeschooling a solução para todos os
problemas e desafios que possam existir na educação convencional vigente, parece
um tanto quanto equivocado. Mais do que nunca, é preciso pensar em modelos de
educação que permitam ao ser humano consolidar um de seus pilares de sustentação
psicoemocional mais importante, que é a alteridade.
Isso significa desenvolver a
capacidade de reconhecer a existência de alguém diferente de mim, possibilitando
me colocar no lugar desse outro no contexto das infinitas configurações de
relações sociais, sempre com consideração, identificação e diálogo. A alteridade
ensina, portanto, que não é necessário concordar sempre; mas, é fundamental
aceitar as diferenças.
Quando a sociedade começa a buscar
subterfúgios para moldar a vida dentro de certas perspectivas que extrapolam a
individualidade para se tornarem extremamente individualistas, um sinal de
alerta precisa ser aceso. A educação é uma extensão do mundo; mas, não é por
isso que se precisa transformá-la em uma arena de conflitos, de ameaças, de violências
diversas, como acontece na exacerbação contínua das práticas de bullying escolar.
Por isso, “O saber que não vem da experiência não é realmente saber” (Lev Vygotsky
– psicólogo). O modelo de Educação e a proposta de ensino-aprendizagem, sejam
eles quais forem, devem estar fundamentados na busca por transcender as
possibilidades humanas e sociais do aluno.
Como escreveu Rubem Alves, “Para isso existem escolas: não para ensinar
as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar
sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar
desconhecido”.
Porque, no fim das contas, “Pessoas que sabem soluções já dadas são
mendigos permanentes. Pessoas que aprendem a inventar soluções novas são
aquelas que abrem portas até então fechadas e descobrem novas trilhas. A questão
não é saber uma solução já dada, mas ser capaz de aprender maneiras novas de
sobreviver” (Rubem Alves – teólogo, pedagogo, poeta e filósofo brasileiro).