terça-feira, 30 de abril de 2024

Trabalho. Emprego. Labuta. Ocupação. Ofício. ... A eterna busca pela garantia da dignidade humana.


Trabalho. Emprego. Labuta. Ocupação. Ofício. ... A eterna busca pela garantia da dignidade humana.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Na véspera do 1º de maio, a notícia foi de que, no Brasil, o “Desemprego fica em 7,9% nos primeiros três meses” 1.  Enquanto os veículos de comunicação e de informação, tradicionais e alternativos, disputam suas narrativas positivas e negativas a respeito, eu me reservo ao direito de analisar a questão por um outro viés.

Quisera vivêssemos tempos em que a população economicamente ativa desfrutasse de um trabalho que lhe permitisse a dignidade em estado absoluto! Mas, já faz muito tempo, que a transitoriedade pelos caminhos trabalhistas é uma realidade perversa e cruel do mundo contemporâneo.

Ninguém para e pensa que diariamente novos contingentes humanos estão em busca de trabalho pela primeira vez, somando-se às legiões que já percorrem esse caminho há muito mais tempo. O que significa que essa é uma conta cada vez mais difícil de fechar! Afinal, sobram trabalhadores e faltam vagas para absorvê-los.

Além disso, é preciso reconhecer a quantidade de senões que atravessam o cenário do trabalho formal contemporâneo. Não, não falo somente da precarização trabalhista, com todas as suas estratégias capazes de ferir os direitos e a dignidade do indivíduo; mas, também, do etarismo, da misoginia, do racismo, da xenofobia, do assédio moral e sexual, do trabalho análogo à escravidão, enfim.

Esse conjunto de fatores não só afeta a disposição do trabalhador, como contribui para o seu adoecimento físico e mental, dado o nível de pressão a que ele é submetido, diariamente, na sua jornada pela sobrevivência.

No entanto, isso é o que vem padecendo aqueles que conseguem uma oportunidade; mas, e os outros, os 7,9% de desempregados? Pois é, precisamos falar sobre eles.

Como dito no início dessa reflexão, a conta não fecha e tende a ficar ainda mais difícil de fechar, quando a tecnologização contemporânea ocupa os espaços dos trabalhadores humanos.

Em nome do progresso e do desenvolvimento, por exemplo, redes de supermercados já reduziram drasticamente o número de funcionários e trouxeram máquinas de auto service para utilização dos clientes.

Desse modo, milhares de vagas formais, com carteira assinada e direitos trabalhistas previstos, começam a desaparecer diante de nossos olhos, como em um passe de mágica.

Estamos diante de um cenário, que por mais difícil seja de admitir, a própria qualificação profissional é pouco relevante para uma reversão significativa desse fenômeno. A concorrência, a disputa, não acontece mais entre indivíduos, ela acontece entre os indivíduos e as máquinas.  

E adivinha quem vence? Ora, elas estão aptas a cumprir longas jornadas, a executar tudo sem faltas ou atrasos, a não demandar remuneração, a não exigir direitos e/ou benefícios. Sem contar que uma máquina substitui não apenas um funcionário; mas, um grupo considerável deles.

Sem nos darmos conta, milhões de pessoas ao redor do planeta estarão fora do mercado de trabalho à revelia da sua vontade e da sua necessidade humana. Não é à toa que vem se espalhando, como rastilho de pólvora, a ideia do empreendedorismo. Um sopro de esperança em meio ao caos? Talvez, se fosse possível cravar que que qualquer um pode ser um empreendedor.

Ora, temos que considerar que, desde a segunda metade do século XVIII, o inconsciente coletivo da humanidade passou por um processo de reprogramação da atividade laboral, por conta da Revolução Industrial.

O surgimento da figura do proletário, que vende a sua força de trabalho para sobreviver, porque não tem outro meio exceto ela, definiu o entendimento em torno das relações trabalhistas e de produção e consumo, em todo o mundo.

Eis que, de repente, passados pouco mais de dois séculos, o próprio progresso e desenvolvimento científico e tecnológico impingiu à humanidade uma saturação quanto à oferta de oportunidades de trabalho, dentro desse modelo.

Assim, para que legiões de desempregados possam sobreviver, traz-se à tona uma sugestão que se assemelha aos primórdios pré-Revolução Industrial. Vejam, nesse período, o trabalho advinha da força das manufaturas, dos pequenos negócios, da atividade agrícola.

O que significa que o indivíduo empreendia seu tempo e suas habilidades com autonomia, para gerar renda e garantir sua subsistência. O pensamento estava centrado no trabalho em si, não havia o propósito do enriquecimento, da acumulação de capital, como na fase industrial.

E é isso que temos bem diante dos olhos. Com outro cenário, outra roupagem; mas, em suma, a mesma coisa. O empreendedorismo contemporâneo transpira sim, esse ar de tábua de salvação, para que milhões de pessoas não cerrem fileiras no desemprego. De maneira nada sutil, elas estão sendo persuadidas a refazer sua reprogramação da atividade laboral.

Mas, será que é tão simples e fácil voltar às origens, em pleno século XXI? Essa é a pergunta a se fazer. Afinal de contas, somos mais de 8 bilhões de seres humanos, vivendo no planeta Terra.

