(In) dependência
Por Alessandra
Leles Rocha
Como escreveu Michel Foucault, “Existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do
que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para
continuar a olhar ou a refletir”. Palavras que caem como uma luva, à véspera
da comemoração do Dia da Independência do Brasil.
A data pode até ter muito
simbolismo; mas, carece sim, de verdade. Determinar que a Colônia não mais
estaria subordinada à Metrópole portuguesa, tem lá o seu charme de ousadia, dado
o contexto histórico da época. Além disso, olhando-se por uma perspectiva
psicanalítica, por assim dizer, a situação de um filho que rompe com o pai,
como foi o caso, também acrescenta nuances de profundo atrevimento.
Brincadeiras à parte, acontece que
mesmo acrescentando qualquer narrativa idealizadora a respeito, ou quem sabe, o
próprio quadro Independência ou Morte, do artista brasileiro Pedro Américo,
como inspiração, nada disso é capaz de construir uma verdade minimamente
aceitável. Afinal de contas, a palavra independência, em si mesma, carrega um
peso e uma complexidade que exige argumentos bem mais profundos e contundentes
para se satisfazer.
Esse é o ponto! Não se pode
esquecer, por exemplo, que a atitude de D. Pedro I não saiu barato,
literalmente. D. João VI só aceitou a afronta mediante uma polpuda indenização
e o título de Imperador Honorário do Brasil. Mas, como o país não tinha
recursos financeiros para tal, foi levado, por conta de uma dívida de Portugal com
a Inglaterra, a fazer um empréstimo com os ingleses, rendendo-lhe um
endividamento por todo o século XX.
O que significa que a ruptura com
a Metrópole não chegou trazendo o ímpeto da desconstrução dos alicerces
identitários coloniais. O Brasil não assumiu pelas mãos a sua responsabilidade
de protagonizar a própria história, a partir de um novo projeto econômico e político-ideológico
para o país. Portugal saiu de cena; mas, sua sombra permaneceu figurando no modus
operandi nacional. Inclusive, contando com a mesma organização social,
marcada pela flagrante desigualdade estabelecida desde o início da colonização.
Sim, continuava presente o Brasil
da casa grande e senzala, da economia primária, do escravagismo, do
patriarcado, enfim... Distante das evoluções e das inovações do mundo, que já
corriam aceleradas pelo impulso da Revolução Industrial, emergida na segunda
metade do século XVIII. Lá fora, as pessoas estavam encantadas, por exemplo,
com a mecanização da agricultura e da indústria, o desenvolvimento das
comunicações, os novos meios de transporte, os avanços na medicina, o cinematógrafo.
Sem contar que o trabalho assalariado, ainda que em condições extremante
precárias, respirava um mínimo de independência.
Portanto, um Brasil independente
em teoria. Na prática, o que se via era um país encapsulado pela sua identidade
colonial, amplamente subserviente às imposições geopolíticas internacionais que
se apresentassem. O pior é que a passagem do tempo não fez esse cenário mudar. É
visível como os padrões comportamentais do país se reafirmam, ao longo dos
séculos, e acabam por desbotar as iniciativas retóricas utilizadas para firmar
algum posicionamento de destaque no cenário internacional.
Independentes? Só até a página
dois! O que nos faz sempre muito frágeis e vulneráveis aos movimentos e tensões
no mundo, porque não dispomos de medidas e estruturas capazes de enfrentar, com
a desenvoltura necessária, as eventualidades, os imponderáveis da vida. Pode-se
dizer, então, se tratar de uma pseudoindependência que não reflete,
necessariamente, em uma robusta autossuficiência, uma autonomia concreta,
diante dos desafios. Especialmente, no contexto tão turbulento da
contemporaneidade. Sempre caminhando muitos passos atrás e vendo o mundo alçar
conquistas extraordinárias, pela lente de um binóculo.
Mas, talvez, o que mais constrange
nesse panorama seja pensar como essa independência de fachada carrega consigo um
estigma tão cruel, pelo fato de não permitir que seus cidadãos sejam
efetivamente independentes. Sim, em pleno século XXI, quem diria, o Brasil
tenta subjugar as pessoas através da reafirmação do conservadorismo colonial,
que impõe severas medidas para tolher a liberdade do cidadão de diferentes
maneiras. O Brasil é, hoje, um palco iluminado para todo os tipos de
preconceitos existentes.
O que significa dizer que milhares
de brasileiros e brasileiras estão, anos luz de distância, de desfrutarem a sua
independência de ser, de estar, de viver, de transitar. Há sempre um senão
impedindo a sua liberdade e ameaçando a sua existência. Como se todo o processo
experenciado durante a colonização pela Metrópole, entre os séculos XVI e XIX,
não tivesse sido suficientemente bárbaro e abjeto, para mostrar às gerações
futuras o significado da opressão, da exploração, da violência, da segregação,
da invisibilização, do silenciamento, posto que essas práxis vêm se repetindo cada
vez mais.
Portanto, a independência não pode ser relativizada, nem tampouco, banalizada. Um país só deveria reverenciar a sua independência se, de fato, não tivesse preso a nenhuma amarra social ou econômica que impedisse qualquer um de seus cidadãos de se enxergar e de se sentir independente. Afinal, segundo Patrice Lumumba, ex-primeiro-ministro da República Democrática do Congo e líder anticolonialista, “Sem dignidade não há liberdade, sem justiça não há dignidade e sem independência não há homens livres”.