Tempos narcísicos
Por Alessandra
Leles Rocha
A pós-verdade é sim, algo
presente na contemporaneidade, impactando diretamente nas relações sociais. Todo
esse movimento de criação e/ou modelação da opinião pública, o qual
desconsidera os fatos objetivos para dar espaço à manipulação intencional das
emoções e das crenças pessoais, na verdade, só fez exacerbar um traço da própria
personalidade humana.
Na observação, cada vez mais
atenta, do ser humano, comecei a perceber que a pós-verdade só encontrou
guarida nos tempos contemporâneos, porque muitos indivíduos têm em si uma tendência
nata a viver sob uma realidade idealizada, a qual desconsidera os fatos e os
acontecimentos. Portanto, nessa perspectiva, o outro não tem direito de fala,
não existe. É o narcisismo à flor da pele.
Portanto, estamos falando de indivíduos
totalmente encapsulados no seu próprio mundinho. Isso acontece em razão de não
estarem dispostos a se abster de certos comportamentos, tais como mentiras,
vitimismo, necessidade excessiva de atenção, falta de empatia ou empatia
reduzida, dificuldade de aceitar críticas. Afinal, é dentro desse rol de
atitudes que eles preservam a zona de conforto da sua idealização.
Daí a sua imensa dificuldade em
lidar com o factual da vida. O ideal é perfeito, não erra, não comete falhas,
não gera sobressaltos, não questiona, enfim... De modo que essas pessoas
precisam fazer um sacrifício enorme para aceitar a vida como ela é, para
conviver com quaisquer pessoas além de si mesmas. Sim, porque por mais que
vistam uma personagem afável, bem educada, sociável, sempre chega o momento em
que a máscara cai. Basta um pequeno deslize do mundo. A sua pseudosinceridade
não passa da página dois.
Não é à toa que exista tanto
disse me disse, por aí. A contemporaneidade tem sido um celeiro de intrigas,
boatarias, falatórios, falsidades, fuxicos, invencionices. Pois é, a humanidade
está mais e mais carente de transparência, de franqueza, de lisura, de
honestidade, fazendo com que a reciprocidade dos melhores valores, princípios e
crenças, seja perdida. Afinal, o que era para ser uma convivência, uma coexistência,
equilibrada, passa a acontecer sob o signo da assimetria, o qual fragiliza os
laços, os afetos, os sentimentos.
Quando movidos pelo narcisismo, que
expressa claramente um viés egoísta e individualista, certas pessoas ofertam de
si o que querem, como querem e quando querem. Como se as relações humanas
fossem vias de mão única. O outro tem sempre que lhes estar à disposição, acessível,
inteiro nas suas habilidades e competências, em um processo de objetificação;
pois, ele foi sumariamente destituído das suas emoções, dos seus sentimentos,
das suas fragilidades e vulnerabilidades. O modo como o outro se sente nesse
processo, não importa.
E se ele demonstra a sua
insatisfação, o seu desconforto ou o seu inconformismo, com essa estrutura
relacional, ele passa a ser visto como indesejável, inconveniente, ingrato. Ora,
no contexto do ideário individualista não há nada de errado com a submissão, a
invisibilização, a inferiorização, do outro. Porque na mente narcísica o seu
direito se sobrepõe ao do outro. Não importa se isso vai afetá-lo em diferentes
formas, ou seja, na sua objetividade ou na sua subjetividade. Ele tem direito e
ponto final.
O que aponta para o fato de que o
narcisismo, dentro da sociedade contemporânea, não só tem flexibilizado, de
maneira brutal, os limites; mas, em muitos casos, esgarçado eles completamente.
Gerando um quadro de tensões sociais, bastante intensas, em alguns casos, e em
outros, afetando a saúde mental e psicoemocional dos indivíduos. Infelizmente,
o narcisismo é nocivo e a sua toxicidade repercute em curto, médio e longo
prazo, na salubridade social, trazendo desdobramentos incalculáveis.
Ainda que muitos não percebam ou
não compreendam, refletir sobre o comportamento humano é fundamental. O adoecimento
populacional não acontece só por causa de epidemias virais ou bacterianas, por
agentes patogênicos, por distúrbios orgânicos em si. Componentes
psicoemocionais sociais têm sido, cada vez mais, responsáveis por essa
realidade. É preciso pensar que a contemporaneidade é cheia de gatilhos em
relação ao narcisismo humano, seja em menor ou em maior escala.
Daqui e dali tem muita gente
acreditando que é a última bolacha do pacote. A idealização exacerbada sobre si
mesmo faz com que muitos pensem que o mundo gira ao seu redor. Que a sua existência
é que mantém tudo fluindo, acontecendo. Como escreveu Lacan 1, “Cada um alcança a verdade que é
capaz de suportar”. No entanto, isso não é suficiente para eximir o
narcisista do seu senso tirânico, autoritário, no qual os outros são obrigados,
sabe-se lá porquê, a aceitar essa perspectiva idealizada por ele. Goela abaixo,
sem questionar.
Acontece que tudo isso afasta as pessoas.
Cria abismos para uma convivência e uma coexistência profícua e salutar. Não é
à toa que Frida Kahlo dizia, “Se você me quer em sua vida, coloque-me nela. Eu
não deveria estar lutando por uma posição”. Mas, o narcisista impõe o desequilíbrio, as
suas mentiras, o seu vitimismo, a sua necessidade excessiva de atenção, a sua falta
de empatia (ou empatia reduzida), a sua dificuldade de aceitar críticas. Daí a
conta não fecha e as relações humanas se esgarçam, deixando o mundo mais frio, mais
sofrido, mais cético, mais ... desumanizado.
1 Jacques-Marie Émile Lacan – psiquiatra e psicanalista. Seguidor dos ensinamentos de Sigmund Freud.