Para toda essa gente, a ideia de empreender significa o fim das certezas, da segurança. Um verdadeiro salto, sem redes de proteção, tendo em vista que será fundamental aceitar os desafios e assumir sozinho os riscos que podem advir dessa aventura. E isso significa, muito claramente, que para milhões delas a dignidade humana estará ameaçada.

Sim, porque diante da escassez, cada vez mais premente, do trabalho formal, da franca precarização das atividades laborais que ainda restam, ou de um eventual fracasso como empreendedores, como irão sobreviver? Já dizia Nelson Mandela, “Negar ao povo os seus direitos humanos é pôr em causa a sua humanidade. Impor-lhes uma vida miserável de fome e privação é desumanizá-lo”.

Portanto, antes de celebrar o 1º de maio, procure se debruçar sobre a reflexão dessas questões. Como escreveu George Bernard Shaw, “O maior pecado para com os nossos semelhantes, não é odiá-los, mas sim tratá-los com indiferença; é a essência da desumanidade”.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Por uma escola aberta à pluralidade, à diversidade humana!


Por uma escola aberta à pluralidade, à diversidade humana!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não importa se a vítima de racismo, desta vez, é uma adolescente com visibilidade social 1. Racismo é crime 2. E racismo na escola merece uma discussão ainda mais aprofundada, tendo em vista que esse é um dos primeiros espaços sociais, depois da família, em que o indivíduo se estabelece coletivamente.

Assim, façamos uma reflexão franca e objetiva sobre o tema. Olhando especificamente para o contexto brasileiro, o racismo é uma herança colonial, uma consequência ideológica eurocêntrica, a qual reverbera por mais de 500 anos no país. O que significa já estar impregnado no inconsciente coletivo nacional por força das legitimações discursivas, institucionais e de poder.

Acontece que essa normalização, essa banalização, do racismo, a qual se tenta imprimir, é uma grande mentira. Como disse no início, racismo é crime. Aliás, muito antes de uma norma jurídica, assim o determinar, ele sempre foi uma prática criminosa.

Não foi à toa, por exemplo, que por conta de todas as arbitrariedades e violências cometidas pelos seres humanos, ao longo da história, decidiu-se reconhecer publicamente que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. 1º, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).

No entanto, a gênese primitiva, bárbara e competitiva do Homo sapiens parece rechaçar veementemente o antirracismo e vem buscando manter acesa essa chama abjeta e degradante, de geração em geração. Sim, o racismo tornou-se estrutural na sociedade, em razão de sua legitimação secular  como comportamento normal dentro da dinâmica coletiva. Algo que se manifesta, muito claramente, pela hierarquização da importância e da desimportância social.

Desse modo, quando uma criança ou adolescente manifesta o racismo, seja na escola ou em qualquer outro espaço de convivência, ela está reproduzindo um padrão adquirido no ambiente familiar. Nessa faixa etária, o núcleo familiar tem um peso enorme sobre a formação de crenças, valores e princípios, do indivíduo. Há uma constante observação dos diálogos, dos comportamentos, das ideias.

Mesmo considerando o papel das mídias sociais e da internet, na contemporaneidade, é com base nessa construção identitária da criança ou adolescente, que se dá a sua afinidade e agregação tecnológica. Isso significa que as informações advindas do mundo virtual estão em consonância com o próprio padrão familiar do indivíduo. Ele transita pela bolha que ele reconhece como espaço de pertencimento.

Diante desse cenário, o que se observa é que a escola, especialmente no contexto da iniciativa privada, tem buscado minimizar os conflitos entre a formação acadêmica e a formação familiar, a fim de evitar, principalmente, a evasão dos alunos para outros estabelecimentos de ensino.

Acontece que essa é só uma pseudoneutralidade e de nada resolve as beligerâncias que já se fazem presentes dentro dos muros da escola. O corpo docente e diretivo das instituições de ensino está cada vez mais acuado no seu exercício profissional, tendo em vista o impacto causado pela ingerência das ideologias sustentadas no âmbito familiar dos alunos.

Bem, em outros tempos, uma roda de conversas poderia resolver as arestas com facilidade. Mas, os tempos são outros e não cabe o idealismo ingênuo de pensar que a dialogia pode resolver e colocar tudo no devido lugar, como em um passe de mágica. As pessoas têm ido, cada vez mais, aos extremos na defesa das suas ideias e convicções, o que demonstra uma baixa disposição para conversar e olhar a vida por outras perspectivas e vieses.

De modo que esse caminho me parece inócuo; embora, eu acredite piamente que é a educação, o único caminho para desconstruir e ressignificar os velhos paradigmas. Rubem Alves já dizia que “Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido”.

Aliás, vale ressaltar um ponto muito importante para essa reflexão. No âmbito educacional brasileiro existem duas leis – n.º 10.639/2003  3 e n.º 11.645/2008 4 – cujo desconhecimento por parte de uma imensa maioria da população acontece em razão de não serem efetivamente cumpridas nas escolas.  A invisibilização delas repercute na invisibilização da pluralidade social brasileira, da herança colonial miscigenada, reforçando a velha máxima eurocêntrica do século XVI.  

