sábado, 15 de março de 2025

Desumanização ...


DESUMANIZAÇÃO ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito tem se falado sobre a deterioração da Democracia ao redor do planeta. Acontece que esse processo é composto por camadas de violência e de destruição, na maioria das vezes, envoltas pelas sutilezas da banalização, da normalização. E uma dessas camadas diz respeito à desumanização fomentada pela necropolítica.

Na medida em que o uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, permite determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo e quem deve morrer, legitima-se a desumanização social 1. Algo que, em sociedades como a brasileira, por exemplo, cuja historicidade é marcada a ferro pela herança colonial, se torna ainda mais recrudescido.

Basta por os olhos nas manchetes dos veículos de informação e comunicação, diariamente, para perceber como as camadas mais frágeis e vulneráveis da sociedade brasileira estão sendo vitimadas pela desumanização social. Como se o valor da vida tivesse sido alinhado à distribuição humana na pirâmide social, ou seja, algumas valem mais, outras valem nada.

Mas, pondo reparo nesse cenário, descobre-se como o racismo cruza também esse caminho, pelo fato de que as vidas classificadas desimportantes são predominantemente compostas por negros e mestiços. Veja, o apagamento histórico sobre o processo de abolição da escravatura, no Brasil, criou uma dissociação entre o passado e o presente. Tanto que a libertação dos escravos, em 1888, reverbera, ainda hoje, as suas consequências nefastas sobre a vida dos descendentes de negros e mestiços, no Brasil. O que significa que a desestruturação socioeconômica que lhes foi imposta, no século XIX, estabeleceu um gigantesco obstáculo à sua mobilidade e inserção social.

Não só do ponto de vista prático, como subjetivo. Aliás, talvez, na subjetividade, as práxis do racismo, da desumanização, sejam ainda mais abjetas e repugnantes; visto que, elas reafirmam a todo instante uma diversidade de rótulos e estereótipos que inferiorizam e objetificam os cidadãos negros e mestiços. O que os torna extremamente vulneráveis às práxis da necropolítica vigente.

Como disse o   rapper paulistano Emicida, em um programa de TV, “O Brasil aplaude a miscigenação quando clareia, quando escurece ele condena. […] O táxi não para pra você, mas a viatura para, esse é o problema urgente do Brasil” 2. O fundamentalismo eurocêntrico que vigora, em pleno século XXI, no país, legitima sim, a desumanização social. Tornando quaisquer cidadãos, que não se encaixem aos padrões eurocêntricos preestabelecidos, vítimas e algozes de si mesmos, nas mais diferentes circunstâncias do cotidiano.   

Ora, se “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CF de 1988, art. 5º), há algo de muito errado na realidade brasileira! Como cidadãos dotados constitucionalmente pelos mesmos direitos e deveres, por que fechamos os olhos para as desigualdades? Por que compactuamos com a desumanização social? Por que nos silenciamos às práxis necropolíticas?

Com a tentativa, cada vez mais intensa, de reafirmação e consolidação do poder pela ultradireita, não se pode esperar que quaisquer atitudes em favor da desconstrução desse movimento infame e vergonhoso aconteça. Afinal, membros, apoiadores e simpatizantes desse espectro político-partidário fazem parte das camadas superiores da pirâmide social brasileira. Portanto, estão em suas mãos o poder e a influência para decidir; mas, eles não dispõem de vontade ou interesse para fazê-lo. A ideia é justamente manter, a qualquer preço, suas históricas regalias e privilégios. Porém, como a base da pirâmide é bem maior que o topo, ela pode sim, ser o impulso para a mudança.  

Dizia o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes que “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça”. Mas, para que isso aconteça é preciso extinguir essa desumanização impulsionada pela necropolítica. Começando pela compreensão de que “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista” (Angela Davis); pois, o racismo significa a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.).

Portanto, que nossa reflexão seja amparada pelo seguinte princípio: “Age de modo que consideres a humanidade tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro, e sempre como objetivo, nunca como simples meio”; posto que, “A inumanidade que se causa a um outro destrói a humanidade em mim” (Immanuel Kant). Lembre-se, “Justiça é consciência, não uma consciência pessoal mas a consciência de toda a humanidade. Aqueles que reconhecem claramente a voz de suas próprias consciências normalmente reconhecem também a voz da justiça” (Alexander Solzhenitsyn - Prêmio Nobel de literatura em 1970).