sábado, 15 de abril de 2023

Só mesmo fazendo ouvidos de mercador!


Só mesmo fazendo ouvidos de mercador!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A questão não é falar com fundamentação, com bom senso, com lógica. Na dinâmica do tempo contemporâneo a ideia é simplesmente falar ... a esmo, sem critério, sem conhecimento, enfim.  Como uma maneira vulgar de marcar presença, de delimitar território, de garantir algum quinhão de importância. E considerando toda a radicalização ideológica que vem se arrastando pelas relações sociais, não é de se surpreender que esse fenômeno adquira ainda mais fôlego.

Por isso, já imaginava, bem antes da posse do atual governo, que ele enfrentaria uma comunicação atravessada por ruídos intensos. Não por incompreensão ou por eventuais excessos de concisão; mas, pelo prazer de um digladiar de palavras, com fins de criar polêmicas e tensões, que poderiam resultar em algum proveito aos que se colocam em oposição. Ora, não há quaisquer compromissos com os fatos, não estão preocupados em ter certeza de nada, o que querem é falar, falar, falar, ...

Afinal, isso retira dos ombros, de muita gente por aí, o peso da capacidade e da qualidade argumentativa, do valor intelectual das considerações, do nível de conhecimento expresso sobre isso ou aquilo, da habilidade de promover o contraditório. Simplesmente, porque palavras dispersas aleatoriamente e de maneira raivosa acabam se transformando em oportunas cortinas de fumaça, ainda que, muitas vezes, inconsistentes para esconder o que quer que seja.

E todos esses pensamentos vêm povoando os meus sentidos a cada novo frisson da imprensa quanto às falas advindas do governo, seja na figura do Presidente da República ou de quaisquer de seus ministros. Qualquer meia dúzia de palavras se transforma em um “Deus nos acuda”, apenas por não caber nos moldes ou nos interesses de uns e outros, os quais só conseguem enxergar a vida a luz de sua própria perspectiva.  

Pois é, dizia Martin Luther King Jr. que “Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa”. Acontece que no cenário contemporâneo, a comunicação ficou cheia de melindres, de mimimis, inclusive, porque, muitos querem conjecturar a respeito de situações que sequer estão envolvidos ou detêm informações suficientes para fazê-lo. Exercitam uma futurologia em torno de possíveis desdobramentos e consequências, como se a vida transitasse sempre por uma linearidade formidável. Pena, que não seja assim que a banda toca!

Sem contar que as especulações têm uma tendência irritante de desconsiderar o óbvio. Nem todos os sonhos, os desejos, as intenções, são suficientes para se transformarem em realidade, principalmente, da noite para o dia. Portanto, expressá-las não significa necessariamente a efetividade da sua afirmação; mas, uma rica oportunidade de ampliar as possibilidades e projeções de análise, de criticidade e de reflexão, em torno de diversos assuntos importantes.  

E isso é incrível, porque aponta para uma direção de evolução, de vanguarda, do pensamento humano. Afinal, não é possível que, em pleno século XXI, no auge da era tecnocientífica, as pessoas se permitam permanecer fechadas em suas caixas ideológicas, dogmáticas, impedindo o fluxo natural dos acontecimentos da vida. Quem já leu a história de “O elefante acorrentado”, de Jorge Bucay 1, entende o que estou dizendo. Aliás, qualquer cidadão cuja identidade nacional foi marcada pelo processo do colonialismo percebe a profundidade da moral dessa história.

As cicatrizes deixadas pelo sistema colonial são de um abismo imaterial, muitas vezes superior, à sua materialidade. Na medida em que a descrição desse processo aconteceu imperativamente pela perspectiva das Metrópoles, ou seja, dos países colonizadores, exploradores e mandatários; o colonizado teve o seu direito de vez e voz negado e subordinado a um conjunto de alienações intelectuais, culturais, comportamentais, que passaram a constituir um inconsciente coletivo.

No Brasil, isso pode ser sintetizado pelo chamado “Complexo de vira-lata”, tão bem definido por Nelson Rodrigues, na década de 50, o qual diz respeito “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. O pior é que, dentro dos seus limites territoriais, ele insiste em reproduzir as mais terríveis atrocidades, aos moldes do que experimentou pelas mãos da Metrópole que o colonizou. Mas, quando ultrapassa as fronteiras, aí ele volta a exercer a mesma subserviência dependente, de sempre.

Nesse sentido, me parece bastante oportuno parar e pensar porque o comportamento se dá dessa maneira. Várias gerações já se sucederam ao longo do tempo, o que me faz crer que tais manifestações dizem respeito a uma simbólica expressão de poder e controle social pelas elites que herdaram o território. Repetir o passado, ainda que sob um novo viés, lhes dá a sensação de que têm as rédeas nas mãos, que eventuais tensões estariam sob controle.

Então, o fato de surgirem pessoas, principalmente no governo, capazes de romper com esse paradigma, é genial. Desconstruir essas zonas de pseudoconforto é propiciar ao país a construção de sua verdadeira identidade nacional. Uma identidade sem sombras alheias, sem o peso de antigos fantasmas e grilhões. Claro, que é um processo lento e gradual! Ou já se esqueceu que temos um pouco mais de 500 anos de história para corrigir, hein? Mas é preciso transformar. Fazer acontecer.

É esse tipo de posicionamento político-social que dá solidez à luta contra as inúmeras formas e expressões da desigualdade. Trata-se do início da desconstrução das ideias de inferioridade, de subalternidade, de incapacidade, e de tantas outras maneiras de menosprezar o país e seus cidadãos. No instante em que se apropria do seu protagonismo, da sua dignidade, da sua presença no cenário global, ele abdica de toda a depreciação secular que lhe foi imputada.

E, certamente, é isso o que assusta e faz tremer a legião de opositores, em sua maioria, herdeiros ideológicos do colonialismo. Porque eles pressentem riscos às suas regalias e privilégios, ao seu poder e controle social, a um espaço que sempre lhes pertenceu. Assim, parece mais oportuno que o país permaneça alienado na sua submissão internacional, aceitando quireras, pisando em ovos para não incomodar os importantes, silenciando-se daqui e dali. Mas, como eles não são o governo em ação, “[...]Deixa que digam / Que pensem / Que falem [...]” 2.