Deixando de lado as politizações, as polarizações contemporâneas, e colocando a discussão da diversidade e da pluralidade social no campo de construção do conhecimento, da intelectualidade, é que se pode finalmente iniciar um novo tempo para o país. Um tempo sem medo das diferenças, sem medo do outro.

A escritora Chimamanda Ngozi Adichie alerta que “A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos” 5. Colocar em prática essas duas legislações significaria, portanto, romper com a história única, a história que só pode ter um narrador.

O Brasil é de muitas cores, muitos saberes, muitas habilidades e talentos. O Brasil é o que é graças a uma riqueza humana extraordinária! Ora, essa grandeza não pode ser ofuscada, negligenciada, invisibilizada, começando da escola! Crianças e adolescentes precisam se sentir representados, estimulados, enaltecidos por serem quem são.

Então, temos que falar de Zumbi dos Palmares, de Machado de Assis, de Nilo Peçanha, de Milton Santos, de Carolina Maria de Jesus, de Marielle Franco, de Mário Juruna, de Cacique Raoni Metuktire, de Ailton Krenak, de Sônia Guajajara, de Daniel Munduruku, e tantos outros 6.

Para finalizar minhas breves considerações, deixo algumas palavras que caem com uma luva sobre esse assunto: “Vivemos durante séculos influenciados pela ilusão da miscigenação sem conflitos, mascarando uma realidade onde a dominação e a discriminação racial e social diminuem consideravelmente as possibilidades de realização cultural plena para uma enorme parcela da população. População, aliás, que nunca deixou de lutar pela formação de uma sociedade na qual os direitos de minorias sejam respeitados e incorporados a uma identidade nacional reconhecidamente plural. Como resultado dessa luta, vivemos hoje um importante processo de democratização das relações sociais no Brasil, e um cenário político que certamente irá exigir a incorporação de uma série de demandas reprimidas. Devemos aproveitar a oportunidade para promover o incentivo ao diálogo, ferramenta fundamental para a construção de uma cultura de paz, que se solidifica com base na interculturalidade” (COLL, 2002, p.16-17) 7.



2 Lei n.º 7.716/1989 – Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm

3 Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

4 Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2023, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm

5 ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 64p.

7 COLL, A. N. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. São Paulo, Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de Proposições para o Século XXI, 2).   

domingo, 28 de abril de 2024

Reflexões sobre a raça... HUMANA


Reflexões sobre a raça... HUMANA

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Na última semana, três notícias importantes me despertaram a atenção e me puseram a refletir profundamente a respeito. O reconhecimento dos crimes de escravidão, durante o Colonialismo, pelo Presidente de Portugal 1. A carta aberta, do Comandante da Marinha brasileira, criticando a homenagem a João Cândido, no livro dos heróis e heroínas da pátria 2. Em episódio semelhante ao que vitimou George Floyd, outro negro norte-americano é asfixiado por policiais, nos EUA 3.

Que a escravidão precede o Colonialismo, não se discute. A partir do momento em que a raça humana passa a guerrear e a conquistar territórios, as práxis voltadas para a servidão, o cativeiro e a submissão tornaram-se aceitas e legitimadas por diversos povos.

Escravos na Suméria, no império egípcio, no império chinês, no império romano, nos Califados e Sultanatos islâmicos árabes, nas civilizações pré-colombianas. Fosse por endividamento, punição criminal, ou aprisionamento de guerra, lá estavam milhares de seres humanos submetidos à escravidão.

Contudo, é no Colonialismo, a partir do século XV, que a escravidão emerge como instrumento de enriquecimento econômico das metrópoles europeias, através do comércio de escravos.

Segundo pesquisas a respeito, “A escravidão existe desde o início da história humana, mas só atingiu uma escala industrial quando colonos europeu levaram à força 12,5 milhões de africanos para a América. O resultado desse processo é que, pela primeira vez, a cor negra da pele se torna sinônimo de sujeito escravizado” 4.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, é hora de mergulhar nas camadas mais profundas dessa história. Nada é por acaso. A cronologia do tempo é tecida pelo encadeamento dos acontecimentos, de modo que para entender as razões que levam uma discussão, como essa, em pleno século XXI, é fundamental regressar ao passado colonial.  

A partir do século XV, o mundo vivia a efervescência do Absolutismo, do Mercantilismo, da expansão marítimo-comercial, do Colonialismo, do acúmulo de riquezas, ... Porém, no século XVIII, a Revolução Francesa expõe a fragilização e o declínio do Absolutismo.

Receosos de que o movimento popular francês pudesse se disseminar por outras monarquias europeias, a Inglaterra valeu-se dos recursos capitais acumulados, ao longo do Mercantilismo, para impulsionar a Revolução Industrial e conter a fúria das camadas menos favorecidas da população.

Do protagonismo monárquico para o burguês, o cenário político-econômico passa a ser conduzido, então, por um novo ideário e o campo político-ideológico passa a gestar a dicotomia entre Direita e Esquerda, com todos os seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas.

Acontece que essa dinâmica dos acontecimentos sempre esteve marcada por um certo inconformismo saudosista, por parte da Direita. As memórias dos tempos coloniais, com todo tipo de regalias e privilégios desfrutados pelas elites, pulsava continuamente no inconsciente coletivo das camadas dominantes da sociedade urbanoindustrial.

