terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Andando sobre um lago congelado


Andando sobre um lago congelado

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O mundo girando na sua versão distópica e o Brasil, infelizmente, se permitindo entrar na onda. Já passou da hora, do governo lidar com os devaneios e as insanidades alheias, com a devida firmeza e responsabilidade.

Enquanto vários interlocutores estiveram contemporizando a fala áspera e inapropriada do Presidente da Câmara dos Deputados, durante a sessão de abertura dos trabalhos do Legislativo, aos veículos de comunicação e de informação, ninguém se atreveu a falar o óbvio, a dar asas à verdade.

Lamento, mas o problema relacional entre o Executivo e o Legislativo federal não é mera questão de sanha fisiológica, não é desvantagem numérica de representação de apoio ao governo, não são reminiscências deturpadas oriundas da gestão anterior, não é excesso de vaidade de uns e outros.

O que se tem bem diante do nariz, é um Legislativo, e aqui vale a distinção maior à Câmara dos Deputados, distorcendo o seu próprio papel constitucional, na medida em que almeja um domínio, sobre recursos de emendas parlamentares, desmedido. Algo que flagrantemente expõe à ausência de bom senso e de respeito com o seu próprio eleitor.

Acontece que não dá para brincar com o orçamento público. Não dá para obstaculizar a governabilidade do Executivo, que foi eleito com base em propostas de governança, de atendimento às demandas do país, em nome sabe-se lá de quê.

Aliás, para se arvorar dessa maneira sobre os recursos, o Legislativo federal tinha que oferecer bem mais do seu papel constitucional em prol do desenvolvimento e do progresso do país.

Haja vista tamanha displicência diante de constantes afrontas e desrespeitos ao decoro parlamentar, cometidos por certos Deputados (as), sem que quaisquer advertências e/ou punições, previstas no regimento da Casa Legislativa, sejam sequer cogitadas.

Viagens de caráter duvidoso, com dinheiro público. Fake News proferidas do alto da tribuna. Comportamentos repugnantes em sessões de grupos de trabalho importantes, tais como Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). ... Estes são apenas alguns exemplos.

Isso sem contar o fato de que, o próprio Presidente da Câmara dos Deputados, abstendo-se da liturgia do cargo que ocupa, decidiu não comparecer aos eventos de reafirmação da defesa democrática e do Estado de Direito, ocorridos em 08 de janeiro deste ano, e nem tampouco, à sessão de abertura dos trabalhos do Judiciário, no Supremo Tribunal Federal (STF).   Descortesia, deselegância, que deixaram claro o seu posicionamento político-institucional.

Mas, não para por aí. Não bastasse o ranço fisiológico do Legislativo, a complacência do Executivo, infelizmente, tem ido além. Depois que a Receita Federal suspendeu a decisão eleitoreira do ex-governo, em relação à isenção de contribuições previdenciárias sobre a remuneração de pastores, é surreal que o governo tenha se permitido sentar e negociar com o segmento.

É preciso entender que até 2022, essa cobrança existia. O erro foi ter criado uma isenção, com o firme propósito da eleição. Portanto, retornar ao que era é totalmente legal e legítimo. Não há razão, para discussões ou rodadas de negociação.

Afinal de contas, abrir precedentes é sempre um jogo arriscado. Outros segmentos da sociedade podem entrar na fila para reivindicar a mesma benesse. Já pensou?! Professores. Funcionários públicos. Profissionais da saúde. ...

Então, quando eu paro para observar os movimentos das peças nesse tabuleiro, chamado Brasil, mais me convenço de que estamos andando sobre um lago congelado. Qualquer mínima imprudência e o gelo pode quebrar.

Às vezes, penso que o governo não se deu conta de que ele está flertando com uma horda de inimigos. Suas atitudes demonstram o quanto ele parece inebriado pela falsa de ideia de que é um domador de lobos em pele de cordeiro. Só que não.

Em um ano de governo e quantos focos de tensão pairando sobre a República?! O 08 de janeiro de 2023 foi só a ponta do iceberg, no que diz respeito ao aparelhamento do Estado e a reverberação das descobertas em torno da arapongagem, mostrando vieses civis e verde-oliva.

Vamos e convenhamos, há muita gente torcendo para que o país mergulhe, até o pescoço, na instabilidade, na violência, nas tensões político-partidárias. Surpresa zero, considerando que é exatamente isso o que os apoiadores e simpatizantes da ultradireita vem urdindo.

Não apenas no Brasil; mas, no mundo. Eles enxergam na pauta da segurança o caminho mais curto para tomarem o poder. Exatamente como tem acontecido em El Salvador. Acenando como “salvadores da pátria”, alicerçados ideologicamente pela máxima de que “os fins justificam os meios”.

Desse modo, eles retiram da população os direitos civis e os direitos sociais, reorganizam a Suprema Corte, segundo seus próprios interesses, e estabelecem novo ordenamento jurídico para o país. Tudo sob a alegação da garantia da paz, da ordem e da segurança.

Algo tão avassalador que a população, quando se dá conta, já está imersa totalmente em um regime autoritário e antidemocrático, sem ter a quem recorrer. Bem, já diz o provérbio espanhol, “quando você vir as barbas do seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho”.

Steven Levitsky, um dos autores do livro “Como as Democracias morrem” (2018), é muito preciso ao afirmar que “Uma das grandes ironias de como as democracias morrem é que a própria defesa da democracia é muitas vezes usada como pretexto para a sua subversão. Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança – guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas – para justificar medidas antidemocráticas”. Daí a importância da reflexão, da análise e das críticas.  

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