quinta-feira, 4 de maio de 2023

Não adianta fechar os olhos...


Não adianta fechar os olhos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Com toda a sabedoria e perspicácia, que sempre lhe foram pertinentes, José Saramago dizia que “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”. Perfeito! No entanto, esse é um convite ousado para um mundo acostumado a postergar atitudes importantes, a não enfrentar os desafios de peito aberto, não ir ao cerne das questões para solucioná-las. Daqui e dali só se avistam placebos, remendos, medidas de pouco ou quase nenhuma efetividade, porque não visam resolver, de fato, nada. Preferem sempre se manter nas suas zonas de pseudoconforto.

Por isso, os episódios de violência coletiva, os quais buscam espaços de aglomeração, como as escolas, precisam de uma análise bem mais objetiva e profunda. A velha práxis de se colocar cadeado nas portas depois da casa arrombada, não cabe nessa discussão. A bem da verdade, talvez, nunca coube. Simplesmente, porque a violência não se resume aos atos, aos gestos, aos comportamentos visíveis e perceptíveis; mas, em uma teia complexa e subjetiva de elementos que habitam as profundezas do ser humano.

Se ela não for entendida e determinada a partir dessa natureza individual, as tentativas de contê-la não passarão disso. É essencial olhar o ser humano a fim de verdadeiramente enxergá-lo, não só na sua essência; mas, na sua inserção social. Por mais que a contemporaneidade exalte o individualismo, o narcisismo, o egoísmo, no fundo, o que mais se encontra disperso, por aí, é uma massa ideológica e comportamental homogeneizada. Algo bastante favorecido pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), especialmente através de suas mídias sociais.   

Acontece que cada indivíduo, na sua bolha pessoal e intransferível, nunca deixou perder o seu desejo de pertencimento social, de encontrar pontos de afinidade ou de ecos para suas ideias, sonhos, delírios, frustrações, angústias, inconformismos, ... Porque, de certa forma, essa inserção social colabora na construção do seu próprio significado existencial. Porém, com a velocidade e a intensidade dos avanços impostos pelas tecnologias, esse processo acabou se desvirtuando e fugindo ao controle.

Na medida em que o mundo virtual nasce sem amarras de tempo e de espaço, é contínuo, ele subtrai e desorganiza as relações humanas. As pessoas passam a encontrar uma dificuldade imensa em compatibilizar o cotidiano imerso em duas realidades, uma analógica e outra digital. O que impacta diretamente no equilíbrio psicoemocional e comportamental da sociedade, ou seja, há um adoecimento; sobretudo, do ponto de vista mental, da população.

Depressão. Transtorno afetivo bipolar. Distúrbios alimentares. Psicoses. Demência. Deficiência intelectual. Transtornos de desenvolvimento. São só alguns exemplos para ilustrar o tipo de questões sociais que não surgem da noite para o dia, mas vão emergindo sob a batuta de um cotidiano cada vez mais acelerado, intenso, extenuante. Sem que muitas vezes, os indivíduos consigam ter uma clareza associativa entre o seu modo de vida e os desdobramentos e consequências nefastas advindos dele. Especialmente, em relação às crianças e aos adolescentes que estão mais susceptíveis aos efeitos sociais da contemporaneidade.

Portanto, câmeras por todos os lugares, detectores de metais em locais de grande circulação e aglomeração, vigilância ostensiva, podem até indicar uma tentativa de ação da sociedade; mas, na verdade, não mudam o cenário de uma violência que existe no ser humano e está sim, sendo fomentada por ferramentas tecnológicas. Essas barreiras não impedem que a violência física se converta, por exemplo, em violência psicoemocional que é comprovadamente tão letal quanto qualquer outra.

Haja vista quantos casos de bullying, cancelamento, difamação e Fake News, já provocaram à morte de milhares de pessoas, mundo afora. Aliás, as palavras têm um poder terrível de destruição lenta e gradativa; pois, elas vão reverberando gota a gota o seu veneno letal, que exerce sim, uma paralisia intelectual e emocional nas vítimas que as impede de reagir. Afinal, é subtraído delas a privacidade, a intimidade, o sossego, a paz. As vítimas da violência cibernética são sumariamente expostas, ridicularizadas, inferiorizadas, destituídas dos seus direitos humanos.

É sobre isso, então, que a sociedade tem que se atentar: Saúde mental! Colocar o ser humano na ponta das prioridades. Enxergá-lo na sua complexidade existencial. Do direito e do avesso, sob a premissa de que aquele corpo tem e é uma identidade. Vive. Sonha. Sofre. Chora. Luta. Vence. Perde. Enfim... Esse é o único caminho que permite refletir sobre valores, princípios, crenças, comportamentos, consumos, possibilitando ajustar milhões de pessoas à contemporaneidade sem permitir que ela se aproprie do bem-estar, do equilíbrio, do bom senso, da qualidade de vida, da dignidade humana 1.

O desafio que se impõe é o de desconstruir os gatilhos sociais que teimam em deflagrar a violência nas situações mais simples e cotidianas da vida. Resgatar a capacidade dialógica e argumentativa, sem sobrepor mais e mais camadas de violência sob a perspectiva restrita do vigiar e punir. A violência, seja em que forma se apresentar, é sempre uma ferida aberta e, como tal, precisa ser curada adequadamente. Leva tempo, paciência, e um olhar humanitário que não se resuma à vítima; mas, que perceba no agressor a existência de alguém que precisa, também, ser ajudado e tratado.