Sobretudo, em razão da insatisfação publicamente manifesta pelo proletariado emergente, que ganhava espaço nas teorias acadêmicas sobre a divisão social e econômica do trabalho. Afinal, as classes dominantes não estavam acostumadas a discutir leis e direitos trabalhistas, a pensar na dignidade humana das parcelas sociais mais frágeis e vulneráveis.

Desse modo, sem saber exatamente como lidar com esse novo panorama social instituído pela Revolução Industrial, as elites não viram outro caminho senão apelar para a violência em detrimento do diálogo.

Assim, o desconforto se transforma em diferentes formas de preconceito – Racismo, Xenofobia, Aporofobia, Misoginia, ... - contra as minorias sociais, que estavam presentes no contingente proletariado.

Aliás, vale ressaltar que essas minorias, mais adiante, serão transformadas em pretexto para justificar as inabilidades e incompetências das elites no processo de condução do poder político-econômico de seus respectivos países, como deixam claras as argumentações fascistas do século XX.  

Vejam, desde o século XVIII, paira a reverberação de um lamento saudoso em relação aos tempos coloniais. Ora, aquele era um tempo em que o racismo era aceito, tolerado e estimulado. Que seres humanos podiam submeter, dominar, subjugar, oprimir, quaisquer de seus pares que julgassem diferentes e inferiores. Que era legítima a ideia Eurocêntrica, ou seja, a centralidade e a superioridade da visão europeia sobre as demais. Que a mobilidade social era algo inadmissível; bem como, leis e direitos trabalhistas justos e igualitários. Enfim...

Então, quando se tem três notícias orbitando essas questões, não é acaso. Basta uma simples observação, quanto ao movimento internacional que vem sendo orquestrado pela ultradireita, mundo afora.

Dentre suas pautas e pretensões existe sim, uma busca pelo realinhamento ao ideário colonial. Haja vista o aumento dos casos de trabalho análogo à escravidão 5, as políticas anti-imigração 6, a proliferação de arquitetura hostil nos grandes centros urbanos 7 e o aumento expressivo de casos de violência contra as mulheres 8.   

Isso significa que alguns indivíduos estão atuando no sentido de fazer o mundo girar ao contrário, voltar no tempo. Com as armas de sempre, ou seja, truculência, violência, poder político, poder capital, poder religioso, eles estão a plenos pulmões vociferando contra o curso natural do desenvolvimento global.

Mas, apesar de todo o barulho, não me parece que irão conseguir satisfazer seu intento. Em pleno século XXI, são mais de 8 bilhões de seres humanos, no planeta Terra, cuja imensa maioria vive sob o signo da tecnologia, da ciência, da diversidade, da pluralidade, e não se submeteriam a tamanho retrocesso, porque desejam uns e outros, por aí. Além disso, não dá para regredir nesse ou naquele ponto, é tudo ou nada.  Então...

Mesmo assim, não descarto a necessidade de recrudescer a reflexão, a discussão e a criticidade a respeito desse movimento abjeto. A contemporaneidade, infelizmente, relativizou o óbvio. A humanidade precisa ser relembrada de que chegou até aqui por força da miscigenação gerada pelo próprio Colonialismo, Neocolonialismo e Imperialismo.  Se um dia houve quem acreditasse no Eurocentrismo, essa ideia já caiu por terra, há tempos.

Portanto, é preciso amplificar o diálogo, a construção argumentativa, a educação sociocultural. É preciso não esquecer que “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu). Essa é uma das razões pelas quais “Se todas as vidas importassem, nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importam” (Angela Davis).

Em tempos em que as democracias estão aos sobressaltos, ameaçadas de diferentes formas, as palavras do sociólogo Florestan Fernandes a respeito de que “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça” 9 , devem, portanto, repercutir além das fronteiras nacionais, para que seu entendimento seja apropriado por todos os cidadãos do mundo.  



9 FERNANDES, F. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez Editora, 1989. https://repositorio.usp.br/item/001378079   

sábado, 27 de abril de 2024

Perfeccionista?! Será???


Perfeccionista?! Será???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se por um lado a competitividade contemporânea passa a impressão de conduzir muitos indivíduos a uma jornada de perfeccionismo, por outro o que se vê é a qualidade dos resultados, das relações, cada vez mais, deploráveis e inconsistentes.

O mundo da pressa, do imediatismo, da inquietude acirrada, não combina com a qualidade e com a excelência da perfeição, porque esbarra diretamente nos limites e na capacidade de qualquer ser humano administrar uma série de fatores a respeito.

Um dos bens mais caros da contemporaneidade é o tempo. O ser humano não dispõe de horas suficientes para atender a todas as demandas que lhes são dirigidas. Falta tempo para ser. Falta tempo para a família, os amigos, os amores. Falta tempo para o lazer. Falta tempo para o trabalho. Falta tempo para desfrutar da paz interior. Enfim...

De modo que os indivíduos estão mais e mais desatentos, superficiais, inconstantes, incoerentes, irritadiços, ... estressados. São muitos pratos para equilibrar de uma única vez, sob o tic-tac de um relógio marcando o ritmo da urgência. O que significa não realizar nada com a devida perfeição!

