DESUMANIZAÇÃO
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Por
Alessandra Leles Rocha
Muito tem se falado sobre a
deterioração da Democracia ao redor do planeta. Acontece que esse processo é composto
por camadas de violência e de destruição, na maioria das vezes, envoltas pelas
sutilezas da banalização, da normalização. E uma dessas camadas diz respeito à
desumanização fomentada pela necropolítica.
Na medida em que o uso do poder
político e social, especialmente por parte do Estado, permite determinar, por
meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo e quem deve morrer,
legitima-se a desumanização social 1. Algo que, em sociedades como a
brasileira, por exemplo, cuja historicidade é marcada a ferro pela herança
colonial, se torna ainda mais recrudescido.
Basta por os olhos nas manchetes
dos veículos de informação e comunicação, diariamente, para perceber como as
camadas mais frágeis e vulneráveis da sociedade brasileira estão sendo
vitimadas pela desumanização social. Como se o valor da vida tivesse sido alinhado
à distribuição humana na pirâmide social, ou seja, algumas valem mais, outras
valem nada.
Mas, pondo reparo nesse cenário, descobre-se
como o racismo cruza também esse caminho, pelo fato de que as vidas classificadas
desimportantes são predominantemente compostas por negros e mestiços. Veja, o
apagamento histórico sobre o processo de abolição da escravatura, no Brasil, criou
uma dissociação entre o passado e o presente. Tanto que a libertação dos
escravos, em 1888, reverbera, ainda hoje, as suas consequências nefastas sobre a
vida dos descendentes de negros e mestiços, no Brasil. O que significa que a desestruturação
socioeconômica que lhes foi imposta, no século XIX, estabeleceu um gigantesco obstáculo
à sua mobilidade e inserção social.
Não só do ponto de vista prático,
como subjetivo. Aliás, talvez, na subjetividade, as práxis do
racismo, da desumanização, sejam
ainda mais abjetas e repugnantes; visto que, elas reafirmam a todo instante uma
diversidade de rótulos e estereótipos que inferiorizam e objetificam os
cidadãos negros e mestiços. O que os torna extremamente vulneráveis às práxis da necropolítica vigente.
Como disse o rapper
paulistano Emicida, em um programa de TV, “O Brasil aplaude a miscigenação
quando clareia, quando escurece ele condena. […] O táxi não para pra você, mas
a viatura para, esse é o problema urgente do Brasil” 2. O fundamentalismo eurocêntrico que
vigora, em pleno século XXI, no país, legitima sim, a desumanização social. Tornando
quaisquer cidadãos, que não se encaixem aos padrões eurocêntricos preestabelecidos,
vítimas e algozes de si mesmos, nas mais diferentes circunstâncias do
cotidiano.
Ora, se “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CF de 1988, art.
5º), há algo de muito errado na realidade brasileira! Como cidadãos dotados
constitucionalmente pelos mesmos direitos e deveres, por que fechamos os olhos
para as desigualdades? Por que compactuamos com a desumanização social? Por que
nos silenciamos às práxis necropolíticas?
Com a tentativa, cada vez mais
intensa, de reafirmação e consolidação do poder pela ultradireita, não se pode
esperar que quaisquer atitudes em favor da desconstrução desse movimento infame
e vergonhoso aconteça. Afinal, membros, apoiadores e simpatizantes desse
espectro político-partidário fazem parte das camadas superiores da pirâmide social
brasileira. Portanto, estão em suas mãos o poder e a influência para decidir;
mas, eles não dispõem de vontade ou interesse para fazê-lo. A ideia é
justamente manter, a qualquer preço, suas históricas regalias e privilégios. Porém,
como a base da pirâmide é bem maior que o topo, ela pode sim, ser o impulso
para a mudança.
Dizia o sociólogo brasileiro
Florestan Fernandes que “A democracia só será uma realidade quando houver,
de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de
discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em
termos de classe, seja em termos de raça”. Mas, para que isso aconteça é
preciso extinguir essa desumanização impulsionada pela necropolítica. Começando
pela compreensão de que “Numa sociedade racista, não basta não ser racista.
É necessário ser antirracista” (Angela Davis); pois, o racismo significa a discriminação
ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei nº
7.716, de 5 de janeiro de 1989.).
Portanto, que nossa reflexão seja
amparada pelo seguinte princípio: “Age de modo que consideres a humanidade
tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro, e sempre como objetivo, nunca
como simples meio”; posto que, “A inumanidade que se causa a um outro
destrói a humanidade em mim” (Immanuel Kant). Lembre-se, “Justiça é
consciência, não uma consciência pessoal mas a consciência de toda a
humanidade. Aqueles que reconhecem claramente a voz de suas próprias
consciências normalmente reconhecem também a voz da justiça” (Alexander
Solzhenitsyn - Prêmio Nobel de literatura em 1970).