Por uma
escola aberta à pluralidade, à diversidade humana!
Por Alessandra
Leles Rocha
Não, não importa se a vítima de
racismo, desta vez, é uma adolescente com visibilidade social 1. Racismo é crime 2.
E racismo na escola merece uma discussão ainda mais aprofundada, tendo em vista
que esse é um dos primeiros espaços sociais, depois da família, em que o indivíduo
se estabelece coletivamente.
Assim, façamos uma reflexão
franca e objetiva sobre o tema. Olhando especificamente para o contexto brasileiro,
o racismo é uma herança colonial, uma consequência ideológica eurocêntrica, a
qual reverbera por mais de 500 anos no país. O que significa já estar
impregnado no inconsciente coletivo nacional por força das legitimações discursivas,
institucionais e de poder.
Acontece que essa normalização,
essa banalização, do racismo, a qual se tenta imprimir, é uma grande mentira. Como
disse no início, racismo é crime. Aliás, muito antes de uma norma jurídica, assim
o determinar, ele sempre foi uma prática criminosa.
Não foi à toa, por exemplo, que
por conta de todas as arbitrariedades e violências cometidas pelos seres
humanos, ao longo da história, decidiu-se reconhecer publicamente que “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade” (art. 1º, Declaração Universal dos Direitos Humanos,
1948).
No entanto, a gênese primitiva,
bárbara e competitiva do Homo sapiens parece rechaçar veementemente o
antirracismo e vem buscando manter acesa essa chama abjeta e degradante, de
geração em geração. Sim, o racismo tornou-se estrutural na sociedade, em razão
de sua legitimação secular como comportamento
normal dentro da dinâmica coletiva. Algo que se manifesta, muito claramente,
pela hierarquização da importância e da desimportância social.
Desse modo, quando uma criança ou
adolescente manifesta o racismo, seja na escola ou em qualquer outro espaço de convivência,
ela está reproduzindo um padrão adquirido no ambiente familiar. Nessa faixa
etária, o núcleo familiar tem um peso enorme sobre a formação de crenças,
valores e princípios, do indivíduo. Há uma constante observação dos diálogos, dos
comportamentos, das ideias.
Mesmo considerando o papel das mídias
sociais e da internet, na contemporaneidade, é com base nessa construção
identitária da criança ou adolescente, que se dá a sua afinidade e agregação tecnológica.
Isso significa que as informações advindas do mundo virtual estão em consonância
com o próprio padrão familiar do indivíduo. Ele transita pela bolha que ele
reconhece como espaço de pertencimento.
Diante desse cenário, o que se
observa é que a escola, especialmente no contexto da iniciativa privada, tem
buscado minimizar os conflitos entre a formação acadêmica e a formação familiar,
a fim de evitar, principalmente, a evasão dos alunos para outros
estabelecimentos de ensino.
Acontece que essa é só uma pseudoneutralidade
e de nada resolve as beligerâncias que já se fazem presentes dentro dos muros
da escola. O corpo docente e diretivo das instituições de ensino está cada vez
mais acuado no seu exercício profissional, tendo em vista o impacto causado
pela ingerência das ideologias sustentadas no âmbito familiar dos alunos.
Bem, em outros tempos, uma roda
de conversas poderia resolver as arestas com facilidade. Mas, os tempos são
outros e não cabe o idealismo ingênuo de pensar que a dialogia pode resolver e
colocar tudo no devido lugar, como em um passe de mágica. As pessoas têm ido,
cada vez mais, aos extremos na defesa das suas ideias e convicções, o que
demonstra uma baixa disposição para conversar e olhar a vida por outras
perspectivas e vieses.
De modo que esse caminho me
parece inócuo; embora, eu acredite piamente que é a educação, o único caminho
para desconstruir e ressignificar os velhos paradigmas. Rubem Alves já dizia
que “Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para
ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente
as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido”.
Aliás, vale ressaltar um ponto
muito importante para essa reflexão. No âmbito educacional brasileiro existem
duas leis – n.º 10.639/2003 3 e n.º 11.645/2008 4 – cujo desconhecimento por parte de uma
imensa maioria da população acontece em razão de não serem efetivamente
cumpridas nas escolas. A invisibilização
delas repercute na invisibilização da pluralidade social brasileira, da herança
colonial miscigenada, reforçando a velha máxima eurocêntrica do século XVI.
Deixando de lado as politizações,
as polarizações contemporâneas, e colocando a discussão da diversidade e da
pluralidade social no campo de construção do conhecimento, da intelectualidade,
é que se pode finalmente iniciar um novo tempo para o país. Um tempo sem medo
das diferenças, sem medo do outro.
A escritora Chimamanda Ngozi
Adichie alerta que “A consequência da história única é esta: ela rouba a
dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em
comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos” 5. Colocar em prática essas duas
legislações significaria, portanto, romper com a história única, a história que
só pode ter um narrador.
O Brasil é de muitas cores,
muitos saberes, muitas habilidades e talentos. O Brasil é o que é graças a uma
riqueza humana extraordinária! Ora, essa grandeza não pode ser ofuscada,
negligenciada, invisibilizada, começando da escola! Crianças e adolescentes
precisam se sentir representados, estimulados, enaltecidos por serem quem são.
Então, temos que falar de Zumbi
dos Palmares, de Machado de Assis, de Nilo Peçanha, de Milton Santos, de
Carolina Maria de Jesus, de Marielle Franco, de Mário Juruna, de Cacique Raoni
Metuktire, de Ailton Krenak, de Sônia Guajajara, de Daniel Munduruku, e tantos
outros 6.
Para finalizar minhas breves considerações,
deixo algumas palavras que caem com uma luva sobre esse assunto: “Vivemos
durante séculos influenciados pela ilusão da miscigenação sem conflitos,
mascarando uma realidade onde a dominação e a discriminação racial e social
diminuem consideravelmente as possibilidades de realização cultural plena para
uma enorme parcela da população. População, aliás, que nunca deixou de lutar
pela formação de uma sociedade na qual os direitos de minorias sejam
respeitados e incorporados a uma identidade nacional reconhecidamente plural. Como
resultado dessa luta, vivemos hoje um importante processo de democratização das
relações sociais no Brasil, e um cenário político que certamente irá exigir a
incorporação de uma série de demandas reprimidas. Devemos aproveitar a
oportunidade para promover o incentivo ao diálogo, ferramenta fundamental para
a construção de uma cultura de paz, que se solidifica com base na
interculturalidade” (COLL, 2002, p.16-17) 7.
1
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/04/28/samara-felippo-expoe-caso-de-racismo-contra-filha-de-14-anos-em-escola-de-sp-e-registra-boletim-de-ocorrencia.ghtml
2
Lei n.º 7.716/1989 – Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de
cor. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm
3
Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá
outras providências. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
4
Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º
10.639, de 9 de janeiro de 2023, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
5 ADICHIE,
C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras,
2019. 64p.
6
https://www.todamateria.com.br/personalidades-negras-brasileiras/
https://www.gov.br/palmares/pt-br/departamentos/fomento-a-cultura/personalidades-notaveis-negras-1
https://www.ebiografia.com/personalidades_negras_brasil/
https://www.lignumambientaljr.com.br/2021/08/09/personalidades-indigenas/
https://glamurama.uol.com.br/notas/top-10-personalidades-indigenas/
https://ensinarhistoria.com.br/liderancas-indigenas-que-estao-reescrevendo-a-historia-de-seus-povos/
7 COLL, A. N. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. São Paulo, Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de Proposições para o Século XXI, 2).