Bem, na verdade, não acredito em perfeição, na medida em que o ser humano é um ser inacabado, em constante transformação. No entanto, isso não significa qualquer traço de desprezo em relação à seriedade, à responsabilidade, ao compromisso, que cada ser humano deve ter no exercício das suas atividades e relações sociais.

Assim, prefiro usar o termo profissionalismo ao invés de perfeccionismo. Afinal, viver é a arte de se apresentar diariamente às diferentes circunstâncias, o que faz da postura individual um cartão de visitas da suas habilidades, competências, responsabilidades e alinhamento ético. Trata-se de uma consciência que leva a agir sempre em busca dos melhores resultados.   

No entanto, o que mais se vê na contemporaneidade são indivíduos agindo na total contramão desse profissionalismo, nos mais diferentes espaços sociais.  O nível de desatenção é assustador! As pessoas não sabem mais o que leem, o que escrevem, o que ouvem, o que falam ou o que fazem.

Estão autômatas, como se o cotidiano pudesse ser comparado a uma receita de bolo, em que basta seguir sempre pelas mesmas orientações e está tudo bem. Só que não.

Certa vez, quando estava na universidade, ouvi, em uma palestra sobre bioética, um exemplo marcante a esse respeito. A professora que conduzia a discussão falou da importância do senso de responsabilidade e de atenção em relação a emissão de laudos biomédicos laboratoriais.

Afinal, um erro no resultado de um exame pode ter consequências desastrosas e inimagináveis, dado o conjunto de sentimentos e expectativas do paciente. Em alguns casos, o erro nem sempre pode ser corrigido. Então, os profissionais de laboratório precisam estar plenos da sua atenção, da sua responsabilidade, da sua ética, no exercício do seu trabalho.

Mas, observando atentamente a realidade contemporânea, chega a ser algo assustador! Daqui e dali há uma franca deterioração do profissionalismo. Talvez, porque mensuradas pela produtividade, enquanto possível critério de distinção social, quando tempo é dinheiro e quem produz mais é tido como mais eficiente, as pessoas não se dão conta do distanciamento que estão impondo à sua capacidade de agir em busca dos melhores resultados.

Bons tempos, quando esse comportamento parecia se restringir a certos exemplos presentes no funcionalismo público. Agora é geral. Ninguém escapa de experienciar um atendimento ruim, sem profissionalismo, sem foco, sem atenção, sem a devida responsabilidade.

Vale ressaltar, inclusive, o fato de que nem mesmo a tecnologização contemporânea tem escapado desse movimento. As reclamações em torno de atendimentos puramente tecnológicos/virtuais se avolumam, em razão de não serem capazes de suprir as necessidades dos clientes.

Suas demandas, na maioria das vezes, sequer são respondidas, porque não há opção no checklist do atendente virtual. E se as máquinas não são perfeitas, ou profissionais, imagina o ser humano?!

No fim das contas, esse é só mais um gatilho de aprofundamento para o fracasso civilizatório. Sim, ao gerar a necessidade de explicar, reexplicar, inúmeras vezes, uma mesma questão, de não obter o feedback dialógico naturalmente esperado, os indivíduos vão se estressando, se irritando, adoecendo. A violência vai extrapolando a civilidade, o bom senso, o equilíbrio. O que significa algo totalmente antiproducente para a humanidade.

E ao que tudo indica, não há qualquer preocupação do ser humano contemporâneo em relação à perfeição, nem tampouco, ao profissionalismo. A naturalização da tecnologia, no sentido de ocupar cada vez mais os espaços e tomar as rédeas da própria sociedade, pode ser uma justificativa para a abstenção desse comportamento.

Por outro lado, lembrando a canção dos anos 80/90 que dizia, “é melhor viver / Dez anos a mil, do que mil anos a dez” 1, talvez, o ser humano seja só isso. Pressa. Desatenção. Imediatismo. Em sã consciência ou de livre espontânea vontade, ele jamais teve a intenção de ser perfeito ou de ser um exímio profissional. Certos rótulos, certos estereótipos, acabaram lhe caindo pesado sobre os ombros à revelia da sua vontade.

Assim, a título de entender um pouco melhor essa inquietude imperfeita, talvez, fosse interessante sair, por aí, e perguntar: “O que você faria se só te restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar / Me diz o que você faria” 2. As respostas, certamente, poderiam nos surpreender e trazer pistas importantes sobre o que realmente vem acontecendo com os seres humanos!



1 Decadence avec elegance (Lobão) - https://www.youtube.com/watch?v=g7ULVPLyvA4

2 O último dia (Paulinho Moska) - https://www.youtube.com/watch?v=2TYl2rGRncI  

quinta-feira, 25 de abril de 2024

O progresso...


O progresso...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um ciclo nada virtuoso. Talvez, essa afirmação seja a que melhor explique a dinâmica das Revoluções Industriais e a relação com o boom populacional que se estabeleceu depois delas.

Depois de ler duas matérias sobre o avanço das voçorocas no Brasil e a discussão delas como um problema global 1, eis que me deparo com a notícia do afundamento de cidades na China, em razão da “extração de água e do peso crescente com a rápida expansão imobiliária” 2.

