sábado, 27 de abril de 2024

Perfeccionista?! Será???


Perfeccionista?! Será???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se por um lado a competitividade contemporânea passa a impressão de conduzir muitos indivíduos a uma jornada de perfeccionismo, por outro o que se vê é a qualidade dos resultados, das relações, cada vez mais, deploráveis e inconsistentes.

O mundo da pressa, do imediatismo, da inquietude acirrada, não combina com a qualidade e com a excelência da perfeição, porque esbarra diretamente nos limites e na capacidade de qualquer ser humano administrar uma série de fatores a respeito.

Um dos bens mais caros da contemporaneidade é o tempo. O ser humano não dispõe de horas suficientes para atender a todas as demandas que lhes são dirigidas. Falta tempo para ser. Falta tempo para a família, os amigos, os amores. Falta tempo para o lazer. Falta tempo para o trabalho. Falta tempo para desfrutar da paz interior. Enfim...

De modo que os indivíduos estão mais e mais desatentos, superficiais, inconstantes, incoerentes, irritadiços, ... estressados. São muitos pratos para equilibrar de uma única vez, sob o tic-tac de um relógio marcando o ritmo da urgência. O que significa não realizar nada com a devida perfeição!

Bem, na verdade, não acredito em perfeição, na medida em que o ser humano é um ser inacabado, em constante transformação. No entanto, isso não significa qualquer traço de desprezo em relação à seriedade, à responsabilidade, ao compromisso, que cada ser humano deve ter no exercício das suas atividades e relações sociais.

Assim, prefiro usar o termo profissionalismo ao invés de perfeccionismo. Afinal, viver é a arte de se apresentar diariamente às diferentes circunstâncias, o que faz da postura individual um cartão de visitas da suas habilidades, competências, responsabilidades e alinhamento ético. Trata-se de uma consciência que leva a agir sempre em busca dos melhores resultados.   

No entanto, o que mais se vê na contemporaneidade são indivíduos agindo na total contramão desse profissionalismo, nos mais diferentes espaços sociais.  O nível de desatenção é assustador! As pessoas não sabem mais o que leem, o que escrevem, o que ouvem, o que falam ou o que fazem.

Estão autômatas, como se o cotidiano pudesse ser comparado a uma receita de bolo, em que basta seguir sempre pelas mesmas orientações e está tudo bem. Só que não.

Certa vez, quando estava na universidade, ouvi, em uma palestra sobre bioética, um exemplo marcante a esse respeito. A professora que conduzia a discussão falou da importância do senso de responsabilidade e de atenção em relação a emissão de laudos biomédicos laboratoriais.

Afinal, um erro no resultado de um exame pode ter consequências desastrosas e inimagináveis, dado o conjunto de sentimentos e expectativas do paciente. Em alguns casos, o erro nem sempre pode ser corrigido. Então, os profissionais de laboratório precisam estar plenos da sua atenção, da sua responsabilidade, da sua ética, no exercício do seu trabalho.

Mas, observando atentamente a realidade contemporânea, chega a ser algo assustador! Daqui e dali há uma franca deterioração do profissionalismo. Talvez, porque mensuradas pela produtividade, enquanto possível critério de distinção social, quando tempo é dinheiro e quem produz mais é tido como mais eficiente, as pessoas não se dão conta do distanciamento que estão impondo à sua capacidade de agir em busca dos melhores resultados.

Bons tempos, quando esse comportamento parecia se restringir a certos exemplos presentes no funcionalismo público. Agora é geral. Ninguém escapa de experienciar um atendimento ruim, sem profissionalismo, sem foco, sem atenção, sem a devida responsabilidade.

Vale ressaltar, inclusive, o fato de que nem mesmo a tecnologização contemporânea tem escapado desse movimento. As reclamações em torno de atendimentos puramente tecnológicos/virtuais se avolumam, em razão de não serem capazes de suprir as necessidades dos clientes.

Suas demandas, na maioria das vezes, sequer são respondidas, porque não há opção no checklist do atendente virtual. E se as máquinas não são perfeitas, ou profissionais, imagina o ser humano?!

No fim das contas, esse é só mais um gatilho de aprofundamento para o fracasso civilizatório. Sim, ao gerar a necessidade de explicar, reexplicar, inúmeras vezes, uma mesma questão, de não obter o feedback dialógico naturalmente esperado, os indivíduos vão se estressando, se irritando, adoecendo. A violência vai extrapolando a civilidade, o bom senso, o equilíbrio. O que significa algo totalmente antiproducente para a humanidade.

E ao que tudo indica, não há qualquer preocupação do ser humano contemporâneo em relação à perfeição, nem tampouco, ao profissionalismo. A naturalização da tecnologia, no sentido de ocupar cada vez mais os espaços e tomar as rédeas da própria sociedade, pode ser uma justificativa para a abstenção desse comportamento.

Por outro lado, lembrando a canção dos anos 80/90 que dizia, “é melhor viver / Dez anos a mil, do que mil anos a dez” 1, talvez, o ser humano seja só isso. Pressa. Desatenção. Imediatismo. Em sã consciência ou de livre espontânea vontade, ele jamais teve a intenção de ser perfeito ou de ser um exímio profissional. Certos rótulos, certos estereótipos, acabaram lhe caindo pesado sobre os ombros à revelia da sua vontade.

Assim, a título de entender um pouco melhor essa inquietude imperfeita, talvez, fosse interessante sair, por aí, e perguntar: “O que você faria se só te restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar / Me diz o que você faria” 2. As respostas, certamente, poderiam nos surpreender e trazer pistas importantes sobre o que realmente vem acontecendo com os seres humanos!



1 Decadence avec elegance (Lobão) - https://www.youtube.com/watch?v=g7ULVPLyvA4

2 O último dia (Paulinho Moska) - https://www.youtube.com/watch?v=2TYl2rGRncI