Além das
máscaras
Por Alessandra
Leles Rocha
Às portas do Carnaval, ao
contrário da maioria, eu permaneço distante da folia. Embora me encante o
trabalho de pesquisa artística e de desenvolvimento da criatividade, realizado
pelas escolas de samba, no mais eu não encontro sentido para tanta euforia. Na
minha percepção, a festa de Momo esconde uma certa tristeza que torna opaca a
alegria vendida, por aí.
Começando pelo fato de que, como
toda manifestação cultural, no Brasil, o Carnaval não dispõe de uma acessibilidade
tão democrática quanto parece. Enquanto milhares
se jogam na efervescência das músicas, dos confetes e das serpentinas, outros
tantos estão movendo as engrenagens da folia. Cidadãos que aproveitam o feriado
para constituir uma renda extra ou que são contratados pelas empresas
organizadoras dos eventos carnavalescos.
A verdade é que, se as classes
privilegiadas podem desfrutar, muitas vezes, o Carnaval de época e fora de
época, uma imensa maioria sequer pode usufruir de descanso. Trabalham pesado para realizar a festança
alheia, sem receberem para isso, um salário condizente ao tamanho de seus
esforços. Coisas de um país que vive sob a aura de um ranço colonial cristalizado!
Depois, me vem ao pensamento a
questão da alegria. Com exceção de certos grupos, ligados efetivamente às raízes
das manifestações carnavalescas, o restante não me parece exibir uma alegria
genuinamente armazenada na alma. A impressão é de que pegam carona no embalo da
ocasião para extrapolar os limites e transgredir as regras sociais. Sob efeito
de drogas lícitas e ilícitas, se permitem extravasar um certo tipo de fúria
comportamental, a qual fica contida no restante dos dias do ano. Razão pela
qual se vê tantos casos de violência e acidentes automobilísticos.
Como se o período carnavalesco
fosse um recorte temporal em que tudo é permitido e não há necessidade de se
pensar nas consequências, no amanhã. Só que não. Passada a folia de Momo, os
desatinos começam a reverberar os seus resultados nefastos. A imprensa, por
exemplo, costuma fazer um balanço triste e impactante sobre a violência nas
cidades e nas rodovias, durante o período. Vidas ceifadas precocemente. Famílias
enlutadas pelo resto da vida. Orfandade desnecessária. Enfim...
Pouco falado, mas não menos
importante, os “filhos do carnaval” são outra resultante que merece
atenção. Crianças geradas à revelia da responsabilidade parental e que, em
muitos casos, não encontram as condições básicas e necessárias para o seu
desenvolvimento ao longo da vida. Sem contar que, sob esse viés, também não se
pode esquecer o aumento da incidência das Infecções Sexualmente Transmissíveis
(IST), dado o descuido de muitos foliões; pois, há a possibilidade de uma
pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem sinais e sintomas. Herpes
genital, sífilis, gonorreia, tricomoníase, infecção pelo HIV, infecção pelo
Papilomavírus Humano (HPV), hepatites virais B, C e D, são algumas delas.
Bom, apesar de o atendimento, o
diagnóstico e o tratamento serem gratuitos nos serviços do Sistema Único de
Saúde (SUS), o descaso estabelecido pelo cidadão em relação às ISTs gera um
ônus ao Estado brasileiro, o qual passa despercebido pela grande maioria da
população. Doenças como a AIDS e as hepatites virais demandam, por exemplo,
atendimento complexo e multidisciplinar; bem como, medicações de custo elevado.
No caso das hepatites B e D existe tratamento e elas podem ser controladas,
evitando a evolução para cirrose e câncer. No entanto, o tratamento precisa ser
seguido corretamente.
No fim das contas, o Carnaval
passa, a Quarta-Feira de Cinzas chega ... Acontece que, ao contrário do que
muitos possam pensar, a vida não parou o seu curso em momento algum. A ilusão de que a vida entra em estado de
dormência, em razão do Carnaval, é só um mecanismo para aliviar a consciência. De
volta à realidade cotidiana, então, a alegria é posta à prova. Diante dos altos
e baixos, dos solavancos, dos imponderáveis, é que se mede a nossa capacidade
de ser genuinamente alegre, apesar de todos os pesares. Uma expressão de
alegria que seja efetivamente capaz de fazer vibrar o refrão: “Eu / Tô
dançando com a vida / De rosto colado / Abraçando apertado / Que delícia é
viver ...” 1.
Porque a alegria verdadeira sabe
existir, resistir e persistir às mudanças dos ventos. Ela não precisa de alegorias
e adereços, nem confetes e serpentinas, nem elixires da euforia. Ela não se
resume aos recortes temporais. Ela não precisa de grandes motivos. Segundo o pastor
francês Charles Wagner, “A alegria não está nas coisas, está em nós”. Talvez,
por isso, “Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã
virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas
as ciladas do tempo” (Caio Fernando Abreu). Além das máscaras. Além do
Carnaval.
1 Dançando Com A Vida – Sandra de Sá (2001) / Compositores: Sandra Sa / Jose Farias / Gabriel Contino / Ana Cristina Cavalcanti De Albuquerque - https://www.youtube.com/watch?v=A4YhR-1j1LE