Mas, não para por aí, quilombolas acionam Justiça britânica para barrar atividade de empresa mineradora em sua região, no Brasil, tendo em vista a “poluição e soterramento das nascentes de um rio, além de prejuízos à saúde causados pela poeira lançada no ar por explosões” 3.

Vejam, desde a segunda metade do século XVIII, as Revoluções Industriais não só demandaram um boom populacional para garantir seu contingente de mão de obra e seu mercado consumidor; mas, também, demandaram um uso e ocupação do solo que satisfizesse os seus interesses.

Mais pessoas, mais moradias, mais infraestrutura urbana, enfim... Tudo isso em uma crescente compatível ao progresso industrial. É certo que, no início desse processo, não havia um ordenamento jurídico que discutisse em profundidade os riscos e as medidas mitigadoras aos efeitos dessa dinâmica industrial. Demorou, então, um tempo significativo para que ele surgisse e fosse implementado.

Acontece que essa demora permitiu a consolidação dos agravos que se presenciam, agora, mais intensos na contemporaneidade. A negligência, em relação ao fato de que apenas do planeta é continental e que essa pequena fração ainda padece da limitação de não poder ser totalmente habitável, foi sim, decisiva para as consequências desse mau uso e ocupação.

Isso significa que a raça humana está reduzindo cada vez mais os espaços geográficos habitáveis, quando se preocupa exclusivamente com a manutenção do seu crescimento capital; sobretudo, para nutrir os veios do seu desenvolvimento científico e tecnológico. Ocupando. Explorando. Destruindo. Consumindo.  É sob esses princípios que o desenvolvimento da humanidade vem se mantendo alicerçado. Mas, até quando?

Não bastasse as profundas alterações geográficas na superfície terrestre, o planeta está diante do recrudescimento dos efeitos extremos do clima. Sim, as conjunturas urbanoindustriais afetaram também as condições climáticas, a partir de práxis como o desmatamento, a liberação de poluentes na atmosfera, a alteração dos cursos d’água, o uso excessivo de combustíveis fósseis.

Pois é, a concepção de progresso, a qual uma imensa maioria de pessoas permanece acreditando, como se vê apresenta um desequilíbrio real na sua relação custo/benefício. O progresso pelo progresso está ameaçando a sobrevivência e a existência da raça humana no planeta. A começar pelos episódios que têm ocasionado o deslocamento humano em massa.

Segundo a Agência da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), “Pessoas refugiadas, deslocadas internamente e apátridas estão na linha de frente da crise climática. [...] “A mudança climática e o deslocamento estão cada vez mais interligados. À medida em que eventos climáticos extremos e condições ambientais pioram com o aquecimento global, eles contribuem para múltiplas e sobrepostas crises, ameaçando os direitos humanos, aumentando a pobreza e a perda dos meios de subsistência, tensionando as relações pacíficas entre comunidades e, em última análise, criando condições para deslocamentos forçados” 4.

A recente tempestade que atingiu Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, desperta um alerta nesse sentido. Haja vista que “o recorde de precipitação é consistente com a forma como o clima está mudando. Resumindo: o ar mais quente é capaz de reter mais umidade – cerca de 7% a mais para cada grau Celsius – o que pode, por sua vez, aumentar a intensidade da chuva”. Se tempestades cada vez mais intensas e amiúde começam a impactar a superfície terrestre, não é difícil imaginar que regiões com baixa cobertura vegetal ou impactadas pelo desmatamento/desertificação apresentem tendência de uma ação erosiva mais acentuada.

Dizia o escritor francês Victor Hugo que “O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém”. De fato, não se pode banalizar os efeitos nocivos do desenvolvimento humano. Infelizmente, os indivíduos foram arrastados pelas Revoluções Industriais sem a mínima possibilidade de uma análise, uma reflexão, um exercício crítico devidamente aprofundado, a respeito. Então, imersos nesse universo, vêm descobrindo da pior maneira que os benefícios, amplamente divulgados, não podem justificar os prejuízos. Afinal de contas, a verdade é que a humanidade foi solapada na sua dignidade e direitos, inclusive, no que diz respeito à sua própria sobrevivência.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Na contramão da Inconfidência Mineira


Na contramão da Inconfidência Mineira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada poderia ser mais interessante de se observar, no contexto dos acontecimentos recentes no Brasil, que em pleno 21 de abril, marco importante do movimento denominado Inconfidência Mineira, tenha ocorrido um evento político na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, exaltando o mais profundo sentimento colonialista; porém, em relação aos EUA.

Enquanto a elite socioeconômica das Minas Gerais travou, no século XVIII, a sua luta republicana e separatista, contra o domínio colonial português; sobretudo, em relação à política fiscal empregada pela metrópole, agora, três séculos depois, saem às ruas milhares de brasileiros em favor do imperialismo digital 1, liderado por um bilionário norte-americano.

Para mim, esta foi a prova cabal daquilo que venho falando, há tempos, ou seja, o ranço colonial ainda domina o Brasil. Vira daqui e mexe dali o brasileiro não perde a oportunidade de exercer o seu vira-latismo explicitamente.

Como bem escreveu Nelson Rodrigues, “Por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima” 2.

