sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Além das máscaras


Além das máscaras

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Às portas do Carnaval, ao contrário da maioria, eu permaneço distante da folia. Embora me encante o trabalho de pesquisa artística e de desenvolvimento da criatividade, realizado pelas escolas de samba, no mais eu não encontro sentido para tanta euforia. Na minha percepção, a festa de Momo esconde uma certa tristeza que torna opaca a alegria vendida, por aí.

Começando pelo fato de que, como toda manifestação cultural, no Brasil, o Carnaval não dispõe de uma acessibilidade tão democrática quanto parece.  Enquanto milhares se jogam na efervescência das músicas, dos confetes e das serpentinas, outros tantos estão movendo as engrenagens da folia. Cidadãos que aproveitam o feriado para constituir uma renda extra ou que são contratados pelas empresas organizadoras dos eventos carnavalescos.

A verdade é que, se as classes privilegiadas podem desfrutar, muitas vezes, o Carnaval de época e fora de época, uma imensa maioria sequer pode usufruir de descanso.  Trabalham pesado para realizar a festança alheia, sem receberem para isso, um salário condizente ao tamanho de seus esforços. Coisas de um país que vive sob a aura de um ranço colonial cristalizado!

Depois, me vem ao pensamento a questão da alegria. Com exceção de certos grupos, ligados efetivamente às raízes das manifestações carnavalescas, o restante não me parece exibir uma alegria genuinamente armazenada na alma. A impressão é de que pegam carona no embalo da ocasião para extrapolar os limites e transgredir as regras sociais. Sob efeito de drogas lícitas e ilícitas, se permitem extravasar um certo tipo de fúria comportamental, a qual fica contida no restante dos dias do ano. Razão pela qual se vê tantos casos de violência e acidentes automobilísticos.   

Como se o período carnavalesco fosse um recorte temporal em que tudo é permitido e não há necessidade de se pensar nas consequências, no amanhã. Só que não. Passada a folia de Momo, os desatinos começam a reverberar os seus resultados nefastos. A imprensa, por exemplo, costuma fazer um balanço triste e impactante sobre a violência nas cidades e nas rodovias, durante o período. Vidas ceifadas precocemente. Famílias enlutadas pelo resto da vida. Orfandade desnecessária. Enfim...

Pouco falado, mas não menos importante, os “filhos do carnaval” são outra resultante que merece atenção. Crianças geradas à revelia da responsabilidade parental e que, em muitos casos, não encontram as condições básicas e necessárias para o seu desenvolvimento ao longo da vida. Sem contar que, sob esse viés, também não se pode esquecer o aumento da incidência das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), dado o descuido de muitos foliões; pois, há a possibilidade de uma pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem sinais e sintomas. Herpes genital, sífilis, gonorreia, tricomoníase, infecção pelo HIV, infecção pelo Papilomavírus Humano (HPV), hepatites virais B, C e D, são algumas delas.

Bom, apesar de o atendimento, o diagnóstico e o tratamento serem gratuitos nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), o descaso estabelecido pelo cidadão em relação às ISTs gera um ônus ao Estado brasileiro, o qual passa despercebido pela grande maioria da população. Doenças como a AIDS e as hepatites virais demandam, por exemplo, atendimento complexo e multidisciplinar; bem como, medicações de custo elevado. No caso das hepatites B e D existe tratamento e elas podem ser controladas, evitando a evolução para cirrose e câncer. No entanto, o tratamento precisa ser seguido corretamente.

No fim das contas, o Carnaval passa, a Quarta-Feira de Cinzas chega ... Acontece que, ao contrário do que muitos possam pensar, a vida não parou o seu curso em momento algum.  A ilusão de que a vida entra em estado de dormência, em razão do Carnaval, é só um mecanismo para aliviar a consciência. De volta à realidade cotidiana, então, a alegria é posta à prova. Diante dos altos e baixos, dos solavancos, dos imponderáveis, é que se mede a nossa capacidade de ser genuinamente alegre, apesar de todos os pesares. Uma expressão de alegria que seja efetivamente capaz de fazer vibrar o refrão: “Eu / Tô dançando com a vida / De rosto colado / Abraçando apertado / Que delícia é viver ...” 1.

Porque a alegria verdadeira sabe existir, resistir e persistir às mudanças dos ventos. Ela não precisa de alegorias e adereços, nem confetes e serpentinas, nem elixires da euforia. Ela não se resume aos recortes temporais. Ela não precisa de grandes motivos. Segundo o pastor francês Charles Wagner, “A alegria não está nas coisas, está em nós”. Talvez, por isso, “Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo” (Caio Fernando Abreu). Além das máscaras. Além do Carnaval.



1 Dançando Com A Vida – Sandra de Sá (2001) / Compositores: Sandra Sa / Jose Farias / Gabriel Contino / Ana Cristina Cavalcanti De Albuquerque - https://www.youtube.com/watch?v=A4YhR-1j1LE