domingo, 28 de abril de 2024

Reflexões sobre a raça... HUMANA


Reflexões sobre a raça... HUMANA

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Na última semana, três notícias importantes me despertaram a atenção e me puseram a refletir profundamente a respeito. O reconhecimento dos crimes de escravidão, durante o Colonialismo, pelo Presidente de Portugal 1. A carta aberta, do Comandante da Marinha brasileira, criticando a homenagem a João Cândido, no livro dos heróis e heroínas da pátria 2. Em episódio semelhante ao que vitimou George Floyd, outro negro norte-americano é asfixiado por policiais, nos EUA 3.

Que a escravidão precede o Colonialismo, não se discute. A partir do momento em que a raça humana passa a guerrear e a conquistar territórios, as práxis voltadas para a servidão, o cativeiro e a submissão tornaram-se aceitas e legitimadas por diversos povos.

Escravos na Suméria, no império egípcio, no império chinês, no império romano, nos Califados e Sultanatos islâmicos árabes, nas civilizações pré-colombianas. Fosse por endividamento, punição criminal, ou aprisionamento de guerra, lá estavam milhares de seres humanos submetidos à escravidão.

Contudo, é no Colonialismo, a partir do século XV, que a escravidão emerge como instrumento de enriquecimento econômico das metrópoles europeias, através do comércio de escravos.

Segundo pesquisas a respeito, “A escravidão existe desde o início da história humana, mas só atingiu uma escala industrial quando colonos europeu levaram à força 12,5 milhões de africanos para a América. O resultado desse processo é que, pela primeira vez, a cor negra da pele se torna sinônimo de sujeito escravizado” 4.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, é hora de mergulhar nas camadas mais profundas dessa história. Nada é por acaso. A cronologia do tempo é tecida pelo encadeamento dos acontecimentos, de modo que para entender as razões que levam uma discussão, como essa, em pleno século XXI, é fundamental regressar ao passado colonial.  

A partir do século XV, o mundo vivia a efervescência do Absolutismo, do Mercantilismo, da expansão marítimo-comercial, do Colonialismo, do acúmulo de riquezas, ... Porém, no século XVIII, a Revolução Francesa expõe a fragilização e o declínio do Absolutismo.

Receosos de que o movimento popular francês pudesse se disseminar por outras monarquias europeias, a Inglaterra valeu-se dos recursos capitais acumulados, ao longo do Mercantilismo, para impulsionar a Revolução Industrial e conter a fúria das camadas menos favorecidas da população.

Do protagonismo monárquico para o burguês, o cenário político-econômico passa a ser conduzido, então, por um novo ideário e o campo político-ideológico passa a gestar a dicotomia entre Direita e Esquerda, com todos os seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas.

Acontece que essa dinâmica dos acontecimentos sempre esteve marcada por um certo inconformismo saudosista, por parte da Direita. As memórias dos tempos coloniais, com todo tipo de regalias e privilégios desfrutados pelas elites, pulsava continuamente no inconsciente coletivo das camadas dominantes da sociedade urbanoindustrial.

Sobretudo, em razão da insatisfação publicamente manifesta pelo proletariado emergente, que ganhava espaço nas teorias acadêmicas sobre a divisão social e econômica do trabalho. Afinal, as classes dominantes não estavam acostumadas a discutir leis e direitos trabalhistas, a pensar na dignidade humana das parcelas sociais mais frágeis e vulneráveis.

Desse modo, sem saber exatamente como lidar com esse novo panorama social instituído pela Revolução Industrial, as elites não viram outro caminho senão apelar para a violência em detrimento do diálogo.

Assim, o desconforto se transforma em diferentes formas de preconceito – Racismo, Xenofobia, Aporofobia, Misoginia, ... - contra as minorias sociais, que estavam presentes no contingente proletariado.

Aliás, vale ressaltar que essas minorias, mais adiante, serão transformadas em pretexto para justificar as inabilidades e incompetências das elites no processo de condução do poder político-econômico de seus respectivos países, como deixam claras as argumentações fascistas do século XX.  

Vejam, desde o século XVIII, paira a reverberação de um lamento saudoso em relação aos tempos coloniais. Ora, aquele era um tempo em que o racismo era aceito, tolerado e estimulado. Que seres humanos podiam submeter, dominar, subjugar, oprimir, quaisquer de seus pares que julgassem diferentes e inferiores. Que era legítima a ideia Eurocêntrica, ou seja, a centralidade e a superioridade da visão europeia sobre as demais. Que a mobilidade social era algo inadmissível; bem como, leis e direitos trabalhistas justos e igualitários. Enfim...

Então, quando se tem três notícias orbitando essas questões, não é acaso. Basta uma simples observação, quanto ao movimento internacional que vem sendo orquestrado pela ultradireita, mundo afora.

Dentre suas pautas e pretensões existe sim, uma busca pelo realinhamento ao ideário colonial. Haja vista o aumento dos casos de trabalho análogo à escravidão 5, as políticas anti-imigração 6, a proliferação de arquitetura hostil nos grandes centros urbanos 7 e o aumento expressivo de casos de violência contra as mulheres 8.   

Isso significa que alguns indivíduos estão atuando no sentido de fazer o mundo girar ao contrário, voltar no tempo. Com as armas de sempre, ou seja, truculência, violência, poder político, poder capital, poder religioso, eles estão a plenos pulmões vociferando contra o curso natural do desenvolvimento global.

Mas, apesar de todo o barulho, não me parece que irão conseguir satisfazer seu intento. Em pleno século XXI, são mais de 8 bilhões de seres humanos, no planeta Terra, cuja imensa maioria vive sob o signo da tecnologia, da ciência, da diversidade, da pluralidade, e não se submeteriam a tamanho retrocesso, porque desejam uns e outros, por aí. Além disso, não dá para regredir nesse ou naquele ponto, é tudo ou nada.  Então...

Mesmo assim, não descarto a necessidade de recrudescer a reflexão, a discussão e a criticidade a respeito desse movimento abjeto. A contemporaneidade, infelizmente, relativizou o óbvio. A humanidade precisa ser relembrada de que chegou até aqui por força da miscigenação gerada pelo próprio Colonialismo, Neocolonialismo e Imperialismo.  Se um dia houve quem acreditasse no Eurocentrismo, essa ideia já caiu por terra, há tempos.

Portanto, é preciso amplificar o diálogo, a construção argumentativa, a educação sociocultural. É preciso não esquecer que “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu). Essa é uma das razões pelas quais “Se todas as vidas importassem, nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importam” (Angela Davis).

Em tempos em que as democracias estão aos sobressaltos, ameaçadas de diferentes formas, as palavras do sociólogo Florestan Fernandes a respeito de que “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça” 9 , devem, portanto, repercutir além das fronteiras nacionais, para que seu entendimento seja apropriado por todos os cidadãos do mundo.  



9 FERNANDES, F. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez Editora, 1989. https://repositorio.usp.br/item/001378079