Bem, o fato de hastearem faixas e bandeiras em apoio ao tal norte-americano, ou de proferirem discursos na língua inglesa, apesar de caricato não diz tudo. Na verdade, pode ser considerado apenas como a cereja do bolo, porque muito antes, um grupo de parlamentares federais, custeados com dinheiro público, esteve algumas vezes na terra do Tio Sam, denegrindo a imagem do Brasil junto a certos parlamentares estadunidenses.

Munidos de inverdades e absurdos foram clamar por uma eventual interferência daquele país sobre o nosso. Vociferaram que aqui é uma ditadura. Que a Suprema Corte brasileira está fora de controle.  Que há perseguição política. Enfim... Mas, no fundo parecia que estávamos de volta aos tempos coloniais, em que era preciso a vigilância e o controle da metrópole nos assuntos locais.

Bem, se engana quem pensa que essas coisas dizem respeito apenas à fragilidade da identidade nacional brasileira. Não, o buraco é bem mais fundo. É por essas e por outras que a Democracia, por aqui, vive na corda bamba, aos sobressaltos dos humores alheios.  A impressão que se tem é de que os brasileiros não apreciaram muito a ideia de assumir as responsabilidades republicanas. Afinal de contas, liberdade e responsabilidade são palavras que não se dissociam!

Assim, o gosto por ter quem tome às rédeas da situação, decida, faça e aconteça, que demonstre poder absoluto, para muitos deles é o que seria ideal. Como se o preço pago por essa tutela não fosse altíssimo, inclusive, do ponto de vista depreciativo da identidade nacional. Vamos e convenhamos que essa subserviência, esse servilismo, essa submissão, é bastante constrangedora e nos coloca em uma posição de atraso imutável.

Não nos esqueçamos de que a nossa Constituição vigente está fundamentada pela soberania, pela cidadania, pela dignidade da pessoa humana, pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pelo pluralismo político (art. 1º). Portanto, não precisamos de ninguém que diga o que é certo ou errado em nosso país. Que dê pitaco baseado em Fake News, construídas a partir de informações equivocadas, inexistentes. Saudosismos à parte, os tempos coloniais brasileiros ficaram no passado!

Imagino que, o pobre diabo do Tiradentes e seus companheiros devem ter se revirado no túmulo, no último domingo. Estamos falando de uma estirpe que tinha consciência política, cidadã, e lutava contra os abusos e arbitrariedades da metrópole.

Nenhum deles pensava que a Coroa Portuguesa defendia liberdade ou tinha espírito democrático. Nem poderiam; pois, ficou claro, desde 1500, que o propósito era a dominação portuguesa, através de vários vieses, ou seja, territorial, cultural, religioso e econômico. Quaisquer tentativas de jugo sobre outra nação é, portanto, colonialismo!

A grande questão é que há 500 anos, o desequilíbrio de forças entre a colônia e a metrópole era um fato. Romper com a dominação era praticamente impossível. Somente três séculos depois da chegada dos portugueses, no país, é que o Brasil se faz independente da metrópole e começa a trilhar caminhos de elaboração para a sua consolidação republicana e, mais adiante, democrática.

Daí o espanto em perceber que há, em pleno século XXI, quem queira fazer um caminho contrário na história! Diante dessa constatação, não pude deixar de lembrar das palavras de Jose Luis Borges, escritor argentino, que “As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade; mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia”.

Pois é, a forma de governança colonial não difere das ditaduras contemporâneas. O colonialismo foi um precursor sim, na medida da sua arbitrariedade, da sua exploração das desigualdades, da sua seletivização social, da sua brutalidade ideológica. Então, a reafirmação do desejo colonial é a reafirmação desse desejo autoritário, alienante, silenciador, opressor, capaz de elevar socialmente uns poucos em detrimento da maioria.

O que, no caso do imperialismo digital contemporâneo, ganha maior intensidade e velocidade, graças ao arcabouço tecnológico desenvolvido por grandes potências globais, como são os EUA. Entendam que, absortas pelo encantamento virtual, milhões de pessoas facilmente passam a ser controladas e manipuladas através das mídias sociais.

Assim, devidamente programadas a conduzir o indivíduo por algoritmos refratários, qualquer ideia contrária aos interesses do poder dominante é rechaçada. E aí, a dominação territorial, cultural, religiosa e econômica, faz a festa!

Segundo Michel Foucault, “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”.

E isso significa que “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta” (Michel Foucault), para podermos avançar ao invés de regredir sócio-historicamente.

Afinal, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Michel Foucault). Prestemos bastante atenção a respeito, a fim de que possamos nos colocar a realmente pensar e dar lugar a busca por essa tal liberdade ainda que tardia 3!



3 “LIBERTAS QUAE SERA TAMEN” (Liberdade ainda que tardia) – lema dos inconfidentes mineiros e presente na bandeira do Estado de Minas Gerais.  

domingo, 21 de abril de 2024

A fogueira das vaidades


A fogueira das vaidades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando li Frankenstein: or The Modern Prometheus, a grande obra literária de Mary Shelley, escrita no início do século XIX, uma das passagens que mais me impactou foi “Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, p.54) 1. A franqueza da autora diante de uma observação ética, tão óbvia, reverbera uma atemporalidade reflexiva extremamente necessária.

De modo que ao assistir ao premiadíssimo Oppenheimer 2 , não pude deixar de pensar a respeito do tênue limite existente entre a ética científica e a ausência dela. Inclusive, no fato de que J. Robert Oppenheimer poderia facilmente ter dito as seguintes palavras: “Senti o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (SHELLEY, p.57).

Tenho comigo que a Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, foi sim, um grande salto para a humanidade; mas, sem quaisquer redes de proteção. Afinal, não se pode olhar os acontecimentos somente pela perspectiva da produção em escala e o consumo massificador. A Revolução Industrial, em cada uma das etapas que ela se apresenta, trata de uma jornada de ciência e tecnologia. O conhecimento foi posto à prova, no sentido de trazer à tona todos os avanços e progressos, possíveis e desejáveis, para os membros do topo da pirâmide social. 

Entretanto, o conhecimento não se resume em si mesmo, ele é parte da subjetividade humana. O que significa que seu processo construtivo se dá a partir da identidade e das percepções individuais, as quais moldam a relação das pessoas com o mundo.  E quanto mais os indivíduos alcançam satisfação nas suas descobertas, na aquisição de elementos para constituírem seus conhecimentos, mais eles se tornam envoltos por uma aura de distinção social. De modo que acaba sendo inevitável a vaidade correr freneticamente pelas veias de quaisquer cientistas ou personalidades da academia.

Cada descoberta, apontada como um assombro de genialidade, na verdade, tem esse lustro pelo papel que pode estabelecer nos rumos da humanidade. E quem não quer ser o primeiro nessa corrida? Receber os louros da vitória, os aplausos, as reverências? Acontece que, nem sempre, os resultados estão amparados pela ética. Teoria e prática, nem sempre, caminham juntas. Por mais que a ciência tente prever e evitar dissabores, quando ela ultrapassa as fronteiras dos laboratórios acadêmicos para ser apropriada por certos segmentos da sociedade, ela incorre sim, no risco de um profundo desvirtuamento de propósito.

Segundo registro na biografia de Alberto Santos Dumont, o famoso inventor brasileiro, foi vítima disso. “No dia 8 de dezembro de 1914, ao ver seu invento ser usado para bombardear a cidade de Colônia, se decepciona. No Brasil, sua tristeza aumentou quando o aeroplano foi usado durante a revolução de 1932, em São Paulo” 3. O “pai da aviação” viu seu trabalho manchado pela beligerância da 1ª Guerra Mundial e depois pela Revolução Constitucionalista, ocorrida em seu próprio país. O seu conhecimento foi brutalmente desumanizado e conduzido para um fim ignóbil.

Um outro exemplo importante diz respeito ao uso do DDT (Diclorodifeniltricloroetano), da família dos organoclorados, ele foi uma das substâncias sintéticas mais estudadas e comercializadas no século XX. A descoberta de suas propriedades inseticidas data de 1939, pelo entomologista suíço Paul Müller, valendo-lhe o Prêmio Nobel de Medicina devido ao uso do DDT no combate à malária 4. No entanto, seu uso durante a Segunda Guerra Mundial, depois na agricultura em todo o mundo, mostrou-se uma ameaça ao equilíbrio ambiental e aos agravos significativos no campo da saúde pública, levando à sua proibição.

A ciência que cria, também, destrói. Controverso. Discutível. Questionável. Mas é assim. A ciência vive sobre um intenso dilema ético. E olhando para o imediatismo contemporâneo, com seus numerosos egos narcísicos, hasteando bandeiras de liberdade irrestrita, há de se pensar a respeito. De tecer uma reflexão longa e profunda. Albert Schweitzer dizia que “Ética é, sem ressalvas, responsabilidade por tudo o que tem vida”. Portanto, se a ciência não coloca a vida como elemento central a ser resguardado na sua busca pelo conhecimento, o planeta viverá sempre em constante sobressalto.  

E pensar sobre isso é interessante, porque se considerássemos o arsenal bélico de posse de certos players internacionais, talvez, a Terra já tivesse se desintegrado. Mas, isso só não ocorreu, porque aquele que deflagar a primeira ogiva perderá a razão de continuar tentando impor a sua supremacia, na medida em que não terá mais com quem disputar. Todos os habitantes do planeta terão morrido. Então, com a ajuda da ciência e da tecnologia eles fazem o seu ritual macabro de eliminação civilizatória, de ostentação de poder, a conta-gotas.  Nos matam, lenta e gradualmente, de diferentes formas.  

Assim, tenhamos cuidado, “Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu ao homem. Por isso ele foi acorrentado a uma rocha e torturado por toda a eternidade”, o que trazendo para o contexto contemporâneo significa que “Você não pode cometer um pecado e depois pedir a todos nós que sintamos pena de você quando houver consequências” (citações do filme Oppenheimer, 2023). A fogueira das vaidades é implacável e certos erros não têm como corrigir, nem voltar atrás.



1 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em 1º jul. 2019.

2 Oscar 2024 – ATOR, DIRETOR, FILME, ATOR COADJUVANTE, FOTOGRAFIA, TRILHA SONORA ORIGINAL, MONTAGEM.

Trailer oficial -   https://www.youtube.com/watch?v=F3OxA9Cz17A

4 https://cetesb.sp.gov.br/laboratorios/wp-content/uploads/sites/24/2022/02/DDT.pdf